Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei que institui uma nova Lei
de Migração para o Brasil, em substituição ao defasado Estatuto do Estrangeiro
(Lei 6.815/1980), forjado ainda no período da ditadura militar. Trata-se do
Projeto de Lei do Senado 288/2013, atualmente em tramitação na Câmara dos
Deputados como Projeto de Lei 2.516/2015, em regime de prioridade.
A proposta da nova Lei de Migração brasileira, que já representa grande
avanço na proteção de direitos humanos em relação ao Estatuto do Estrangeiro
vigente, ainda pode ser aprimorada a partir do debate democrático no Poder
Legislativo, evitando contradições e até mesmo alguns pontos de retrocesso, com
a consequente necessidade de judicialização de inúmeras demandas de tutela
individual e coletiva.
Inicialmente, é preciso reconhecer os significativos avanços de
determinados aspectos do projeto de lei, que merecem ser defendidos nesta fase
de debate democrático que se inaugura. Nesse sentido, o projeto de lei prevê
expressamente princípios e garantias, em consonância com as diretrizes de
proteção internacional de direitos humanos, que podem servir para nortear
políticas públicas e decisões judiciais em favor da proteção dos direitos
humanos dos migrantes. Destacam-se as seguintes previsões: repúdio à xenofobia,
ao racismo e à discriminação; não criminalização da imigração; previsão de
hipótese de regularização migratória com fundamento em acolhida humanitária;
direito de reunião familiar; direitos para fronteiriços; proteção de crianças e
adolescentes; igualdade de direitos com brasileiros no acesso a serviços
públicos e direitos sociais.
No mais, a nova proposta de lei avança ao prever hipótese de residência
para vítimas de tráfico de pessoas, trabalho escravo ou violação agravada por
condição migratória (artigo 25, XV). Atualmente, apenas as vítimas de tráfico
de pessoas contam com a possibilidade de permanência válida, e ainda assim com
fundamento em Resolução Normativa do Conselho Nacional de Imigração (Resolução
Normativa CNI 93/2010), sem respaldo legal.
Há também avanços na possibilidade de concessão de residência,
independentemente da situação migratória (artigo 26, parágrafo 4º), bem como na
previsão expressa de reunião familiar com companheiro, sem distinção de gênero
e orientação sexual e sem qualquer ressalva atinente à comprovação de
dependência econômica (artigo 33).
Outro avanço significativo consiste na possibilidade de notificação do
migrante sem documento para regularizar sua situação no prazo de 60 dias
(artigo 48). Atualmente, o migrante indocumentado, que tem direito de se
regularizar, é autuado e notificado a deixar o país em oito dias, sob pena de
deportação, sem a oportunidade de regularizar sua situação.
O projeto conta ainda com salutar ampliação das hipóteses de vedação à
expulsão, beneficiando pessoas com mais de 70 anos de idade e também aqueles
que ingressaram no país até os 12 anos de idade (artigo 53), além das
tradicionais hipóteses de reunião familiar.
Há também previsão expressa de não repatriação, deportação ou expulsão
quando a medida colocar em risco a vida ou a integridade pessoal do migrante
(artigo 60), o que garante proteção aos refugiados, além da proteção em
situações específicas e temporárias, como aconteceu recentemente com o surto da
epidemia causada pelo vírus ebola que assolou vários países do continente
africano. Em 2014, sete nigerianos que cumpriam pena no Brasil há muitos anos,
quando liberados pelo juízo da execução criminal, foram presos para efetivação
da medida de expulsão ao país de origem, que já havia sido decretada. Após
atuação da Defensoria Pública da União, um deles obteve liminar em Habeas
Corpus para que a expulsão não fosse efetivada naquele momento, enquanto a
Nigéria sofria com a epidemia.
A nova lei ainda merece aplausos por finalmente prever prazo determinado
para os efeitos da pena administrativa de expulsão, atualmente de caráter
perpétuo. Diante do entendimento consagrado na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal de que o Estatuto do Estrangeiro fora genericamente
recepcionado pela Constituição Federal de 1988, remanesceu a controvérsia
acerca da constitucionalidade da ausência de prazo para os efeitos da expulsão.
Pela redação do projeto, a questão fica solucionada, já que o efeito da
expulsão será proporcional à pena criminal e não mais que o dobro (artigo 52).
O dispositivo prevê ainda que a expulsão não impedirá o gozo de benefícios na
execução criminal, o que evita a celeuma muitas vezes enfrentada pela
Defensoria Pública na defesa do direito à progressão de regime e à concessão de
livramento condicional para estrangeiros.
Entretanto, apesar desses importantes avanços, é preciso atentar para
alguns aspectos que podem representar desafios, e até retrocessos, na
consecução de uma política migratória efetivamente protetiva e humanista.
O primeiro ponto a ser destacado é que, apesar da intenção de garantir
igualdade com os brasileiros, as ressalvas constantes dos parágrafos 4º e 5º do
artigo 4º fazem com que apenas os migrantes já registrados contem com garantias
como direitos trabalhistas, acesso à justiça, assistência jurídica gratuita e o
direito de transferência de recursos provenientes de sua renda. Contudo, os
migrantes que formalizam pedido de regularização migratória permanecem por
diversos meses, senão anos, apenas com o documento provisório que lhes garante
o direito de permanência válida no país enquanto o seu procedimento tramita no
Ministério da Justiça, logo sem o respectivo registro. Os migrantes ainda não
registrados, além de não darem causa à demora no procedimento da efetivação do
seu registro, deveriam contar com os mesmos direitos sociais garantidos aos
demais migrantes já registrados. Aliás, de acordo com as normas de proteção
internacional dos direitos humanos, notadamente no que diz respeito às
garantias judiciais previstas no artigo 8º da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que se sobrepõe à lei ordinária, a
toda pessoa, indistintamente, devem ser garantidos direitos trabalhistas,
acesso à justiça e assistência jurídica gratuita. Da mesma forma, o artigo 21
da Convenção Americana garante a todos o uso e gozo dos seus bens de
propriedade privada, o que engloba a transferência de recursos provenientes da
sua renda. Nada justifica, portanto, a discriminação de migrantes que não
possuem registro, sendo certo que inclusive os migrantes indocumentados, que
sequer possuem protocolo de regularização migratória, devem gozar desses mesmos
direitos.
Destaca-se ainda a omissão do projeto de lei ao não contemplar previsão
legal do visto temporário para estrangeiros que respondem processo criminal no
Brasil em liberdade ou que cumprem pena criminal em liberdade. Com efeito,
sendo do interesse do Estado brasileiro que esses estrangeiros permaneçam no
país para o cumprimento da pena, é preciso que tal permanência seja válida,
possibilitando que, nesse ínterim, eles trabalhem formalmente e que não
permaneçam relegados à marginalidade, o que é causa dos mais variados problemas
sociais. Atualmente, essa permanência é contemplada apenas em regulamento
(Resolução Normativa CNI 110/2014 e Portaria SNJ 6/2015), sem qualquer respaldo
legal.
O projeto de lei é ainda omisso no
que diz respeito à necessária previsão legal para isenção de taxas. Não há
previsão de isenção de taxas para regularização migratória de determinados
grupos vulneráveis, como é o caso de refugiados, vítimas de tráfico de pessoas,
vítimas de trabalho escravo e estrangeiros em cumprimento de pena criminal ou
que respondem processo criminal em liberdade. Especificamente para os
refugiados, no Brasil é cobrada a taxa para confecção da cédula de identidade
de estrangeiro (CIE), em que pese o documento ser parte do procedimento de
aquisição do status de refugiado, o qual, por sua vez, deveria
ser integralmente gratuito, nos termos do artigo 47 da Lei 9.474/1997 e em
conformidade com a evolução da proteção internacional dos refugiados desde a
Declaração de Cartagena de 1984. O artigo 4º, XII, do projeto de lei, prevê que
o regulamento deverá definir outras hipóteses de isenções, sendo que o artigo
27 prevê cobrança de taxas para residência, sem qualquer ressalva. Com a
eventual aprovação da lei pelo texto atual, a regra será, portanto, a cobrança
de taxas nessas hipóteses acima listadas. Ressalte-se, por fim, a
desproporcionalidade de cobrança de taxas para tais grupos vulneráveis em
comparação com a isenção de emolumentos, prevista no artigo 113, parágrafo 3º,
para vistos diplomático, oficial e, até mesmo, de cortesia (aquele concedido de
acordo com a conveniência política, podendo alcançar celebridades e autoridades
e também companheiros, dependentes e serviçais de detentores de visto
diplomático).
No que diz respeito à prisão de natureza cível para fins de expulsão e
deportação, verifica-se que, apesar de não haver qualquer disposição expressa
no projeto de lei, seja da manutenção ou da abolição dessas hipóteses de
prisão, o artigo 51 permite, tacitamente, a manutenção dessa prática, quando
dispõe que o delegado da Polícia Federal representará perante o juízo federal
as medidas necessárias para efetivar deportação ou expulsão. Essas medidas
consistem, atualmente, na efetivação de prisões na Unidade de Trânsito da
Polícia Federal. De acordo com o atual Estatuto do Estrangeiro, tais prisões
são permitidas, pelo prazo de até 60 dias para deportação e de 90 dias para
expulsão, com base nos artigos 61 e 73, parágrafo único, da Lei 8.615/1980,
respectivamente. Com a possibilidade aberta do artigo 51, além de perdermos a
oportunidade de extinguir essa prática inconstitucional e contrária às
diretrizes internacionais de prisão de natureza cível, que enseja atuação
constante da Defensoria Pública da União mediante impetração de Habeas Corpus e
do acompanhamento de audiência de custódia, haverá retrocesso com relação à lei
atual, que ao menos prevê um prazo máximo para tais prisões.
Ademais, o novo projeto de lei não conta mais com a previsão de
interposição de recurso administrativo em face da decisão que decreta a expulsão.
Atualmente, a Lei 8.615/1980 prevê, em seu artigo 72, a possibilidade de pedido
de reconsideração da decisão, no prazo de 10 dias, contados a partir da
publicação em Diário Oficial. A supressão de tal possibilidade, além de ser um
retrocesso em relação ao atual Estatuto do Estrangeiro, aumenta a necessidade
de judicialização de demandas.
No mais, se aprovado o projeto de lei na sua redação atual, perderemos a
oportunidade de avançar em alguns aspectos muito importantes na política
migratória brasileira.
A primeira delas é a
descriminalização da conduta de reingresso de estrangeiro expulso, atualmente
tipificada pelo artigo 338 do Código Penal Brasileiro, com pena de um a quatro
anos. Na esteira de descriminalização de condutas relacionadas a migrações, o
projeto de lei poderia avançar ainda mais, transformando essa conduta em
infração administrativa sujeita a multa e repatriação ou deportação (com
inclusão de mais um inciso no artigo 109), e revogação expressa do tipo penal.
Com efeito, além se tratar de um tipo penal relacionado à imigração, a conduta
permite a ocorrência debis in idem, com sucessivas prisões e
instaurações de processos criminais pelo mesmo fato.
Outra oportunidade que se perde é a previsão de prazo para a prisão
cautelar para fins de extradição, que pode ser prorrogada até o final do
processo no Supremo Tribunal Federal, conforme artigo 84, parágrafo 6º. No
entanto, há casos em que essa prisão perdura indefinidamente, por meses, até
anos, quando depende do desfecho de um procedimento de refúgio. Como se trata
de uma prisão em regime fechado, é preciso que exista um parâmetro para se
estabelecer uma perspectiva de prazo máximo. Pela razoabilidade, tal prazo não
deveria ser superior ao restante da pena a ser cumprida no Estado solicitante.
Seria salutar, ainda, que o projeto de lei estabelecesse limites às
detenções em zonas primárias de fronteira, em portos e aeroportos, em razão da
necessidade de fiscalização e eventual regularização migratória, como acontece
atualmente na chamada sala do conector do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
É preciso que haja parâmetros para o estabelecimento de prazos máximos de
detenção, o devido acesso a procedimentos de regularização, e condições mínimas
de alojamento condizentes com a dignidade humana, até que seja definida a
situação migratória dos estrangeiros inicialmente inadmitidos no país. O artigo
39 não estabelece qualquer parâmetro nesse sentido.
Perderemos, também, a oportunidade de desburocratizar o procedimento de
opção de nacionalidade brasileira, para quem é filho(a) de brasileiro(a). O
artigo 63 do projeto de lei prevê a opção de nacionalidade de forma genérica,
reproduzindo o texto constitucional. No entanto, na esteira da
desburocratização e desoneração dos procedimentos migratórios, seria salutar
que a opção de nacionalidade deixasse de ser um processo judicial de
competência federal, de jurisdição voluntária, passando a ser formalizada em
cartório. A simplificação do procedimento deveria estabelecer, de forma mais
clara, que se trata de direito potestativo, para cujo exercício basta a
comprovação da filiação, sem a necessidade de comprovar residência no Brasil e
a intenção de aqui permanecer.
Em consonância com outras normas atinentes à regularização migratória,
como é o caso do Acordo sobre Residência do Mercosul e das leis temporárias de
anistia, o projeto de lei deveria prever a isenção de multa por estada
irregular anterior de quem passa a contar com hipótese de residência no país
pela superveniência de fato novo — como, por exemplo, o nascimento de filho
brasileiro de migrante indocumentado, que lhe garante a permanência de forma
definitiva, impedindo a sua expulsão do país, inclusive na hipótese de
cometimento de crime. Ressalte-se que essa multa — que costuma ser aplicada
justamente quando o migrante procura a Polícia Federal para se regularizar —
alcança todos os membros da família, inclusive crianças e adolescentes que não
gozam de capacidade civil, e em valor proporcional ao tempo de permanência em
situação irregular.
Por fim, de acordo com a redação atual do projeto de lei, estamos
prestes a perder a grande oportunidade de dissociar, no Brasil, a autoridade
migratória — que deveria ser uma autoridade cível — da autoridade policial, já
que a proposta conta com previsão expressa no artigo 38 de que o controle
migratório continua sendo realizado pela Polícia Federal, revelando resquícios
de uma abordagem criminal das questões migratórias em detrimento da primazia da
proteção de direitos humanos.
Fabiana Galera Severo é defensora pública
federal, com atuação na área de direitos humanos, tutela coletiva e migrações
da Defensoria Pública da União em São Paulo, formada em Direito pela UFPR e
mestranda em direitos humanos pela Faculdade de Direito da USP.
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