sábado, 28 de janeiro de 2012

Refugiados denunciam maus-tratos em fábrica da Sadia


Ameaçado de morte pelo Talebã por se recusar a pagar propinas ao
grupo, Mahmoud (nome fictício) achou por bem abandonar sua cidade, na
fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão.

Pagou US$ 5.000 a uma gangue de tráfico humano, que prometeu lhe
enviar a um país do outro lado do mundo do qual sabia muito pouco, mas
onde, segundo o grupo, poderia solicitar refúgio e reiniciar sua vida
em paz: o Brasil.

Algumas semanas depois, já em território brasileiro, ele diz ter sido
vítima de uma rede de exploração de trabalhadores estrangeiros em
frigoríficos nacionais.

Quando completou quatro meses de trabalho e começava a se adaptar à
nova vida, Mahmoud foi transferido de Estado por seu empregador.
Dormia sempre em alojamentos apinhados de estrangeiros, que se
revezavam nas poucas camas disponíveis.

Nas fábricas, executava uma única tarefa: com uma faca afiada,
degolava cerca de 75 frangos por minuto pelo método halal, selo
requerido pelos países de maioria islâmica que importam a carne
brasileira. "Não dava nem para enxugar o suor", ele conta,
referindo-se à alta velocidade com que tinha de executar os cortes na
linha de abate. Pelo trabalho, recebia cerca de R$ 700 mensais.

Segundo a Secretaria de Comércio Exterior a exportação de frango halal
para países muçulmanos rendeu cerca de R$ 5 bilhões ao Brasil em 2011.

Certo dia, como um colega se adoentou, Mahmoud foi escalado para
trabalhar por dois turnos seguidos. Ao se queixar ao supervisor, foi
insultado e demitido. No dia seguinte, outro estrangeiro já ocupara
seu lugar.

Sem um tostão, hoje aguarda pela definição do seu pedido de refúgio ao
Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, órgão vinculado ao
Ministério da Justiça), faz as refeições em centros religiosos e
procura outro emprego.

"Disseram que no Brasil eu encontraria paz, mas virei um escravo e,
hoje, vivo como um mendigo."

A BBC Brasil contatou, além de Mahmoud, outros dois trabalhadores que
se disseram vítimas das mesmas condições de trabalho em frigoríficos
brasileiros.

Os dois últimos integram um grupo de 25 estrangeiros que trabalham na
fábrica da Sadia (hoje parte da BR Foods, maior empresa alimentícia
brasileira e uma das maiores do mundo) em Samambaia, no Distrito
Federal. Quase todos moram em duas casas cedidas pela CDIAL Halal,
empresa terceirizada pela Sadia para o abate dos frangos pelo método
halal.

A BBC Brasil obteve fotos do interior de uma das residências. Nos
quartos, habitados por até oito pessoas, colchões empilhados durante o
dia são esticados no chão à noite, para compensar a falta de camas.
Como não há armários nem geladeira na casa, as roupas e a comida são
armazenadas no chão ou sobre o estrado de uma cama, improvisado como
mesa.

As refeições são feitas no chão do quarto, em cima de um pedaço de
papelão. Na cozinha, o fogão acumula crostas de gordura.

Todos os trabalhadores são muçulmanos, já que o abate halal requer que
os animais tenham suas gargantas cortadas manualmente por seguidores
do islã. Eles devem pronunciar a frase "Em nome de Deus, Deus é
maior!" (Bismillah Allahu Akbar, em árabe) antes de cada degola. O
gesto deve cortar a traqueia, esôfago, artérias e a veia jugular, para
apressar o sangramento e poupar o animal de maior sofrimento.

Segundo a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, há apenas três empresas
no Brasil que fornecem o certificado halal, dentre as quais a CDIAL
Halal - braço do grupo religioso CDIAL (Centro de Divulgação do Islã
para a América Latina, baseado em São Bernardo do Campo).

A CDIAL Halal, que presta serviços para quase todas as empresas
brasileiras que exportam carne para os países islâmicos, diz empregar
cerca de 350 funcionários no abate halal, 90% dos quais provêm de
países africanos ou asiáticos como Senegal, Somália, Bangladesh,
Paquistão, Iraque e Afeganistão.

Boa parte dos oriundos de áreas em conflito obtêm status de refugiado
no Brasil, o que lhes permite trabalhar legalmente. Os outros se
estabelecem como imigrantes e, ao conseguir trabalho no abate halal,
atividade para a qual há pouca mão de obra brasileira disponível, têm
o caminho para sua regularização encurtado.

Condições análogas à escravidão
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Ricardo Nino
Ballarini, as condições relatadas pelos trabalhadores em Samambaia são
análogas à escravidão.

"A empresa se vale da situação vulnerável deles no país, o que permite
caracterizar condição análoga à de escravo. Ao transferi-los
constantemente de Estado, impede que criem raízes, que estabeleçam
relações pessoais e denunciem os abusos à polícia", afirma.

Ballarini diz que a situação se assemelha à descrita por estrangeiros
que executam o abate halal em duas fábricas da Sadia no Paraná, onde a
CDIAL Halal também é responsável pela atividade.

As condições laborais nas duas fábricas, nos municípios de Dois
Vizinhos e Francisco Beltrão, são objeto de duas ações movidas pelo
procurador. Ele diz que, em ambas as unidades, os funcionários
estrangeiros enfrentavam jornadas de até 15 horas diárias, não
recebiam hora extra e eram privados de benefícios dados aos
trabalhadores da Sadia, como participação nos lucros e plano de saúde.
Além disso, afirma que muitos trabalhavam sem carteira assinada.

Ballarini conta que os trabalhadores, que costumam chegar ao Brasil
com vistos de turista, são geralmente arregimentados para o serviço em
mesquitas.

"Mesmo
sabendo que a situação é precária, eles têm medo de denunciar e

serem deportados."

Já a CDIAL Halal afirmou em nota que todos os seus funcionários
encontram-se em situação legal no país e procuram a empresa por livre
vontade. A companhia diz que o abate se dá conforme normas adequadas
de segurança, que todos os funcionários têm carteira assinada e
executam jornada de até oito horas (intercaladas entre uma hora
trabalhada e uma de descanso), registrada por relógio de ponto
biométrico.

A empresa afirma ainda que horas extras são devidamente registradas e
pagas, e que todos os funcionários são amparados por acordos coletivos
firmados com sindicatos da classe.

Quanto às transferências dos trabalhadores, a CDIAL Halal afirma que
alguns contratos de trabalho contam com cláusula que prevê essas
ações. Nesses casos, a empresa diz arcar com os custos da mudança.
Rede nacional
Segundo o procurador Ballarini, os casos de Samambaia e das fábricas
paranaenses indicam que pode haver uma rede nacional de exploração de
trabalho no abate halal. A BBC Brasil apurou que o tema também é
objeto de uma investigação do MPT em Campinas (SP). O Ministério do
Trabalho, por sua vez, afirmou que apurará as denúncias de abusos em
Samambaia e que prepara uma nova regulamentação para o trabalho em
frigoríficos.

A denúncia contra a fábrica da Sadia em Dois Vizinhos foi julgada
procedente, e a BR Foods (Sadia) e a CDIAL Halal foram condenadas a
pagar R$ 5 milhões ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), como forma
de reparar os danos causados aos trabalhadores.

As empresas recorreram, e o tribunal de segunda instância baixou o
valor da indenização para R$ 1 milhão, embora tenha mantido a decisão
da corte anterior. Agora, a empresa deve recorrer outra vez.

Já a ação movida contra a fábrica da Sadia em Francisco Beltrão foi
julgada improcedente, e o MPT recorreu.
Terceirização
Além de condenar as condições de trabalho no abate halal, Ballarini
considera ilegal a terceirização da atividade, efetuada pela BR Foods
em todas as suas fábricas que exportam para países islâmicos. Ele
argumenta que uma companhia só pode terceirizar uma de suas
atividades-meio (no caso da Sadia, o abate de animais) se não houver
subordinação entre os terceirizados e a empresa principal.

No entanto, diz que o abate halal se dá inteiramente na linha de
montagem da Sadia, com participação de funcionários da companhia em
todos os processos que não a degola.

"Ao terceirizar, a empresa economiza dinheiro. Foi o que Sadia fez",
diz. "Nada impede que a Sadia contrate os empregados, ainda que
adeptos do islã. Só a supervisão e a certificação deveriam ser feitas
pela entidade competente".

Já a BR Foods (Sadia) afirmou em nota que a terceirização do abate
halal atende à exigência dos mercados islâmicos. "De acordo com tais
exigências, o trabalho deve ser executado por funcionários muçulmanos
que sejam vinculados a uma entidade certificada pelas autoridades
daqueles países. Portanto, a contratação terceirizada é uma
necessidade."

A empresa afirma, no entanto, que os funcionários terceirizados
cumprem uma jornada de trabalho equivalente à dos trabalhadores da
empresa e estão sujeitos às mesmas condições que os outros
funcionários da unidade.

A BR Foods não se pronunciou sobre as condições dos dormitórios dos
funcionários terceirizados. CDIAL Halal, por sua vez, afirmou que "não
tem qualquer obrigação de tutelar o domicílio de seus empregados,
tampouco seus hábitos de higiene pessoal".

A empresa diz que a concessão de residência visa apenas facilitar os
entraves burocráticos que os empregados encontram para alugar uma
residência. Ainda assim, a empresa diz adotar "uma série de medidas
para orientar e auxiliar seus empregados no âmbito doméstico,
inclusive disponibilizando uma faxineira para limpeza das casas uma
vez por semana."

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