sábado, 22 de setembro de 2012

A Espanha e sua história de ingratidão


A Espanha e sua história de ingratidão Nesses tempos de mesquinharia e ausência de qualquer resquício de solidariedade, vale a pena lembrar uma história – uma, entre dezenas e dezenas – do abrigo oferecido pela América Latina aos espanhóis em desgraça. A mesma Espanha que hoje nega abrigo a quem procura, que nega amparo aos que chegaram fugindo de suas próprias desgraças, suas próprias derrotas. Terra ingrata, a Espanha? Ou de um governo ingrato, feito de homens sem alma, sobre cujas tumbas ninguém jamais arrojará um punhado sequer de gratidão e memória? O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno
Nesses tempos de demolição, a Espanha e seu governo têm posto ênfase especial no tratamento dado aos imigrantes que estão em situação ilegal, e trata com sanha perversa aqueles que tratam de chegar. Os espaços para os estrangeiros que não têm visto de residência encolhem de maneira veloz. Os benefícios existentes desaparecem. Desde 1999 os espanhóis tinham, entre seus vários orgulhos, o de contar com um dos melhores e generosos serviços de saúde pública da Europa. Os imigrantes, inclusive os que não haviam obtido residência permanente ou a nacionalidade espanhola, eram amparados. Eram: o governo de direita de Mariano Rajoy acabou com essa concessão.
O sistema financeiro, com a saúde profundamente abalada, merece do governo espanhol todas as atenções, todos os mimos e todos os cuidados de um paciente em estado grave. Os prognósticos são bons. Já os milhares e milhares de estrangeiros que buscaram amparo e uma vida minimamente decente – em muitos casos, mais do que isso: buscaram salvar a própria vida – estão vendo o futuro encolher e o horizonte se afastar cada vez mais.
Os imigrantes são cerca de 9,2% da população espanhola, que ronda a casa dos 47 milhões de habitantes. E 56% desses imigrantes vivem em situação de pobreza extrema. Para resolver pelo menos parte desse problema, o governo de Mariano Rajoy adotou uma nova tática: impedir, diretamente, a chegada de novos imigrantes, principalmente os que partem da África e tratam de chegar à costa da Andaluzia.
Agora mesmo, no começo de setembro, vários imigrantes ilegais que saíram do Marrocos foram recebidos a golpes de cassetete, disparos de pistolas que emitem raios elétricos, bordoadas a granel. Foram todos devolvidos, em lanchas espanholas, para praias do Marrocos e da Argélia. No grupo havia mulheres grávidas e crianças.
Ironias da vida: foi assim, sem nada e sem volta, que milhares de espanhóis vagaram fora de seu país há uns setenta e poucos anos, quando a Guerra Civil que cindiu a Espanha em duas chegou ao fim. Expulsos de sua terra, sem outra bagagem que a derrota, a humilhação e o abandono, foram acolhidos em outras paisagens. Aqui mesmo, na América Latina, são muitas as histórias dessa acolhida, e são muitos os ensinamentos e benefícios que os refugiados nos deixaram.
Nesses tempos de hoje, de mesquinharia e ausência total de qualquer resquício de solidariedade, vale a pena lembrar uma história – uma, entre dezenas e dezenas – do abrigo oferecido pela América Latina aos espanhóis em desgraça.
Na noite do dia 2 de setembro de 1939, um sábado, o Winnipeg, um velho e mal ajambrado cargueiro francês, atracou no porto de Valparaíso, no Chile, com sua carga de 2.365 republicanos espanhóis.
Na manhã do dia seguinte todos eles desceram a sacolejaste rampa e pisaram terra pela primeira vez em um mês. Haviam passado a noite no tombadilho, contemplando o país que seria deles. Eram todos republicanos que tinham buscado refúgio na França depois do fim da Guerra Civil vencida por Francisco Franco. O refúgio que encontraram foram campos de concentração, cercados de arame farpado, onde ficaram confinados no frio, mal alimentados, abandonados à própria e ingrata sorte.
Foram resgatados por Pablo Neruda, um homem que conhecia a absoluta extensão, todo o peso da palavra solidariedade.
Neruda havia vivido o sonho da República Espanhola, tinha padecido a derrota como se fosse dele, e suas noites eram de pesadelo desde a chegada de Francisco Franco ao poder numa Espanha estilhaçada. Ele, que havia sido cônsul chileno em Barcelona e Madri, estava de regresso ao seu país, onde recebia as notícias da desgraça.
Tinha acabado de dirigir a campanha eleitoral do presidente Pedro Aguirre Cerda. E decidiu pedir um posto no governo. Foi ao presidente e disse o que queria: ser nomeado cônsul plenipotenciário. Mas não para uma cidade em particular: queria ser o cônsul chileno para a emigração espanhola para o Chile. Um cargo diplomático que não existia, e foi inventado para ele.
O Chile vivia sua própria desgraça: pouco antes, o terremoto de Chillán havia arrasado parte do país e matado 30 mil pessoas. A crise econômica era feroz. Mas havia quem estivesse em situação ainda pior. Haveria lugar e trabalho para todos.
Neruda se instalou em Paris, entrou em contato com as autoridades francesas – que se mostraram diligentes diante da possibilidade de se livrarem de parte do fardo desagradável que eram os 500 mil refugiados espanhóis – e fretou o velho cargueiro da Companhia Francesa de Navegação que havia servido para transportar tropas na I Guerra Mundial e há anos não se arriscava em viagens longas. Sua tripulação era de uns vinte marujos. Em seus porões foram instalados beliches para mais de duas mil pessoas.
O veterano barco zarpou do porto fluvial de Trompeloup, perto de Bordeaux. Muitas das famílias que embarcaram se reuniam ali depois de anos de separação. Vinte e nove dias depois, na noite de dois de setembro, fundeou na baía de Valparaíso.
A cidade estava iluminada, e se exibiu, toda bela, para os que chegavam. No dia seguinte, conforme iam tocando terra, cada um dos 2.365 passageiros foi recebido com uma rosa. Começava assim sua nova vida.
Um dos passageiros contou, décadas depois, que chegou ao Chile com um único franco francês no bolso. E que no amanhecer daquele domingo, 3 de setembro, atirou ao mar antes de descer do Winnipeg. Queria começar do zero. Queria confiar no futuro.
Aliás, e a tempo: não foram 2.365 passageiros que chegaram ao Chile. Foram 2.366: na travessia nasceu uma menina, que foi chamada de Agnes América Winnipeg Alonso.
Anos mais tarde, ao falar do Winnipeg, Neruda disse: “Se os críticos quiserem algum dia apagar minha poesia, que apaguem. Mas este poema, que recordo até hoje, ninguém apagará jamais”.
Em 2009, quando se cumpriram 70 anos da travessia do barco, uns 40 sobreviventes foram homenagear o poeta morto. Sobre sua tumba, na Isla Negra, despejaram punhados de terra espanhola. Contaram, então, que não era uma homenagem pela data: faziam a mesma coisa todos os anos, desde que Neruda morreu. Punhados da Espanha – país que Neruda amou como se fosse o dele – para zelar pelo descanso do poeta que deu a eles uma nova terra.
Terra da Espanha, a mesma Espanha que hoje nega abrigo a quem procura, que nega amparo aos que chegaram fugindo de suas próprias desgraças, suas próprias derrotas. Terra ingrata, a Espanha? Ou de um governo ingrato, feito de homens sem alma, sobre cujas tumbas ninguém jamais arrojará um punhado sequer de gratidão e memória?

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