A ler a reportagem “Comissão vai reconhecer
exploração sexual como trabalho escravo”, publicada pela Agência
Brasil neste terça-feira, 19, cria-se a equivocada sensação de que a Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) estaria adotando
novo ponto de vista sobre a caracterização da exploração sexual como forma de
trabalho escravo.
O debate da Conatrae foi outro.
A
discussão, ocorrida na reunião de 19 de fevereiro, foi provocada pela própria
Comissão Pastoral da Terra, na sequência da exposição da ministra Maria do
Rosário sobre o caso de escravidão na
exploração sexual flagrado em Altamira. A ministra destacou como,
para dominar suas vítimas, os escravagistas “se utilizam da
desterritorialização para enfraquecer suas presas: meninas do Nordeste são
levadas, traficadas, para o Rio Grande do Sul, e mulheres do Paraná levadas
para o Pará”. Como também maranhenses são levados para os canaviais de São
Paulo ou bolivianos aliciados para as oficinas de confecção do Brás. “A
mobilidade, o transporte para longe, torna-se forma de dominação”.
O representante da CPT observou
que, no flagrante de Altamira, realizado na Boate Xingu, um prostíbulo mantido
nas imediações do canteiro de obras da Usina de Belo Monte, a situação das
pessoas resgatadas – entre elas várias jovens e adultas trazidas do Paraná, Rio
Grande do Sul e Santa Catarina – deixou, entre outras, uma questão sem
resposta: por que essas pessoas não teriam direito, no caso específico, aos
direitos previstos para pessoas resgatadas do trabalho análogo a de escravo?
Um desses direitos é o benefício
do seguro-desemprego durante um período de 3 meses após o resgate e a inserção
prioritária em políticas sociais. A operação de Belo Monte foi conduzida pela
Polícia Civil, a pedido do Conselho Tutelar, alertado por uma jovem que havia
conseguido fugir do estabelecimento. Pelo fato do Ministério do Trabalho não
ter tido participação na operação, não se aplicou a norma regulamentar que
possibilita a inclusão dos resgatados no registro do seguro-desemprego.
Trabalho escravo
Um dos argumentos às vezes alegados para descartar a possibilidade de equiparação entre essa situação e as demais situações de trabalho escravo é de que a prostituição não é uma ocupação legalmente reconhecida.
Um dos argumentos às vezes alegados para descartar a possibilidade de equiparação entre essa situação e as demais situações de trabalho escravo é de que a prostituição não é uma ocupação legalmente reconhecida.
O representante do Ministério do
Trabalho, Alexandre Lyra, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do
Trabalho Escravo (Detrae) recordou oportunamente que foi feito o mesmo tipo de
questionamento em relação aos primeiros resgates de trabalhadores estrangeiros
encontrados em situação de trabalho escravo em oficinas de costura de São
Paulo, alguns anos atrás. Sob a alegação de que se tratava de imigrantes
bolivianos em situação irregular, não teriam direito a ser tratados como
trabalhadores comuns, brasileiros. E informou que essa objeção, por contrariar
abertamente as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acabou
sendo descartada. Hoje virou norma garantir os mesmos direitos aos estrangeiros
encontrados em situação de trabalho escravo. Inclusive foi dada orientação
formal à Polícia Federal para não deporta-los, mas sim encaminha-los para
regularização, mesmo que temporária.
O
mesmo raciocínio vale para todas as situações de exploração em situação de
trabalho forçado ou análogo a de escravo, sem discriminação da situação legal
pessoal da vítima ou da legalidade da atividade na qual se dá a sua exploração.
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro tipifica a conduta de trabalho análogo
a de escravo sem especificar o ramo de atividade envolvido ou a qualidade da
vítima.
Artigo
149 do Código Penal Brasileiro
Reduzir alguém a condição análoga à de
escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto:
Pena - reclusão,
de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º. Nas mesmas penas
incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. |
Por
sinal, na história recente da fiscalização do trabalho escravo, já houve caso
em que o Grupo de Fiscalização Móvel libertou pessoas em situação de escravidão
na modalidade específica da exploração sexual: por exemplo em Várzea Grande,
MT, em dezembro de 2010, quando 24 pessoas foram resgatadas. Segundo a notícia divulgada na época pela agência da
Repórter Brasil:
“Mulheres
sexualmente exploradas e impedidas de sair de uma boate – a não ser mediante
pagamento – foram libertadas em Várzea Grande (MT), município vizinho à capital
Cuiabá (MT). Além das 20 jovens do sexo feminino, quatro homens também foram
encontrados em situação degradante e submetidos a jornadas exaustivas, itens
que caracterizam o trabalho análogo à escravidão (segundo o art. 149 do Código
Penal). Mantidas em alojamentos precários e superlotados no interior da casa
noturna Star Night, as mulheres eram obrigadas a ficar praticamente 24h à
disposição dos donos do estabelecimento, situado na região do “Zero Km”, a
pouco mais de um quilômetro do centro de Várzea Grande (MT) e a cerca de um
quilômetro do Aeroporto Internacional Marechal Rondon. Sem direito ao descanso
semanal remunerado garantido por lei, elas não folgavam nem aos domingos e
feriados. Algumas chegaram a assinar um contrato que vedava a própria saída do
local de trabalho caso não houvesse a quitação de pagamentos combinados.
Segundo Valdiney Arruda, que comanda a Superintendência Regional do Trabalho e
Emprego do Mato Grosso (SRTE/MT) e acompanhou a ação, as mulheres “viviam em
regime total de subordinação [frente aos empregadores]“. “Além da exploração
sexual, elas ainda eram obrigadas a fazer shows de striptease como cumprimento
da jornada de trabalho”, complementa o superintendente”.
Tráfico de pessoas
O caso recente de Belo Monte não apresenta diferenças substantivas. Mas coloca em evidência uma séria anomalia na política brasileira de combate ao trafico humano: foram estabelecidas políticas, instituições e ferramentas separadas para tratar do combate ao trabalho escravo, de um lado, e tratar do enfrentamento ao tráfico de pessoas, do outro lado, como se essas duas frentes fossem conceitualmente e praticamente separadas de maneira estanca. A atualidade nos confirma que não o são e nos obriga a retomar uma visão integrada e integral do fenômeno da escravidão moderna.
O caso recente de Belo Monte não apresenta diferenças substantivas. Mas coloca em evidência uma séria anomalia na política brasileira de combate ao trafico humano: foram estabelecidas políticas, instituições e ferramentas separadas para tratar do combate ao trabalho escravo, de um lado, e tratar do enfrentamento ao tráfico de pessoas, do outro lado, como se essas duas frentes fossem conceitualmente e praticamente separadas de maneira estanca. A atualidade nos confirma que não o são e nos obriga a retomar uma visão integrada e integral do fenômeno da escravidão moderna.
As
características descritas no artigo 149 do código penal para criminalizar o
trabalho análogo a de escravo aplicam-se rigorosamente também a situações de
exploração sexual. Da mesma maneira é norma incorporada em nosso ordenamento
jurídico, a partir da ratificação do Protocolo de Palermo,
reconhecer na exploração sexual e no trabalho forçado algumas das possíveis
finalidades do tráfico de pessoas, cujo enfrentamento é objeto do Protocolo. De
fato o texto de Palermo define o tráfico de Pessoas como “o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa
que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração
incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”
Por
sinal, a única referência ao tráfico de pessoas em nosso código penal (nos
artigos 231 e 231-A, revisados pela lei nº. 11.106 de 2005),
ficou obsoleta, pois manteve no texto legal uma definição do tráfico restrita à
promoção ou facilitação da prostituição: “promover, intermediar ou facilitar a
entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou
a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (Art. 231), e “promover,
intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte,
a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a
prostituição” (Art. 231-A).
Nos vários ambientes, o crime tem
esse nome: escravizar. Está na hora de re-unir problemáticas que nossa história
recente, inoportunamente, apartou.
* Xavier Plassat
é coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
contra o trabalho escravo e integrante da Comissão Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)
Reporter Brasil
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