A Nova Lei de
Migrações (NLM), de 2017, veio sepultar um longo período de negação de direitos
fundamentais aos migrantes que vivem no Brasil. A partir da entrada em vigor da
NLM, migrantes passaram a ter sua vida regulada com base nesses direitos de
forma expressa. A negação de direito de voto ao migrante, no entanto, ainda
permanece, pois enfrenta vedação constitucional. Dessa forma, o Estatuto do
Estrangeiro, de 1980, não por coincidência, foi uma das leis que sobreviveu por
mais tempo em contraposição à Constituição Federal, de 1988, existindo por
quase 29 anos sem garantir aos migrantes, por exemplo, o direito à manifestação
política e o direito de reunião pacífica, o que indica o quanto esse grupo
enfrenta de invisibilidade e discriminação.
A NLM, no
entanto, exige regulamentação. De fato, muitos dos seus dispositivos abriram
portas para a edição do Decreto 9.199, de 20 de novembro de 2017 (Decreto
9199), que, apesar de ter seu texto aberto para consulta pública, permitiu um
tempo muito escasso para manifestação dos órgãos e entidades envolvidas no
debate da construção da NLM, fechando a oportunidade de diálogo com a sociedade
civil, tão importante para o avanço alcançado pela legislação.
Dentre os
inúmeros pontos que exigem regulamentação na NLM, está o art. 14, parágrafo 3o,
que prevê o visto de acolhida humanitária, a “ser concedido ao apátrida ou ao
nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade
institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de
desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito
internacional humanitário, ou em outras hipóteses”.
O Decreto 9199
deveria, portanto, regulamentar esse tipo de visto temporário, permitindo
essencialmente se ter certeza sobre as suas hipóteses e a competência para ser
concedido. Em outras palavras, a regulamentação deveria buscar trazer um
instrumento para o governo brasileiro enfrentar o cenário desafiador da
migração internacional, sem correr o risco de cair nos casuísmos, tão
compatíveis com a violação de direitos e o tratamento diferenciado de situações
idênticas.
Esperava-se,
assim, que a regulamentação viesse da forma mais precisa possível, porém, o
Decreto 9199 preferiu delegar a definição da acolhida humanitária para uma
portaria interministerial, o que dificulta que o texto venha a lume, além de
abrir espaço para um fatiamento da questão. A portaria interministerial não
veio e não há indícios de que virá com a rapidez necessária.
Em substituição
à regulamentação, que deveria ser para todos e bastante precisa, vê-se a perda
de uma chance excelente de se determinar exatamente em que casos se configura a
acolhida humanitária e quem é a autoridade, ou o órgão, que deve reconhecer tal
situação. Tal perda de oportunidade está na recente Portaria Interministerial
n. 9, de 14 de março de 2018, que se limita a trazer uma proteção ao nacional
de país fronteiriço que busque vir para o Brasil.
A citada
portaria permite que seja expedido uma autorização de residência temporária
pelo prazo de 2 anos, que poderá ser transformada em autorização por prazo
indeterminado, caso não haja antecedentes criminais no Brasil e comprove
condições de subsistência. Tal norma é um avanço com relação à Resolução 126 do
CNIg, de 02 de março de 2017, que não garantia a prorrogação por tempo
indeterminado da autorização de residência, além de exigir a entrada por terra
no país, porém, não é a solução definitiva, que viria pela regulamentação do
visto de acolhida humanitária.
O ideal seria
que tivesse sido realizada pela via do Decreto, pois assim definiu a NLM, tendo
em vista que uma portaria interministerial poderia ser vista como uma usurpação
de poder regulamentar, porém, esse não é objeto do texto. Apesar de não
desejável, se a solução for pela portaria interministerial, que ela venha logo,
pois já passou da hora de haver uma definição clara do tema.
As normas que
regulam a migração fronteiriça buscam atender às demandas locais, porém, sem a
segurança que uma regulação ampla e precisa traria. Além disso, é inegável que
o Brasil tem uma pequena participação na mobilidade humana internacional, tendo
muito espaço para receber migrantes de países que estão enfrentando crises
humanitárias.
Dessa forma, a
não regulamentação da acolhida definida no art. 14, parágrafo 3o., da NLM, pode
ser vista como um erro ou como uma opção política, em ambas as situações, no
entanto, precisa ser logo superada, pois incompatível com as bases de direitos
fundamentais da NLM, além de desconectada da realidade mundial, que exige uma
parcela significativa de contribuição dos países, parcela que o Brasil tem
totais condições de oferecer, além de poder significar um impulso ao
crescimento cultural, social e econômico da nação, tendo em vista a
contribuição histórica de migrantes na construção dos países pelo mundo todo.
Luís
Renato Vedovato – doutor em Direito Internacional
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro do Observatório
de Direitos Humanos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Rosana A. Baeninger – professora associada do Departamento de Demografia do IFCH- Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População - NEPO/UNICAMP. Coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo
Rosana A. Baeninger – professora associada do Departamento de Demografia do IFCH- Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População - NEPO/UNICAMP. Coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo
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