Em 11 de outubro de 1983, um migrante nordestino “com o coração cheio de saudade” pegava no lápis para enviar notícias ao pai. “Está mais fácil acertar na [loteria] esportiva que arranjar emprego. No Norte a seca, no Sul o desemprego”, conta ele, em uma das centenas de cartas guardadas na biblioteca da Missão Paz, entidade voltada para acolhida de migrantes na cidade de São Paulo.
“Inesquecível papai, me abençoe para eu ser mais feliz”, começa o texto. “É com o coração cheio de saudade que pego neste lápis para com ele dar-te as minhas notícias”, prossegue. Na carta, o migrante conta como vão as crianças e as mulheres da família.
Também descreve uma campanha de doações para o Nordeste. “Papai, mande me dizer se aí estão entregando alimentos grátis. Tenho certeza que os necessitados não veem nem a cor deste dinheiro.”
Ele conta ainda que recebeu carta do pai, agradecendo o remédio enviado. Nesse ponto diz que a remessa “não foi mais do que a obrigação” e lamenta não poder ajudar mais. Se despede afetuosamente: “Seu filho que, mesmo ausente, jamais te esquecerá”.
O relato, que ajuda a explicar a vida de migrantes em São Paulo, faz parte do acervo da biblioteca da Missão Paz, onde há 7.355 livros, além de revistas especializadas, jornais antigos, centenas de cartas e milhares de fotos de migrantes e movimentos sociais, de 1930 até as Diretas Já.
A biblioteca é a única especializada em migração do estado, segundo um dos coordenadores da Missão Paz, o padre italiano Paolo Parise. Está ligada ao Centro de Estudos Migratórios (CEM), da mesma entidade. “Também fazemos a revista Travessia há 31 anos, a primeira do país focada em migração”, afirma.
Além das cartas, cedidas por migrantes e familiares, a biblioteca tem 150 caixas de documentos e fotos desde a fundação da paróquia, no Glicério, nos anos 1930, até hoje.
“Temos registros de entrada e saída da Casa do Migrante, periódicos sindicais e pastorais dos anos 70, material sobre conflito agrário no Norte ou protestos por asfalto na periferia de São Paulo. E cerca de 20 mil fotos”, diz o historiador Breno Moreno, arquivista voluntário da biblioteca.
Entre os livros, há exemplares antigos, como o “Estudos de Economia Nacional: O problema da emigração”, de 1911, do português Afonso Costa. O acervo abriga ainda edições originais, de 1931 a 1935, de um jornal da comunidade italiana em São Paulo, o La Fiamma.
O periódico bilíngue tinha notícias sobre política e economia, artigos de opinião e temas de interesse dos italianos.
Trazia uma tabela de preços do café e do açúcar e propagandas para a comunidade. Muitas eram de vinhos: “vino puro del Cilento”, “vinhos typo extrangeiro”. A bebida, aliás, era um dos assuntos preferidos do jornal, ao lado de elogios ao catolicismo e críticas à “aberração do bolchevismo”.
Em 1933, o periódico publicou uma nota intitulada “Em louvor da uva”, descrevendo os benefícios do vinho para a saúde: “Um medicamento que activa e regulariza as trocas organicas” e garante um “grande aumento de peso do corpo”. “Dou, por isso, o meu applauso sincero ao incremento do seu consumo”, conclui.
As notícias políticas enalteciam o regime fascista de Benito Mussolini e traziam informações internacionais. “Abolição da lei secca [nos EUA]. Declara abolido o regimen de prohibição alcoolica”, diz uma nota, de 1933.
O jornal é considerado raro pelo historiador italiano Antonio de Ruggiero, da PUC-RS. “É interessante, nunca tinha encontrado o La Fiamma”, diz ele, especialista em imprensa étnica e imigração italiana.
Segundo Ruggiero, muitos desses jornais se perderam na campanha de nacionalização, no Estado Novo, quando várias medidas restringiram o uso de línguas estrangeiras.
Isso se agravou quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, e a Itália se tornou um inimigo. “Quem tinha jornais jogava fora, por medo de ser perseguido.”
Para o historiador, a biblioteca, mantida pela ordem dos Scalabrinianos, poderia ter mais estrutura. “Apesar disso, o fato de que ela existe, em um país onde não há uma preocupação política com a conservação do patrimônio, já é uma grande coisa”, diz.
Os principais frequentadores da biblioteca são pesquisadores brasileiros. Em 2018, foram ao menos 28. Nos últimos anos, estudiosos de outros 14 países estiveram no local. Escolas e faculdades também agendam visitas guiadas.
Sandra Roberta Silva, 39, usou o acervo para seu doutorado na Unicamp, sobre bolivianos no setor de vestuário. “É muito rico”, diz ela.
Já Priscila Alonso, 39, doutoranda do Mackenzie, não encontrou o que buscava. “Estudo imigração da República Democrática do Congo, que é recente, então há pouco material publicado”, conta.
Priscila ficou sem os livros, mas Socorro Barbosa, espécie de guardiã da biblioteca, encontrou uma alternativa. “Ela me apresentou para as assistentes sociais da Missão Paz, que me colocaram em contato com os imigrantes. Foi ótimo, abriu novas possibilidades para a pesquisa”, diz.
Além do centro de estudos e da biblioteca, a Missão Paz tem um espaço de acolhida, com 110 vagas, e oferece atendimento jurídico, psicológico e de saúde, cursos de idiomas, entre outros serviços.
Essa proximidade com os migrantes é um trunfo da biblioteca e evita o isolamento acadêmico, afirma Parise.
A bibliotecária Socorro, 58, concorda. “A pessoa vem pelos livros e conhece outros serviços ou o contrário”, diz ela, que migrou para São Paulo, saída do estado de Pernambuco.
Ninguém por ali sabe muito bem quando a biblioteca começou. Mas, a contar pelo tempo de Socorro à frente das operações, são ao menos 20 anos. O espaço é simples: uma sala de arquivo, outra de leitura e a maior com livros.
Dizer que a biblioteca é próxima dos migrantes talvez não esteja correto. É mais do que isso. Em uma terça-feira, o visitante pode esbarrar em um filipino com a orelha cheia de agulhas na sala de leitura. Ou em uma taiwanesa de jaleco circulando pelos corredores.
É o dia da semana em que a voluntária Nanci Lin, 50, oferece sessões gratuitas de acupuntura. Como a procura é grande, ela pega uma sala da biblioteca emprestada. “Atendo três pessoas ao mesmo tempo”, diz. Nos outros dias, há consultas com psiquiatra, pediatra e clínico geral.
O trabalho, descreve, é gratificante. “Sei como é ter dificuldade com a língua, ficar isolada na colônia. Por isso valorizo o trabalho da Missão Paz.”
Para a peruana Marisol Ccahuana, 28, que trata uma paralisia facial, a diferença da consulta na Missão Paz é o respeito. “No SUS tem muito preconceito, já fui insultada.”
O atendimento de saúde na biblioteca indica que, ali, todos os espaços são dedicados à acolhida dos migrantes. “Aqui somos bem recebidos”, resume Marisol
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