“O trem que
chega é o mesmo trem da partida...” (Milton Nascimento e Fernando Brant).
No mês de
maio, convidado pela Organização Internacional para as Migrações, OIM,
participei da até então mais importante iniciativa de reflexão e diálogo sobre
o futuro das Migrações. E sobre o papel do país do futuro nesse processo, o
Brasil.
Estive novamente no
Brasil, de férias, em setembro (em 2005, o autor desse texto emigrou para a
Catalunha). Então aproveitei para apresentar proposta de introduzir no país um
formato de projeto sobre Migrações, denominado Rede Brasil Migrante – rede transnacional
de defesa dos direitos dos migrantes. Está embasado em uma idéia de projeto
premiado pela União Européia.
Explico,
brevemente. Em Barcelona, criou-se uma rede de pessoas e organizações dedicadas
a contra-atacar os boatos (falsos mitos e rumores xenófobos), utilizando uma
formação sociocultural específica de combate à “bola-de-neve” da ignorância:
desconhecimento sobre outras culturas, que provoca medo ao diferente, e depois
pode tornar-se violenta. Na velha Europa, fala-se hoje até de combater a reativação
do nazi-fascismo, presente de forma organizada em vários países como Grécia,
Espanha, França, Itália, etc.: começa com o “estranhamento”, um mero
preconceito, uma imagem pré-concebida sobre algo que simplesmente se
desconhece; depois se transforma numa discriminação, contra uma pessoa ou
contra um determinado coletivo de pessoas; termina como xenofobia cotidiana ou
atitude racista com violência. Não são raros os casos de assassinatos e de
residências familiares atacadas como na época da Ku-Klux-Klan norte-americana
ou do Apartheid mais violento, na África do Sul.
Naquele momento, em
setembro deste ano, espantado com determinadas manchetes de jornal, assisti
protestos racistas contra médicos cubanos que vieram trabalhar no Brasil.
Pensei comigo mesmo: esse é o momento certo de começar a atuar.
Novamente em
referência a rede existente em Barcelona e outras cidades da Espanha e Europa,
para desenvolver um projeto dessa dimensão não se necessitam maiores esforços
(além de força de vontade e poder “político” de decisão) que não sejam:
a. Primeiro,
interligam-se, em rede de sociabilidade, os que trabalham, pesquisam ou atuam,
em geral, sobre o amplo tema das migrações. Como importante
ferramenta e exemplo, acessem www.migrante.gov.br.
b. Por
meio da construção coletiva do conhecimento, recolhe-se e sistematizam-se
informações básicas sobre as migrações, desafios, perspectivas e,
principalmente, necessidade dos migrantes em geral. Devem ser estes os
protagonistas do processo, de forma individual ou coletiva.
c. Desenvolve-se
campanha nacional de esclarecimento, informação e comunicação, combatendo a
raiz do desconhecimento e desconfiança, utilizando elementos de mediação e
educação intercultural.
Graças a OIM e ao
Ministério da Justiça, participando destes eventos, aproveitei para dialogar
com imigrantes latinos e africanos que escolheram o Brasil para morar. E com
brasileiros que retornam ao país fugindo da crise econômica mundial (estes em
pior situação do que quando deixaram o país).
Eu, emigrante
brasileiro, residente na Europa, descobri, então, mais o que nos unia do que o
que nos separava.
Infelizmente, ter
sido discriminado fora do país, por exemplo, é o melhor impacto educativo que
esses brasileiros que retornam ao país podem aportar ao Brasil, país que nem ao
menos soube lidar com os seus próprios preconceitos “internos”. Se o Brasil não
soube lidar com as suas discriminações “de sempre”, pior será no enfrentamento
a xenofobia contra os novos imigrantes que seguirão chegando para morar no
país.
O pior, dizem
pessoas de outros países que escolheram o Brasil para morar, é criar-se uma
falsa expectativa de que tudo será mais fácil, de que o Brasil é o país mais
receptivo e acolhedor do mundo... E, de repente, perceber o golpe violento de
encontrar-se diante de uma farsa.
O Governo do
Brasil, por sua vez, tem diante de si formas complementares de atuar sobre o
fenômeno das migrações. O processo, historicamente falando, apenas começa...
Em meados deste mês
de novembro, o Ministério das Relações Exteriores realizará, na Bahia, a 4ª
Conferência “Brasileiros no Mundo”. Trará ao país dezenas de emigrantes
brasileiros que, como eu (que participei das Conferências anteriores), terão
oportunidade de apresentar novamente suas reivindicações e propostas para o
Governo de um país que, no seu conjunto, desconhece completamente a realidade
desses milhões de brasileiros que buscaram melhores oportunidades no exterior.
Notem bem: o desconhecimento, como sempre, é a base constitutiva dos nossos
maiores problemas. Contra isso, não propomos outra coisa senão a atualíssima
concepção freireana (Paulo Freire, sempre!) de construção coletiva de
conhecimento.
Felizmente, hoje
mais organizados e associados, lutando por mecanismos de participação cidadã
como conselhos eleitos legítima e democraticamente em todos os continentes, os
brasileiros no Mundo também estão dispostos a ampliar protestos, pois sabem que
governos, às vezes, podem fingir saber escutar. Enviam bilhões (isso mesmo;
você leu corretamente e o próprio Banco Central do Brasil já afirmou tratar-se
de bilhões de reais, desde o final do século passado) em remessas de dinheiro
do exterior, fruto de duros trabalhos. Escravos do século XXI, muitas vezes com
precários salários quase todos economizados para o seu futuro e de suas
famílias que ficaram no Brasil. Estudam, formam-se, ampliam seus horizontes de
conhecimento e acabam tornando-se difusores das boas imagens do seu país no
exterior. Na imensa maioria das vezes atuam como voluntários, gratificados tão
somente pela agradável sensação de manterem suas identidades coletivas.
Certamente por isso, hoje se sentindo mais brasileiros do que quando estavam no
Brasil. E sem serem apoiados como deveriam pelo governo do seu próprio país.
Sabem integrarem-se perfeitamente nos país de destino, sobretudo porque já
conviveram com as mais diversas dificuldades no país de origem. Contribuem,
significativamente, com o crescimento da economia do Brasil, seja com seus investimentos
pessoais e familiares, ou simplesmente pagando, por exemplo, aproximadamente
mais de 200 Reais para fazer um passaporte para seus filhos (que pode ter
validade de um ano, em determinados casos). Se perder ou tiver sido roubado no
exterior, o brasileiro que não apresenta o passaporte extraviado pode chegar a
pagar quase 500 Reais para fazer um novo. Isso a imensa maioria do Brasil nem
sabe, nem sequer imagina.
Se o inimigo segue
sendo a ignorância, o combate será no campo do diálogo e comunicação, formação
e informação.
Ainda assim,
infelizmente, conheço muito bem aquela falsa imagem de que quem deixa o seu
país é um covarde que o abandona, ou simplesmente “filhinho de papai”. Conheço
melhor ainda o desespero de famílias inteiras, nas ruas congeladas da Europa,
Ásia ou América do Norte, implorando poder voltar, em situação precária e
vulnerável, ao seu próprio país. Sei ainda que continuarão “saindo” milhares,
pois não se trata apenas de que o país esteja “crescendo”, se as oportunidades
não são iguais para todos.
Além disso, com o
crescimento do país, crescem naturalmente as possibilidades de poder passar um
bom tempo fora dele. Igualmente, esse novo Brasil possibilita o contato entre
cidadãos de todas as partes do mundo e o intercâmbio de experiências termina
sendo motor de novas migrações. Somente para citar o exemplo do país onde moro,
fala-se hoje de existir uma mesma quantidade de brasileiros com residência na
Espanha, aproximadamente 100 mil. Da mesma forma, seriam aproximadamente 100
mil espanhóis em situação semelhante no Brasil. Estes dados não são possíveis
de retratar a realidade exata justamente pela necessidade primeira de construir
mecanismos confiáveis de saber não apenas a quantidade, mas também a qualidade
da informação sobre quem são esses migrantes.
Nesse sentido, no
início do próximo ano, o Ministério da Justiça realizará a COMIGRAR, 1ª
Conferência nacional para debater o futuro das migrações como um todo. Pela primeira
vez na história do país, o tema das migrações DEVERIA SER, afinal, abordado de
forma conjunta: imigrantes, emigrantes, retornados, refugiados,
transfronteiriços. Justiça, Relações Exteriores, Trabalho, Educação, Saúde,
Cultura, etc. Um enfoque único, um eixo estrutural, estaria finalmente em
pauta: direitos humanos.
Porque o pior seria
começar a discriminar. O que vem de um país rico do Norte, o que vem de um país
pobre do Sul, a cor dos olhos, se possui ou não tal formação ou fortuna pra
investir no Brasil...
Termino propondo um
exercício. Dediquem um minuto a buscar entre brasileiros famosos os sobrenomes
mais exóticos, diferentes ou difíceis de pronunciar. Encontrarão, entre estes o
sobrenome da família da própria Presidente da República. Descobrirão que o
nosso país também foi construído pelas migrações. E que está na hora do Brasil
construir, entre tantas, uma nova política: uma política pública brasileira,
integral, para as migrações. O Mundo nos está esperando.
Como sugestão de
leitura, indico o Relatório dos Colóquios do projeto "Promoção de direitos
no contexto da política migratória brasileira",
produzido pelo Ministério da Justiça, junto com a OIM. Por outro lado, sugiro o
documento produzido pelo Conselho de Cidadãos e Cidadãs de Lisboa para a 4ª
Conferência Brasileiros no Mundo, apoiado pelas redes de brasileiros
emigrantes.
Flavio Carvalho
Barcelona, 18 de novembro de 2013
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