Imigrantes haitianos se reúnem em Necoclí, Colômbia, para pegar um bote com destino a Capurganá, perto da fronteira com o Panamá, em 28 de julho.
A migração haitiana perambula
há uma década pela América Latina e voltou a se tornar visível em um lugar
inóspito: a selvagem fronteira entre a Colômbia e o Panamá. Milhares de
migrantes retidos na região transformaram o município colombiano de Necoclí em
um verdadeiro funil antes de entrarem na faixa de terra pelo Tampão de Darién,
de onde seguem viagem pela América Central em direção ao norte —com os Estados
Unidos no papel de destino desejado e o México enquanto novo território de
acolhida para o êxodo caribenho. A crise de números inéditos colocou em
evidência a peregrinação de uma população que atravessa o continente, enquanto
o Haiti, seu país de origem, segue mergulhado em mais um pico de instabilidade
após o assassinato do presidente Jovenel Moïse.
As autoridades de Colômbia e Panamá concordam que seus países são apenas zonas de trânsito. Mesmo assim, embora o número de haitianos nessa fronteira seja discreto em comparação, por exemplo, à diáspora venezuelana (que é contada ao milhões), constitui um fluxo constante de dezenas de milhares de migrantes irregulares que chegam não do Caribe, mas sim do sul do continente, principalmente do Brasil e do Chile; são os dois países para onde rumaram os haitianos após o terremoto de 2010. Nessa rota arriscada através do Darién, considerada uma das selvas mais perigosas do mundo, são acompanhados, ainda que em menor número, por cubanos, asiáticos e africanos, o que configura a chamada “migração extracontinental”.
Os migrantes chegam
da porosa fronteira com o Equador, fenômeno que as
autoridades migratórias da Colômbia afirmam nao ser algo recente: pelo
contrário, trata-se de um fluxo histórico, que em momentos de pico já teve mais
de 35.000 pessoas em um mesmo ano de travessia. No entanto, mesmo não sendo
fato novo, reconhecem que os números atuais são “alarmantes”, superam de longe
os antecedentes. Desde o início de 2021, autoridades panamenhas registraram a
passagem de 46.000 pessoas pela fronteira, com 18.000 só no mês de julho. Mais
de 20.000 desses indivíduos são haitianos, de longe o primeiro lugar na lista,
seguidos por 8.000 cubanos. Mas a proporção na verdade é maior: nos registros
figuram 1.500 cidadãos brasileiros e quase 3.000 chilenos que, na verdade, são
filhos de haitianos nascidos nesses países para onde partiram as primeiras
ondas do êxodo pós-terremoto. Em muitos casos, são crianças com menos de 11
anos de idade.
A densa selva panamenha tem uma
época seca, que vai de outubro a março, mas é chuvosa pelo resto do ano. Os
migrantes costumam atravessar Darién na temporada seca para evitar perigos
adicionais, como a enchente dos rios e os terrenos lamacentos, conforme explica,
do Panamá, Santiago Paz, da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
“Neste ano, mesmo durante a época chuvosa em que nos encontramos, os fluxos
continuam crescendo”, diz Paz.
Terremoto migratório
Embora a
instabilidade seja recorrente no Haiti —o país mais pobre do Hemisfério
Ocidental— o êxodo tem um estopim claro: o devastador terremoto de 12 de
janeiro de 2010. Desde então, haitianos vêm emigrando para a América do Sul, em
espacial para o Brasil —que naquele momento estava sedento por mão de obra para
construir as infraestruturas da Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de Rio do
Janeiro 2016. Eles chegaram ao país principalmente pelos Estados do
Acre e Amazonas. Até agosto de 2020, eram mais de 143.000, com forte
presença em São Paulo e Rio Grande do Sul. A maioria obteve residência
permanente por razões humanitárias, transformando-se em uma das maiores
comunidades de imigrantes e refugiados. Eles só seriam ultrapassados em 2018
pelos venezuelanos.
A pandemia, porém, reduziu
esse fluxo: sem oportunidades de trabalho e diante de economias paradas, muitos
tentaram se mudar para outros países, derrubando o número de pedidos de
residência e refúgio, segundo dados do Departamento de Imigração do Ministério
da Justiça do Brasil. Em 2020, foram registrados 6.613 pedidos de refúgio, 40%
menos que no ano anterior.
O Chile, com uma economia
dinâmica —ao menos em números macroeconômicos —, virou o destino de muitos
haitianos. Mas, na última década, os haitianos que emigraram para o país andino
também começaram a abandonar o destino rumo ao norte. Embora não existam dados
oficiais, Carlos Figueroa, do Serviço Jesuíta para os Migrantes (SJM), confirma
a nova tendência: “Estivemos conversando com organizações no Chile e em outros
lugares da América Latina. Relatórios do Governo do Panamá indicam que 76% da
população haitiana que chega a território panamenho vem do Chile. É um fato”,
afirma Figueroa, que trabalha na promoção da dignidade e dos direitos de
migrantes e refugiados.
Essa tendência se
nota na própria comunidade haitiana. Jean Claude Pierre-Paul, um assistente
social haitiano que chegou ao Chile em 2008 —antes da entrada maciça de seus
compatriotas em 2014-2015—, conta que alguns “se dirigem à fronteira do México
e Estados Unidos. Fazem uma rota por Chile, Peru, Brasil, Colômbia,
Panamá, Guatemala e Honduras, até chegar ao México”. Pierre-Paul, ativista dos
direitos humanos e membro do Espaço de Reflexão Haiti-Chile, denuncia que hoje
os migrantes levam de três a quatro anos para obter um visto de permanência
definitiva no país. “No Chile, nenhuma outra instituição do Estado demora tanto
tempo para responder a uma solicitação”, afirma.
De acordo com dados
oficiais, residem no Chile mais de 1,4 milhão de estrangeiros. A comunidade
haitiana representa 12,5%, no terceiro lugar da lista, logo depois da
venezuelana (30,7%) e da peruana (16,3%). Segundo o Serviço Jesuíta para os
Migrantes, o número de haitianos que saíram do país supera a quantidade dos que
entraram tanto em 2019 e 2020 quanto nos primeiros quatro meses de 2021. É algo
que não se via desde 2010.
A socióloga María
Emilia Tijoux, acadêmica da Universidade do Chile, diz que durante anos os
estrangeiros consideraram seu país um lugar interessante para viver, mas
atualmente “há pessoas que estão indo embora, porque o país gera medo”,
segundo entrevistas feitas por seu grupo de trabalho e informações vindas da
própria comunidade haitiana. Para Tijoux, “a sociedade chilena em geral avalia negativamente
as pessoas migrantes” e “a comunidade haitiana foi especialmente castigada e
submetida a maus tratos e abusos de todo tipo”. Os que ficam, conta a
especialista, “sabem que devem resistir a um modo de ser nacional e racista”,
afirma.
Segundo Figueroa,
entre os fatores que atrapalham a inclusão dos haitianos na sociedade chilena, estão
a discriminação, as dificuldades para conseguir um trabalho digno —geralmente
se sustentam com empregos precários em comparação com cidadãos de outras
nacionalidades— e os problemas para regularizar a documentação. O último é um
dos mais problemáticos: o Governo pede um atestado de antecedentes penais, registro
especialmente difícil de conseguir para os haitianos.
O novo fluxo migratório para
o norte também parece ser estimulado por amigos e parentes que falam dos
benefícios de se viver em países desenvolvidos, como os EUA e o Canadá. Mas
ninguém fala sobre os enormes riscos do trajeto: além de milhares de
quilômetros de estrada, é possível encontrar grupos armado e tráfico de
pessoas, sem contar os vários dias caminhando em uma selva úmida infestada de
animais e insetos. A OIM prepara uma campanha regional em idioma crioulo com os
dizeres “parle verité” (ou “fale a verdade”), com testemunhos que
alertam sobre os reais perigos enfrentados na travessia.
⇲ Menores em alta
O caminho de Darién, entre a Colômbia
e o Panamá, é o gargalo pelo qual cedo ou tarde passa a maioria dos migrantes
de origem haitiana que se dirigem aos Estados Unidos. À medida que o início da
pandemia vai ficando para trás, o tráfego irregular por entre a fronteira foi
se recuperando até alcançar o nível de 300 detenções diárias. Das mais de
28.000 contabilizadas desde 1º de janeiro, cerca de 20.000 são de pessoas
vindas do Haiti, além de 8.000 de Cuba. Além disso, como é comprovado, uma boa
parte dos que transitam da América do Sul (Brasil ou Chile) tem origem
haitiana. E cada vez mais menores de idade entram na conta.
Em janeiro de 2021, apenas 204
menores foram identificados em trânsito irregular pelo Darién. Em fevereiro, já
eram 364. Em julho, porém, a cifra beirou a marca de 3.000. Mais de 20% dos
transeuntes irregulares são menores de idade, reproduzindo um padrão complexo
já observado em outras fronteiras latino-americanas, em especial as mexicanas.
México, um novo destino
No cada vez mais
difícil caminho para chegar aos Estados Unidos, o México vem se tornando um
novo destino. Segundo as estatísticas da Comissão de Ajuda ao Refugiado do México (Comar), no fim de
julho 13.253 haitianos solicitaram asilo. O número se soma às mais de 1.700
pessoas registradas nas estatísticas como chilenas e mais de 1.000 como
brasileiras; nos dois casos, são filhos de haitianos nascidos nos dois países
sul-americanos.
“Pensamos que no
final do ano teremos cifras impressionantes envolvendo haitianos”, diz ao EL
PAÍS Andrés Ramírez, titular da Comar. “Eu pensava que com o assassinato do
presidente [Jovenel] Moïse haveria uma saída grande de haitianos. Mas as
pessoas que continuam chegando ao México não chegam do Haiti. São os que
estavam em Chile e Brasil. Com os recursos que obtiveram após passarem vários
anos trabalhando e vivendo lá, têm mais chances de conseguir sair e rumar para
o norte, tudo enquanto a economia brasileira e
a situação no Chile pioraram”, explica.
Em 2019, o México
deixou de ser quase exclusivamente um país de trânsito de migrantes para os EUA,
tornando-se, também, uma nação de acolhida. Em 2021, as autoridades mexicanas
esperam superar a cifra inédita de 100.000 solicitações de asilo, algo que
Ramírez atribui às políticas mais restritivas de Washington nos últimos anos e
às redes de apoio que vão estabelecendo para os migrantes no México. Os
haitianos são a segunda nacionalidade de origem entre os que mais pedem
proteção, superados apenas pelos hondurenhos.
Segundo Dana
Graeber, chefa da missão da OIM no México, muitos têm familiares ou amigos já
estabelecidos no país, embora os EUA continuem sendo o objetivo final para boa
parte deles. A organização de Graeber começou a detectar um incremento na
chegada de haitianos em maio, quando “coincidiram menos restrições nas
fronteiras com uma perspectiva um pouco mais positiva [para os migrantes] pela
chegada da administração de [Joe] Biden”
e a piora da situação dos países onde estavam vivendo nos últimos anos.
O México se tornou
um país de destino para os haitianos em 2017. No final de 2016, Washington
revogou uma isenção de deportações para os migrantes desse país. A medida,
estabelecida depois do terremoto de 2010, impedia a expulsão de haitianos que
chegassem sem documentos. Isso deixou muitos retidos na fronteira norte do
México, especialmente em Tijuana, onde se estabeleceu uma grande comunidade
haitiana que encontra oportunidades de emprego na indústria. No entanto, este
ano a Comar reporta a chegada sem precedentes de haitianos que procuram refúgio
na fronteira sul, mais precisamente em Tapachula, Chiapas, o Estado mais pobre do México e com
menos capacidade de receber esta população. “A situação é muito difícil porque
os albergues ou estão fechados ou estão com baixa capacidade. E todos estão
saturados”, explica Graeber. Outro quebra-cabeças crítico na América Latina.
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