O estudante haitiano Jac-Ssone Alerte cresceu em uma comunidade sem água encanada e sem energia elétrica, sonhando cursar uma faculdade fora do país. Quando terminou o ensino médio, escreveu cartas para todas as embaixadas que tinham relação diplomática com o Haiti.
Quase vinte anos depois, formado em Engenharia Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele voltou à comunidade onde cresceu e lidera um projeto para construção de vilas autossustentáveis.
Uma das motivações do engenheiro é a construção de casas resistentes e duráveis, para evitar que mais pessoas morram vítimas de abalos sísmicos.
O terremoto de magnitude 7,2 que atingiu o sul do Haiti no último sábado (14) deixou cerca de 2,2 mil mortos e derrubou quase 60 mil casas no país. No bairro onde vive Jac-Ssone, a pouco mais de 200 km da capital Porto Príncipe e a 100 km do epicentro, só duas casas resistiram, de um total de cem – justamente as que ele construiu.
Entre dores e sonhos
Devido à localização e à precariedade da infraestrutura, Don de l'Amitié foi assolada por várias catástrofes naturais neste século.
O terremoto que matou 300 mil haitianos em 2010 mudou os planos de Jac-Ssone, que cursava Odontologia no Brasil. Ao saber que milhões de compatriotas estavam desabrigados, ele decidiu mudar de área.
No penúltimo ano do curso de Engenharia, o haitiano também acompanhou de longe os estragos causados pelo furacão Matthew.
Na época, em 2016, cada pessoa de sua comunidade vivia com cerca de US$ 0,11 por dia – o equivalente a R$ 0,63.
“Eu via o país sendo destruído e pensava o que poderia fazer para mudar o futuro complexo que estava pela frente”, relata.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele passou a integrar o centro de pesquisas Projeto Solução Habitacional Simples (SHS), voltado para a reconstrução de residências populares após desastres naturais.
Ainda em 2016, Jac-Ssone perdeu a mãe Marie, vítima de diabetes.
“Ela me deixou três lições. A primeira é que a gente tem que amar o que faz. A segunda foi sobre educação: tem que estudar muito para sair da escuridão. A última tem a ver com identidade. Ela disse que eu tinha que assumir para o mundo que eu sou haitiano, e nunca esquecer onde eu nasci”, lembra o engenheiro.
Essa sequência de eventos trágicos foi decisiva na criação do projeto Village Marie, batizado em homenagem à mãe de Jac-Ssone.
Os primeiros tijolos
Com o diploma na bagagem, o haitiano voltou para casa no final de 2019, meses antes da pandemia.
“Quando cheguei, minha comunidade era uma roça. Não tinha energia, todo mundo usava velas à noite. Não tinha água, não tinha casa segura. Conversando com você agora [pela internet], parece que eu estou na Europa!”, brinca.
“Todo mundo quer mudar o mundo, mas ninguém quer mudar a sua comunidade, a sua casa. E eu me propus a criar o primeiro modelo de comunidade autossustentável e inteligente do Haiti, com casas resistentes, com tecnologia e lazer. Selecionamos 15 famílias de um universo de cem que viviam em Don de l'Amitié.”
A primeira tarefa do projeto Village Marie era organizar as pessoas. “O que eu queria era fazer a inovação de base. Ou seja, tirar o conhecimento complexo da universidade e levar para pessoas comuns”, diz. “Começamos do zero. Inclusive estrada tivemos que fazer, até iniciar de fato o Village.”
O tijolo usado para construir as casas é ecológico e inteligente.
“É muito simples. O mesmo solo que você tira para fazer a fundação, você trata com água e obtém o tijolo. É maravilhoso, e não emite CO2”, ressalta o engenheiro.
“Não é obra minha, eu só estou aprimorando. A inovação aqui é menos no tijolo do que no processo, na linha de produção das casas. Aqui no Village, a gente tenta concentrar toda a inovação do mundo num espaço só.”
Por que as casas são seguras
Jac-Ssone trabalha com o conceito de casa para-sísmica, ou seja, uma moradia resistente e durável que, na pior das hipóteses, “avise” antes de cair.
“Diante de um terremoto de grande magnitude, o tijolo ecológico vai soltando pedacinhos, e isso dá tempo para quem está dentro sair. Não existe a possibilidade de uma casa cair na sua cabeça, e é isso que mais mata”, explica.
O que mantém a casa em pé não é o tijolo em si, mas a estrutura, que envolve técnicas específicas. O custo final é de aproximadamente R$ 30 mil. Com dez pessoas trabalhando na obra, o tempo mínimo para erguer uma casa nesses moldes é de 24 dias, se não houver intempéries.
“E estamos provando a resistência das casas no pior cenário, que é um terremoto e, em seguida, um ciclone”, observa o engenheiro.
“As nossas duas casas ficaram em pé, assim como as duas que estão em construção. Todo o resto caiu ao chão: 90% das casas da comunidade foram destruídas, caíram inteiramente, e nas outras só restou uma madeira, uma laje.”
O projeto Village Marie depende de financiamento coletivo, e a maior parte são doadores brasileiros.
“Eu não posso vender para o mundo que a nossa casa não cai. A casa do Village pode cair, dependendo do movimento do terremoto, que é aleatório, mas não cai de uma vez só e não vai te matar”, garante Jac-Ssone.
“Estar aqui na comunidade onde eu cresci, e agora de volta, trazendo esperança, eu acho incrível. O terremoto é poderoso, pode ser muito maior do que nós, mas não podemos fugir do problema. Temos que encará-lo e tentar resolvê-lo”, finaliza.
Edição: Leandro Melito
Brasil De fato
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