Há dez anos, o senegalês Massar Sarr saiu do seu país em
busca de uma vida melhor no Brasil. Ao chegar aqui, solicitou refúgio, como
forma de ter uma carteira de trabalho e não ficar ilegal em território
nacional.
“No Senegal, eu estava trabalhando, mas lá a gente ganha
muito pouco, esse dinheiro tem que ser usado para sustentar e ajudar a família.
Lá, você pode trabalhar cem anos e não consegue comprar uma casa. Por isso a
gente tenta ver onde ir para ter uma vida melhor”, conta, em entrevista ao G1.
Ao pedir o refúgio no Brasil, o solicitante recebe um
protocolo que permite a emissão de documentos como CPF, cartão de saúde e
carteira de trabalho. Até que seu pedido seja avaliado e julgado, ele fica
legalmente no Brasil, inclusive com a possibilidade de trabalhar. A espera pode
passar dos dois anos, pois a análise é feita caso a caso e a fila, atualmente,
é de cerca de 86 mil pedidos.
O pedido de refúgio de Sarr acabou negado, porque sua
vinda para o Brasil se deu por motivos econômicos, e não pela definição
clássica do refúgio: aquele motivado por “fundados temores de perseguição por
motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”,
conforme estabelecido pela Organização das Nações Unidas.
A maioria dos pedidos negados pelo governo brasileiro a
solicitantes de refúgio no ano passado é de pessoas que vêm, como Sarr, à
procura de trabalho.
Em 2009, logo após ter a solicitação negada, Massar
acabou beneficiado por uma lei que legalizou os estrangeiros em situação
irregular que haviam ingressado no Brasilaté 1º de fevereiro daquele ano. “Tive
sorte”, avalia o senegalês, que trabalhou como eletricista, mestre de obras e
hoje é dono do seu próprio negócio em São Paulo, onde vive com a família.
M.*, outro senegalês, de 22 anos, também chegou ao Brasil
em busca de melhores oportunidades. Mas depois da lei de anistia.
“Saí de lá por causa dos problemas econômicos. A gente
nunca teve problema de guerra. Chegou um momento em que tenho que colocar alguma
coisa dentro de casa para ajudar pai e mãe”, conta.
Aos 18 anos, ele veio – por meio de uma rede de coiotes –
de Dakar para o Equador. Até chegar ao Brasil foram dois meses de travessia
pelo Peru e pela Bolívia até, finalmente, chegar em Brasileia, no Acre. Em
todos os pontos de fronteira, conta M*, ele precisou subornar autoridades para
conseguir atravessar os países.
“Viajei de ônibus, de carro, de bicicleta, a pé. Num
determinado momento, cheguei a atravessar parte da floresta caminhando. Ouvia barulho
de cobras, e outras pessoas choravam de medo, mas não tinha outra opção”, conta
ele, na casa de um quarto que divide com a namorada, na Grande São Paulo.
A carteira de trabalho, que M* emitiu após solicitar o
refúgio formalmente às autoridades brasileiras, foi usada apenas por três
meses, enquanto trabalhou em um frigorífico em Araguari, em Minas Gerais.
Atualmente, ele trabalha como ambulante na capital paulista, embora sonhe em
trabalhar para um time de futebol.
Espera
M* aguarda desde 2014 ser chamado para entrevista do
Conare, que vai determinar se ele é ou não um refugiado, segundo os critérios
do governo brasileiro. Enquanto isso, trabalha para se sustentar e mandar
dinheiro para a família, que ficou no Senegal.
Bernardo Laferté, coordenador do Comitê Nacional para os
Refugiados (Conare), órgão federal que julga os pedidos, confirma que a maioria
das solicitações de refúgio negados no país em 2017 se deu por motivos de
migração econômica.
“Eles [solicitantes de refúgio] são bem sinceros, tanto
no formulário quanto na entrevista. Eles falam ‘olha, vim pra cá porque no meu
país não tem condição de ficar, não tem emprego, a vida lá é muito ruim...’
Isso configura uma migração econômica. Nesses termos, não posso dar o refúgio”,
explica.
'Estratégia'
Luis Felipe Aires Magalhães, pós-doutorando na PUC-SP e
pesquisador no Observatório das Migrações em São Paulo, aponta que a questão
dos chamados “refugiados econômicos” tem ligação com a legislação migratória
vigente no Brasil até novembro de 2017, o Estatuto do Estrangeiro, que previa,
entre outras medidas, expatriação e expulsão do território nacional, em um
contexto mais ligado à segurança nacional que aos direitos humanos.
“Chegar no Brasil e solicitar refúgio era uma estratégia
para ser amparada por uma legislação mais avançada e protetiva”, explica,
comparando a lei 6.815, de 1980 com o Estatuto do Refugiado – a lei 9.474, de
1997.
“Tendo em vista a dificuldade de qualquer estrangeiro de
se regularizar no Brasil, é provável que existam pessoas que não
necessariamente se encaixam no que chamamos de definição clássica, e mesmo
assim solicitem o refúgio como forma de se manter legalmente no Brasil”,
corrobora a pesquisadora Maiara Folly, do Instituto Igarapé, que atua em
temáticas como segurança, justiça e desenvolvimento.
A importância da análise caso a caso, segundo
especialistas, é evitar que uma pessoa que esteja em situação de risco seja
privada do refúgio porque vem de um país onde não há conflito armado, mas há,
por exemplo, perseguição a membros da comunidade LGBT.
Os pesquisadores também apontam uma dificuldade em
definir o que é um “refugiado econômico”, levando em conta que o Estatuto do
Refugiado também prevê a concessão do refúgio “devido a grave e generalizada
violação de direitos humanos".
Além de cidadãos de alguns países do continente africano,
o desafio para que o Conare configure – ou não – a necessidade de refúgio
acontece também com os venezuelanos que chegam ao Brasil via Roraima, por
exemplo. De acordo com dados do Conare, mais de 50% dos pedidos de refúgio
registrados no Brasil em 2017foram de venezuelanos.
“Há venezuelanos que alegam perseguição política, mas
também há casos de pessoas que relatam a falta de acessos a medicamentos,
mantimentos, impossibilidade total de ficar no país. Nesse sentido, há a
violação de direitos humanos, e nesse caso cabe refúgio”, defende Marcelo
Haydu, diretor-executivo do Instituto Adus, que atende refugiados em São Paulo.
Magalhães também aponta nuances interpretativas na lei.
“Muitos países passaram por situações econômicas que violam os direitos
humanos. Países que foram historicamente controlados por estrangeiros, muitas
vezes não têm a estrutura necessária para a manutenção do seu povo. O campo
econômico não é diferente do direito humano, pois o direito humano de
sobrevivência passa necessariamente pelo campo econômico”, explica.
Quando tem o refúgio negado, o solicitante pode recorrer
da decisão do Conare, ou tentar ficar em território brasileiro legalmente, seja
por meio de um visto de trabalho ou permanência, casamento ou anistia,
concedida eventualmente pelo governo. Há, no entanto, casos de migrantes que
não conseguem obter a legalização, e ficam no Brasil clandestinamente.
“Isso acaba se tornando um problema, porque ela não consegue
se encaixar no mercado de trabalho formal e fica em uma situação de
vulnerabilidade, inclusive para acessar serviços sociais”, explica Folly.
Nova lei
A nova Lei de Migração, que vigora desde novembro do ano
passado, tem dispositivos que podem ajudar a desafogar o sistema de refúgio,
segundo Laferté. Entre eles, está a possibilidade de conceder vistos
temporários de acolhida humanitária que podem abranger catástrofes naturais e
outras situações mais amplas - incluindo questões relacionadas à concessão de
vistos de trabalho.
O trecho do texto da lei que concedia anistia a
imigrantes que entraram no Brasil até 6 de julho de 2016, independente de sua
situação migratória prévia, foi vetado pelo presidente Michel Temer. O governo
argumentou que a medida poderia esvaziar o poder do Estado e também que não há
como precisar a data efetiva de entrada de migrantes no país.
“A nova legislação migratória avança muito nesse sentido,
pois insere o tema dos direitos humanos dentro da política migratória, mesmo
com o conjunto de vetos [feitos pelo presidente Michel Temer]. Além de uma
legislação boa, avançada e coerente com os tempos em que vivemos, é importante
que os agentes públicos estejam sensibilizados com a questão”, defende
Magalhães.
Para Sarr, a decisão presidencial frustrou as
expectativas de vários grupos de imigrantes que vivem no Brasil. “ Todo mundo
estava esperando a anistia, e agora negaram. Todo mundo fica quase morto. Você
está aqui, trabalhando, pagando imposto, e sem estar legalizado não consegue
fazer muitas coisas. Você é meio preso”, lamenta.
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