quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018
Como o Brasil lida com a imigração venezuelana
FOTO: NACHO DOCE/REUTERS - 11.12.2017
João Paulo Charleaux
O presidente Michel Temer anunciou na segunda-feira (12), em Boa Vista, que liberará recursos adicionais a Roraima, além de criar um “comitê nacional” para lidar com os 40 mil venezuelanos que, de acordo com a prefeitura, vivem hoje em abrigos da cidade. Na quarta-feira (14), o governo anunciou que decretará emergência social no estado, medida que reduz burocracias para o repasse dos recursos.
O fluxo de venezuelanos para fora do país caribenho já foi classificado como “êxodo”, “diáspora” e “crise migratória”, e tem como origem a turbulência política, social e econômica. Não há, entretanto, dados confiáveis sobre o número de imigrantes venezuelanos no Brasil, uma vez que muitos entram e saem do país apenas para comprar mantimentos, enquanto outros entram e permanecem sem registro formal.
1 milhão É o número de venezuelanos que deixaram o país caribenho entre 2014 e 2017, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
Para um número cada vez maior de países, organismos internacionais e organizações não governamentais, o presidente Nicolás Maduro transformou a Venezuelas numa ditadura na qual adversários políticos são perseguidos, presos, torturados e mortos e as eleições são fraudadas. Ao mesmo tempo, o país vive uma recessão marcada pela escassez de produtos básicos e pela explosão no número de casos de desnutrição.
Maduro, por sua vez, se diz vítima da pressão de uma oposição incapaz de conquistar o poder pelas vias eleitorais, que atua respaldada sobretudo pelos EUA, cujo secretário de Estado, Rex Tillerson, já sugeriu em público que o governo da Venezuela fosse deposto por força militar. O presidente venezuelano também refuta as acusações de fraude eleitoral e diz que o país está aberto a observadores internacionais.
Com o fracasso das negociações entre governo e oposição que vinham ocorrendo na República Dominicana, no dia 7 de fevereiro, e com a proximidade de uma nova eleição presidencial, anunciada por Maduro para o dia 22 de abril, crescem os preparativos para receber que o Brasil receba novos imigrantes venezuelanos.
O governo Temer diz que há perseguição política contra opositores de Maduro na Venezuela. Entretanto, não aplica à maioria dos venezuelanos o Estatuto do Refugiado, criado em 1951 para os casos em que exista um “fundado temor de perseguição” por razões políticas, entre outras causas. Além disso, Temer diz que dará uma “abordagem humanitária” para a questão. Entretanto, o presidente foi a Roraima acompanhado de ministros da área de segurança. Prometeu lidar com a situação enviando as Forças Armadas para a região.
O governo Temer diz que há perseguição política contra opositores de Maduro na Venezuela. Entretanto, não aplica à maioria dos venezuelanos o Estatuto do Refugiado, criado em 1951 para os casos em que exista um “fundado temor de perseguição” por razões políticas, entre outras causas.
Além disso, Temer diz que dará uma “abordagem humanitária” para a questão. Entretanto, o presidente foi a Roraima acompanhado de ministros da área de segurança. Prometeu lidar com a situação enviando as Forças Armadas para a região.
O Nexo conversou por telefone, nesta quarta-feira (14), com dois especialistas em migração que vêm acompanhando de perto a situação dos venezuelanos no Brasil. Eles analisaram as aparentes contradições do governo a esse respeito e a dimensão que o fenômeno tem quando comparado ao quadro migratório mais amplo do país. Os especialistas ouvidos são:
Camila Asano, coordenadora do Programas da ONG Conectas Direitos Humanos, formada em Relações Internacionais pela USP, com mestrado em ciência política pela mesma universidade
João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima e vice-coordenador do programa de mestrado Sociedade e Fronteiras, na mesma universidade
Qual a dimensão do fluxo migratório venezuelano, hoje, no Brasil? Ele é grande? Ele sobrepassa a capacidade de absorção brasileira? Como ele se compara a fluxos anteriores? Enfim, é uma ‘crise migratória’?
CAMILA ASANO :
As autoridades brasileiras não têm números confiáveis, o que nos impede de ter uma ideia precisa. Os dados mais confiáveis são os publicados até agora pela Polícia Federal. De acordo com eles, até o final de 2017, cerca de 30 mil venezuelanos pediram regularização no Brasil. Destes, cerca de 22 mil solicitaram refúgio e 8.000 solicitaram a residência pela Resolução 126 do CNIg [resolução do Conselho Nacional de Imigração, de março de 2017, que facilita a residência temporária de estrangeiros no Brasil].
Muitos entram por Roraima, mas buscam, em seguida, outros países. Outros, entram, fazem compras e saem, num movimento migratório pendular. Então, usar o número de entrada das pessoas pela fronteira, na cidade de Pacaraima, não significa necessariamente contar as pessoas que de fato estão no Brasil.
Seja como for, se trata de um fluxo migratório considerável. É o maior fluxo no Brasil hoje, mas está longe de sobrepassar a capacidade de absorção brasileira. O país registra um número baixo de imigrantes, em comparação com o PIB, com a extensão territorial e com a população total. Todos os imigrantes, regulares e irregulares, correspondem hoje, no Brasil, a 1% da população total do país. Nos EUA, é 14%. Na Argentina, 4%. O Brasil recebe pouco e poderia receber muito mais. A questão é que a cidade de Boa Vista e o estado de Roraima não têm capacidade de receber mais, mas o Brasil, sim. Por isso, é preciso realizar um estudo sério de interiorização, para absorver imigrantes venezuelanos que chegam a Roraima, mas querem ir para outras partes do Brasil.
Chamar de “crise migratória” é uma opção do Brasil, mas a verdade é que eles fogem de uma crise na própria Venezuela. É a falta de respostas adequadas aqui que dá a sensação de crise no Brasil. Mas não há uma crise humanitária aqui.
JOÃO CARLOS JAROCHINSKI
Eu não uso o termo “crise migratória”. Há um exagero. A demanda não se compara a outros locais nos quais esse fluxo é ainda mais efetivo. A saída dos venezuelanos é num contexto de crise, lá, mas a vinda para o Brasil é bastante residual quando comparada a outros países. Na Colômbia, os dados mostram uma variação que pode ir de 550 mil a 1 milhão de venezuelanos. Há muitos irregulares, daí a imprecisão. Na metade de 2017, já se falava em 40 mil venezuelanos em Trinidad e Tobago, por exemplo, que é muito menor que o Brasil.
Eu calculo que, hoje, no Brasil, deva haver algo na ordem de 50 mil a 60 mil venezuelanos no território todo. Houve três momentos da imigração venezuelana em Roraima. O primeiro momento foi pendular. Com a crise de desabastecimento de 2015, os venezuelanos vinham, trabalhavam poucos dias, compravam coisas e retornavam para a Venezuela. No segundo momento, houve uma fixação perto da fronteira. E, finalmente, hoje, há um trânsito, há uma entrada de pessoas que deixam Roraima na direção de outros centros. O número preciso de tudo isso é, entretanto, muito difícil de determinar.
Em termos nacionais, o número de entrada de venezuelanos é muito baixo. Estamos falando, na hipótese mais exagerada, em 60 mil. Acho muito estranho o dado que a prefeitura de Boa Vista tem passado, de que há 40 mil venezuelanos aqui [em Boa Vista] agora. Isso equivaleria a mais de 10% da população. Há muita gente, sim, mas os serviços estão funcionando sem registro dessa demanda. Desconfio. O Brasil tem 1% de imigrantes. A média mundial é de 3,7%.
O Brasil considera que há perseguição política na Venezuela. No entanto, não concedeu refúgio a nenhum venezuelano, nos termos da lei, que fala em ‘refúgio por fundado temor de perseguição por razões políticas’, entre outras. Há, nisso, uma contradição?
CAMILA ASANO Dos 30 mil pedidos de regularização apresentados até o final de 2017, 22 mil são pedidos de refúgio. Isso mostra que muitos venezuelanos estão procurando essa via para se regularizar. O que diz a lei brasileira e a convenção das Nações Unidas sobre refúgio é que cada caso precisa ser avaliado individualmente. O Brasil tem tardado em fazer essa análise. Logo, há um passivo muito grande de casos acumulados que deixam essas pessoas em situação temporária de proteção. Ser solicitante de refúgio já traz alguns direitos, como o de não ser devolvido a seu país de origem e o de receber CPF e Carteira de Trabalho, mas, ainda assim, é uma situação temporária de proteção.
Como o maior número de pedidos de refúgio no Brasil vem de venezuelanos, é preciso que o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) faça um esforço e delibere sobre esses casos. Agora, veja: a lei brasileira de refúgio não fala apenas em “fundado temor de perseguição”, mas também em “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Esse seria um caminho para a concessão de refúgio. Então, o Brasil precisa se posicionar com mais clareza a respeito da concessão de refúgio. O que não pode é se acomodar e deixar as pessoas que procuram refúgio como forma de proteção sem uma resposta.
JOÃO CARLOS JAROCHINSKI Para conceder refúgio é preciso, antes, fazer uma análise de cada caso. Você pode ter ditadura ou outros tipos de governo que possam gerar perseguição, mas a concessão do refúgio dependerá de o solicitante comprovar o “fundado temor de perseguição”. Depende da análise de cada caso e do conjunto comprobatório que está ali naquela solicitação.
O contraditório é que o Brasil tem um discurso contundente contra a Venezuela, mas não sequer reconhece os venezuelanos como refugiados pela segunda hipótese possível pela lei brasileira, que é o de “grave e generalizada violação de direitos humanos”.
O que acontece na Venezuela, em relação aos atendimentos médicos, em relação à questão alimentar, é uma dado que justificaria o reconhecimento de “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Isso o governo brasileiro tende a não conceder, por razões políticas. Apesar do tratamento crítico [do governo brasileiro em relação a Maduro], há interesses comuns. É um país fronteiriço. Além disso, teme-se que isso possa gerar aumento da demanda, já que a lei de refúgio dá mais garantias [que as demais leis brasileiras de migração. Por exemplo: a regra de não devolução do solicitante ao país de origem, conhecida como regra de non refoulement].
O presidente fala da dimensão humanitária da resposta brasileira à imigração venezuelana, mas levou para reunião em Boa Vista apenas ministros das áreas militar e de segurança pública. Não estavam presentes ministros da Saúde, do Trabalho, dos Direitos Humanos e da Educação. Há uma contradição nisso?
CAMILA ASANO Há uma enorme contradição na fala do presidente Temer. Ele diz que há uma abordagem humanitária, mas a resposta tem sido desenhada mais no âmbito da segurança. Isso mostra uma visão anacrônica, de que a abordagem do tema migratório está mais no âmbito da segurança nacional do que no âmbito dos direitos humanos.
Além de anacrônico, vai contra a própria Lei de Imigração que entrou em vigor no Brasil [regulamentada em novembro de 2017]. Essa nova lei trouxe uma mudança de paradigma. Antes, o Estatuto do Estrangeiro via a questão da imigração como uma questão de segurança nacional. A nova lei vê como uma questão de direitos humanos. É preocupante a fala do presidente Temer que, em alguns aspectos, fala em maior controle de fronteira e em respostas militarizadas. No entanto, é positivo quando ele traz a dimensão humanitária.
A questão é converter isso em ações concretas, dando soluções jurídicas para essa população. A nova lei dá autorização de residência por razões humanitárias. Isso deveria ser aplicado aos venezuelanos que não buscarem o refúgio, pois seria condizente com a fala do presidente e com a posição do Grupo de Lima [formado pelos governo do Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru, no dia 8 de agosto de 2017 para assumir posições coletivas na região a respeito da crise venezuelana], do qual o Brasil faz parte, e que classifica a situação venezuelana como uma crise humanitária de fato.
JOÃO CARLOS JAROCHINSKI Tem uma contradição, sim. Quem está construindo essas respostas [federais] é o setor de segurança. A própria demanda apresentada pelos governos locais chama atenção para as questões de de segurança e de saúde. Antes da visita do presidente, houve uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Esse Conselho fez algumas recomendações.
Parte delas foi incorporada ao discurso de Temer. Mas, efetivamente, na hora de bater o martelo, na hora de o governo federal assumir um compromisso mais efetivo, a predominância foi da área de segurança. Tanto é assim que o ministro que mais tem falado da demanda em relação à Venezuela é [o ministro da Defesa] Raul Jungmann.
Fala-se muito da questão humanitária, mas as ações são muito engessadas ainda, dentro de um panorama de segurança. É contraditório. A questão humanitária está muito no discurso, um discurso que politicamente é interessante para se fazer a crítica da Venezuela, uma vez que atacar o atual governo da Venezuela é também uma forma de atacar forças políticas nacionais, aqui no Brasil.
Esse fluxo é comparável ao fluxo de haitianos, de 2012? O Brasil está aplicando lições aprendidas naquela ocasião?
CAMILA ASANO Ambos são fluxos intensos e por terra, em cidades que não têm expertise nem condições de receber essas populações. Um ponto parecido com o caso dos haitianos é a demora ou a omissão do governo federal em assumir sua responsabilidade na coordenação da resposta ao fluxo migratório.
Muitas lições foram aprendidas naquele momento [em 2012]. A cidade de Manaus, por exemplo, possui hoje um sistema de acolhida que teve como base as lições aprendidas na época dos haitianos. Isso é positivo. Por outro lado, ainda há lições não implementadas, como a interiorização coordenada. É preciso evitar que se repita um erro ocorrido no caso dos haitianos, que foi a ação unilateral do governo do Acre, sem a devida coordenação com o governo do estado e com a prefeitura de São Paulo [que começou a receber ônibus com haitianos enviados do Acre sem aviso prévio]. Esse ponto é fundamental. E seria inaceitável que isso se repetisse.
JOÃO CARLOS JAROCHINSKI A similaridade está no fato de serem fluxos migratórios nas fronteiras amazônicas, nessa espécie de porta dos fundos, com dificuldade de acesso, de atendimento, com a prevalência de uma visão de que a fronteira é negativa, que ela traz coisas negativas, traz tráfico de pessoas, de drogas, de armas. A fronteira vira a periferia do país, nos dois casos. Mas, no caso dos haitianos, eles têm a questão migratória muito mais presente dentro da sua história. O Haiti tem uma trajetória de mais de cem anos de migrações, o que, obviamente, cria redes migratórias e influencia na maneira de se comportar diante do fenômeno migratório também. Se existe uma nacionalidade que pode ser considerada hiper móvel é a haitiana. No Brasil, assim que os haitianos começaram a sentir os efeitos negativos da crise começaram a se dirigir para o Chile, por exemplo. Eles têm uma perspectiva migratória de pouca vinculação com o destino.
Os venezuelanos são diferentes. Eles são de um país que, tradicionalmente, era um país de chegada de imigrantes. Nos anos 1980, mais de 7% da população venezuelana era de estrangeiros. Não tinha tradição de saída. É algo que está se constituindo agora. Então, é distinto. A forma de lidar com a migração é distinta.
Outra questão: os haitianos usavam o norte como rota de entrada, de passagem. No caso dos venezuelanos, há uma grande permanência na fronteira, que é o que garante vinculação com o local de origem, que permite fazer o circuito rodoviário e permite a remessa de dinheiro em espécie [de volta para a Venezuela]. Eles também compram os produtos e mandam para lá, pois às vezes não adianta enviar dinheiro, pois os produtos, lá, simplesmente não existem.
NEXO
www.miguelimigrante.blogspot.com
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