Cenas do Haiti: saída intensificou-se depois da deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide, em 2004 / Reprodução/ Jornal da Unicamp
Imigrantes haitianos que vieram para o Brasil entre 2010 e 2014 e, recrutados por setores da agroindústria ou da construção civil, foram trabalhar no Estado de Santa Catarina, tiveram a mão de obra superexplorada por seus empregadores, ou seja, sofreram a violação do valor da força de trabalho. Conforme detalhou a tese de doutorado defendida pelo pesquisador Luis Felipe Aires Magalhães, no Nepo (Núcleo de Estudos de População) Elza Berquó, as empresas utilizavam vários mecanismos para tirar o máximo dos trabalhadores.
A primeira estratégia era descontar dos salários a concessão do alojamento, seguida da chamada alocação discriminatória, que significava colocar o haitiano em setores que exigiam mais força física ou em setores que favoreciam doenças relacionadas ao trabalho. Por último, a tese apontou que, sem conhecer direito o português, os imigrantes eram obrigados a assinar contratos com cláusulas nas quais abriam mão dos direitos trabalhistas depois da demissão.
A superexploração da mão de obra dos imigrantes haitianos é detalhada na tese e embasou denúncias feitas por pesquisadores dos Observatórios das Migrações ao Ministério Público do Trabalho. Luís Felipe integra a seção do observatório em São Paulo, com um projeto Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo) coordenado por sua orientadora, a docente Rosana Baeninger. Porém, as pesquisas, que abrangem outros Estados, por meio de uma rede de observatórios e outros grupos de pesquisa em outras regiões do Brasil, também mostraram a existência das práticas das empresas.
Segundo o pesquisador, eram descontados do salário de cada trabalhador em média 230 reais pelo alojamento. Em trabalho de campo, Luis Felipe identificou que as condições eram muito precárias. “Em alguns casos, 11 trabalhadores dividiam dois cômodos e um único banheiro, havia infiltrações e as construções tinham o pé direito baixo”, salienta.
Os haitianos, acrescenta o autor, mesmo recebendo menos que os brasileiros, eram alocados para os setores mais pesados, como o da “pendura” em frigoríficos e também o de miúdos. Frequentemente, os imigrantes levantavam peso além do permitido pela norma reguladora.
No setor de miúdos, os trabalhadores seguravam funis em alturas superiores às previstas na legislação, sendo obrigados a entre 8 ou 10 horas diárias com os braços situados numa angulação superior a 90 graus. “Um em cada quatro trabalhador está afastado por doença de trabalho”, complementa.
As questões relacionadas ao trabalho estão situadas num contexto mais amplo abordado pela tese, de estudo das dinâmicas da imigração haitiana, entendendo o fenômeno como processo histórico e social e também a composição de um perfil sociodemográfico dos fluxos. “Sempre houve a emigração no Haiti, mas a quantidade de pessoas desejosas de viver em outro país aumentou após um conjunto de transformações basicamente depois de 2004, quando o presidente Jean-Bertrand Aristide foi deposto e se agravou a crise política e eleitoral no país”. O envio da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), “uma força estrangeira, militar, que supostamente tentaria estabilizar o Haiti”, além das crises financeiras mundiais de 2007 e 2008, foram outros fatores que contribuíram para favorecer a imigração como constata o pesquisador. Em 2010 houve o terremoto que matou mais de 200 mil pessoas.
Eldorado
Segundo o estudo, um dos motivos da escolha dos haitianos pelo Brasil foi o período de crescimento econômico e inclusão social entre 2003 e 2010. “Foram criados 14, 7 milhões de empregos e isso chamou a atenção das famílias haitianas. O Brasil passou a ser considerado o novo eldorado da imigração haitiana. Paralelo a isto foi criado o visto de ajuda humanitária exclusivo e específico para os imigrantes daquele país”.
Os quatro primeiros anos da chegada de imigrantes haviam sido marcados pela indocumentação. O visto era muito restrito e obedecia a uma cota de 1.200 por ano. “Os que não tinham o visto de ajuda humanitária eram atraídos pela rede que opera as migrações, que envolve em alguma medida tráfico, venda de passagens, manipulação de informações e endividamento dos imigrantes”.
Luis Felipe observou que essa rede se aproveitava do fato de o Equador não exigir visto a nenhum cidadão do mundo, para usar o país como rota. “Foram articulados voos ou do Haiti ou da República Dominicana para o Equador. De lá os imigrantes faziam viagens de ônibus na clandestinidade cruzando todo o território peruano e chegavam à fronteira brasileira, nos estados do Acre ou do Amazonas, pedindo refúgio”.
Por conta da legislação, o Estado brasileiro era obrigado a abrir um processo de avaliação desse pedido, mas imediatamente oferecer carteira de trabalho e CPF ao imigrante. “A pessoa podia circular pelo território e procurar emprego”.
O fluxo que chegava documentado representava uma parcela pequena, de 10% a 15% do total de imigrantes, que vinha direto do Haiti para o aeroporto de Guarulhos. “A Resolução Normativa 102/2013, do Conselho Nacional de Imigração, além de revogar o limite para os vistos, permitiu a emissão em outras embaixadas brasileiras no exterior, não só no Haiti, mas também na República Dominicana, na Bolívia, no Equador e no Peru. Ampliou-se o leque de possibilidades para o imigrante”.
O recrutamento de trabalhadores começava nas áreas de concentração nas fronteiras ou em São Paulo, nos espaços de acolhimento. “Minha tese conseguiu identificar quais foram as empresas que inauguraram o processo. Empresas do Brasil inteiro estavam presentes, mas sobretudo as da construção civil, de serviços portuários e de limpeza urbana do Sul do Brasil, setores caracterizados por uma alta rotatividade da força de trabalho”.
Os imigrantes foram se deslocando, inicialmente para cidades do litoral norte de Santa Catarina. Depois os frigoríficos passaram a requisitar trabalhadores para o oeste do Estado. “Pudemos acompanhar esse processo nas duas pontas, participando das reuniões de recrutamento no litoral e vendo as condições de trabalho e de alojamento no interior”.
Perfil e dependência
Para compor o perfil sociodemográfico dos fluxos migratórios, o pesquisador participou de um trabalho de campo que entrevistou quase 300 imigrantes haitianos em 16 cidades do Brasil. Ele mesmo entrevistou 99 imigrantes haitianos na cidade catarinense de Balneário Camboriú. “As principais características desse imigrante são: ser do sexo masculino, adulto jovem de religião evangélica com ensino médio completo ou superior incompleto. Não foram poucos os enfermeiros, professores e agrônomos ouvidos por nós”. O perfil também integrou em nível nacional uma pesquisa intitulada “Haitianos no Brasil, perfil e trajetórias” coordenada pelo professor Sidney Antonio da Silva, da Universidade Federal do Amazonas.
Luis Felipe concluiu a tese formulando um conceito de migração de dependência para os fluxos de imigrantes do Haiti. Ele constatou a dependência que as famílias haitianas têm das remessas de dinheiro provenientes de trabalhadores que residem fora do país, não somente no Brasil. Essa dependência chegou a representar entre 22% e 26% do PIB do país de 2005 a 2015.
“O fenômeno da dependência está presente em diversas instâncias na história do Haiti, que se converte na maior produtora de riquezas coloniais do mundo nos séculos 17 e 18, para o país mais pobre da América, atualmente”. Para o pesquisador, o Haiti está em posição de marginalidade e subalternalidade na dinâmica do capitalismo mundial. A tese é dedicada a entender a migração como um desafio, como um direito humano à mobilidade “não como um crime ou como um problema”.
Luis Felipe salienta que as políticas de acolhimento no Brasil ainda são muito frágeis e improvisadas, uma vez que ainda está vigente o Estatuto do Estrangeiro que é uma lei de 1980, do período de ditadura militar. “O Estatuto enxerga o estrangeiro como uma ameaça, justificando assim o fato de que o primeiro representante do Estado que o imigrante encontra, seja um policial federal”. A imigração haitiana vem cumprindo o importante papel de retomada de estudos e de uma certa militância a respeito da importância de políticas públicas específicas aos imigrantes e refugiados, considera.
Edição: Jornal da Unicamp
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