quinta-feira, 24 de novembro de 2016

É preciso falar sobre o que está acontecendo no Haiti

Há mais de um mês da passagem do furacão Matthew, o Haiti apresenta seu contexto de vulnerabilidade agravado. Milhares de casas foram destruídas, bairros ficaram inundados e, segundo estimativas da agência Reuters, cerca de mil pessoas morreram. Contudo, diferentemente do que vimos no último ano com o atentado em Paris, a comoção internacional não ocorreu, a atenção dirigida a certos eventos foi evidenciada mais uma vez. O desastre haitiano não comove como comove um ataque terrorista em Paris, mesmo com uma intensa disparidade comparativa. Não só o furacão Matthew, mas também todo o contexto interno do Haiti, sublinhado após o terremoto em 2010, não movimenta a sociedade internacional e não repercute como algo pontual na Europa.
Seis anos atrás, um terremoto devastou cidades haitianas. A catástrofe natural conhecida como uma das piores da história, só sublinhou a gravidade do contexto interno do país. A situação haitiana vai muito além do fenômeno natural e ultrapassa suas fronteiras. A deterioração do cenário interno por tropas da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), por exemplo, nunca foi uma pauta recorrente, apesar de sua importância. Além disso, um possível respiro, após 12 anos de missão, que aconteceria no dia 15 de outubro deste ano, segundo determinação do Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2015, foi derrubado pela catástrofe.
Encerrando o Haiti
hurricane matthew haiti
Após um ano dos atentados, Paris ainda ocupa mais espaço nos jornais e mais atenção do que o recente contexto haitiano. Enquanto as coberturas sobre o Haiti estão encerradas, os atentados à cidade francesa continuam sendo pautados pelos jornais de todo o mundo - mesmo que o número de mortes, por exemplo, seja quase sete vezes menor se comparada ao caso haitiano. A gravidade da situação não consegue manter comparações e os problemas existentes pós-eventos têm complexidades desiguais. Ainda assim, é preciso ressaltar a diferença na importância dada pela mídia aos dois acontecimentos.
Do mesmo modo, as eleições americanas dominaram os espaços midiáticos em todo mundo nos últimos meses. Os efeitos da eleição de Trump e as polêmicas levantadas a partir da eleição do candidato republicano estabeleceram, nos últimos dias, espaços globais de discussão e análise. No Brasil não foi diferente, Donald Trump dominou noticiários e pouco a pouco esgotou movimentações sobre o Haiti.
A atenção dirigida é fruto de uma herança colonialista forte que construiu um imaginário social brasileiro próximo de Paris
A falta de insistência no assunto salienta uma ausência importante de engajamento no caso, apesar dos vínculos existentes - tropas brasileiras estão em território haitiano desde 2004. Além disso, o intenso fluxo de haitianos ao Brasil é mais um fator que deveria chamar a atenção dos brasileiros para o cenário em si.
A atenção dirigida é fruto de uma herança colonialista forte que construiu um imaginário social brasileiro próximo de Paris, uma cidade global que faz parte da idealização da sociedade de alguma maneira, assim como faz quaisquer movimentações dos Estados Unidos. O Haiti, por sua vez, não faz sequer parte da formação da maioria das pessoas - muitas não são capazes de nomear uma cidade haitiana. As redes transnacionais são configuradas a partir do centro da globalidade, constituídos por França, EUA, Inglaterra, entre outros países. Além disso, o fato do povo haitiano ter protagonizado a maior revolução de negros escravizados contra o estado colonial na América Latina, no fim do século XVIII, demonstra um exemplo forte de contra poder que as elites internacionais ainda procuram soterrar da memória mundial.
Ainda que as condições de um processo histórico nos direcionem aos Estados Unidos e à França, precisamos falar sobre o Haiti, sobretudo no Brasil, onde há intensos entrelaços com o país caribenho - a própria ocupação, as diretrizes governamentais e violações estão em jogo na parceria Brasil - Haiti.
Retirada impedida
hurricane matthew haiti
Antes do furacão, uma determinação da ONU sublinhava a retirada das tropas para 15 de outubro de 2016. Até outubro, a missão seria mantida e apenas uma crise muito grave ou uma catástrofe poderia alterar esse cronograma. O furacão aconteceu e mudou efetivamente a determinação anterior.
"O governo esperava que isso fosse acabar para poder se ver livre dessa situação, e com a ocorrência desse episódio, é difícil saber como o governo vai se recolocar" afirma Elaini Silva, professora de Relações Internacionais da PUC-SP, em entrevista. É importante salientar, segundo Silva, que talvez tenhamos uma idealização de hipervalorização da atuação das tropas. Em notas do governo haitiano e de jornais locais sobre o acontecimento, não há referências à Minustah, mesmo com o problema da proliferação da Cólera. "Não sei se é porque a Minustah já estava no seu processo de saída ou se é porque ela se tornou totalmente irrelevante durante o tempo".
A presença brasileira em território haitiano
hurricane matthew haiti
Há uma evidente falta de repercussão interna sobre a relação direta que o Brasil tem com o Haiti. "Apesar de o início da atuação não ser debatido com a atenção midiática, a decisão foi discutida no congresso, dentro da estrutura da presidência; assim não é algo que foi tomado as escuras pelo Estado brasileiro", coloca a professora. Ainda que poucos saibam, as tropas brasileiras foram enviadas para o país caribenho antes do terremoto; a presença do Brasil no Haiti foi um movimento político na arena internacional que fazia parte da estratégia brasileira do período.
O envio do exército brasileiro ocorreu durante a quinta missão de paz das Nações Unidas no Haiti para restabelecer a ordem institucional e democrática, que emergiu com a iniciativa regional do Cone Sul (Argentina, Brasil e Chile) em uma iniciativa de cooperação sub-regional combinada com ação multilateral conduzida pela ONU. Ao longo do tempo, a atuação das tropas sofre mudanças de conjunturas e intensificação do cenário interno haitiano, principalmente com o terremoto de 2010, que estendeu a presença estrangeira no território. Mesmo com toda a articulação configurada, a falta de conhecimento da sociedade brasileira sobre o caso é bastante perceptível.
Para Silva, a ausência de politização sobre o caso não é exclusiva da participação brasileira na Minustah, já que são poucos os movimentos da agenda internacional que acompanham algum envolvimento da sociedade, "ainda que as denúncias de abuso sexual e violência pelas tropas brasileiras no local deveriam evidenciar mais o tema", salienta.
Na falta de envolvimentos maiores, exprime-se um reflexo da falta de confiança no Estado. Essa desconfiança faz com que o aprimoramento da máquina política não se materialize como algo que participa da vida comum: "há um movimento de rejeição de decisões no cenário político e, no âmbito internacional isso é mais agravado, já que não se configura como algo que faz parte do cotidiano de uma forma evidente". A partir disso, algumas organizações da sociedade civil tentam então promover uma sensibilidade política maior, na tentativa de mostrar que existe uma relação direta com as pautas externas, entretanto isso ainda não alcançou um nível capaz de gerar modificação da atuação do próprio Estado.
Violações, Direitos Humanos e as Tropas
hurricane matthew haiti
As denúncias de abuso sexual de crianças pelas tropas são recorrentes. Diferentemente da postura tomada atualmente, o Estado brasileiro precisa enfrentar as graves violações que ocorrem no Haiti através de seus representantes. As denúncias envolvem crimes de brasileiros atuando em nome do Brasil e em nome da ONU. A fonte de proteção tornou-se, na prática, um instrumento de mais violações.
Silva avalia a gravidade da situação colocando que no âmbito interno, por exemplo, cabe ao Ministério Público (MP) proteger as vítimas, indicar que essas crianças realizem abortos e trabalhar para reparar a situação. Já no âmbito externo "não há uma equivalência do MP para configurar reparações, nem do federal, não do estadual. Nesse sentido, aparece uma nova colocação: como o governo haitiano vai fazer essa defesa em relação a uma força que foi internacionalmente sancionada? ".
Em novas articulações traçadas pelo violento furacão Matthew, Cuba e Venezuela - países que não tinham tropas no Haiti -, enviaram ajuda significativa para o país
Esse é um dos tópicos que deveria gerar mais discussão, pelo menos nos grupos que têm consciência e possibilidade de fazer esse debate, dentro da sua estrutura e recursos. "Não cabe a nós fazer essa discussão de uma maneira pós-pós-colonialista, inviabilizando ou silenciando a voz dos haitianos, que são os agentes que devem ter sua atuação reconhecida pelo Brasil - um grupo de fora, que não conhece as dimensões locais daquilo que ocorre internamente - e assim reproduzir uma estrutura que mina o próprio governo", afirma Silva. 

Ajuda Humanitária
hurricane matthew haiti
Em novas articulações traçadas pelo violento furacão Matthew, Cuba e Venezuela - países que não tinham tropas no Haiti -, enviaram ajuda significativa para o país. Já o Brasil, que tem tropas agravando o cenário de vulnerabilidade interno há mais de 10 anos, não criou uma nova rede de ajuda ou campanhas simbólicas. O fato levanta questões sobre a trajetória da relação Brasil-Haiti dentre as transições governamentais.
A presença das forças brasileiras no país caribenho sofre impactos de transições de governos. Anteriormente, havia uma prioridade de inserção internacional, em que o Brasil se colocava como uma potência também em termos de Segurança. Em uma nova retórica, essa questão não era prioritária, ainda que não negasse a proposta anterior, "fazia-se o mínimo para manter o compromisso firmado a longo prazo, sem ter o mesmo destaque ou a mesma posição em sua agenda" salienta a professora. Essa mudança na pauta influencia a estratégia de inserção que o governo havia estabelecido para repensar o papel do Brasil nas relações internacionais.
Por mais que nossas redes sociais não foram invadidas por bandeiras do Haiti, o tema precisa ser articulado pelos brasileiros
Mesmo com a alteração, um novo cenário se configura sob o governo Temer. A presença do Brasil em relação a temas que não sejam puramente comerciais aparece pouco provável nesse cenário, porque o perfil da atuação do governo está voltado para temas exclusivamente econômicos, com pautas ligadas a exportação, principalmente.
"A mudança no papel que a presença do Brasil ocupou na pauta do governo Lula para o Governo Dilma, agora no Governo Temer simplesmente esgota-se", sublinha Elaini Silva. Intensifica-se o discurso que não é papel do Brasil ter essa posição; paira sobre esse governo a identificação e o reconhecimento muito maior da posição brasileira como integrante da periferia global e, por isso mesmo, há pouca possibilidade de ter uma atuação um pouco mais acentuada, até mesmo na questão da ajuda humanitária. Além disso, a possibilidade de extensão do mandato, a partir do furacão, não faz parte da agenda e muito menos da destinação de recursos que o governo considera como válido. Há uma modificação de prioridades.
É preciso falar sobre o Haiti
hurricane matthew haiti
Ainda que todos os processos históricos tenham marginalizado o Haiti, o Brasil é um país fundamental de suas relações. Ainda que outros contextos internacionais tenham emergido, o país caribenho continua em uma situação alarmante e, como um dos principais personagens, o governo brasileiro não pode encerrar suas discussões sobre o caso após tantos anos de missões de paz e parcerias firmadas.
Por mais que nossas redes sociais não foram invadidas por bandeiras do Haiti, o tema precisa ser articulado pelos brasileiros, afinal está intrinsecamente ligado ao cenário interno, a parir do acréscimo dos fluxos migratórios em direção ao Brasil. É preciso criar linhas críticas sobre a atuação de forma geral e mobilizar uma discussão interna.
A presença das tropas brasileiras em solo haitiano, as graves violações de direitos humanos, o problema da migração e as parcerias lançadas para o desenvolvimento dividem esse desastre com o Brasil. O furacão é recente demais, e grave, para ser esgotado pela França ou pelos EUA, mesmo que pelo Estados Unidos de Trump.
Estudante de Relações Internacionais da PUC-SP




www.miguelimigrante.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário