O agostiniano recoleto, nascido em Navarra, na Espanha, Dom José Luiz Azcona, tem uma história de grande significado para a luta contra o tráfico humano de pessoas e a prostituição infantil, especialmente na Ilha do Marajó, no Pará. Nomeado bispo por São João Paulo II, em 1987, ele permaneceu na prelazia marajoara até a renúncia ao governo pastoral, no ano passado. Como bispo emérito, ele participou da reunião promovida pela Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora, em Brasília, encerrada nesta terça-feira, 01 de agosto. Dom Azcona está entre as pessoas ameaçadas de morte. Depois que se tornou emérito, dom Azcona continua morando no Marajó. Ele falou com a Assessoria de Imprensa da CNBB.
Como o senhor vê, hoje, a situação do tráfico de pessoas no Brasil?
A pergunta é difícil de responder porque os dados estatísticos oficiais não são confiáveis pela dificuldade de extraí-los de um modo objetivo e científico de uma realidade em si mesma oculta, secreta e em cujo segredo está o êxito perverso das organizações que se dedicam a este tipo de atividade.
De uma maneira geral, se poderia dizer, ao meu modo de ver, que continua da mesma maneira, ou talvez incrementada esta atividade devido a impunidade e da infiltração, cada vez mais intensa, de autoridades, da conivência de poderes, da organização desse tipo de instituição de perversidade e também pela falta de responsabilidade da sociedade. É aquele “fazer de conta que não vê”, quando a verdade do tráfico humano é tão evidente.
Creio que é bom destacar que não é somente no Pará, não é somente na Amazônia que essa situação e esse fenômeno se evidencia com mais clareza, mas também em ouros lugares. Se fizermos uma análise uma panorâmica rápida, não há uma diferença grande entre São Luís do Maranhão e o Pará. Da cidade de Fortaleza, por exemplo, saem expedições constantes de mulheres para a Itália, para a Eslovênia, com intuito de tráfico humano para serviços sexuais. Lá também se verifica a prostituição infantil como oferta, não como tráfico para o exterior, mas presente no turismo sexual. Se descermos, vamos ver que em Recife não deve ser muito diferente. Na Bahia e o Rio de Janeiro, do mesmo modo. E não se trata de uma situação apenas do litoral brasileiro, porque também no interior, nas estradas acontece o tráfico humano.
Eu me lembro de um determinado estado do Brasil, por ocasião daquele ano que o tráfico humano foi tema da Campanha da Fraternidade, fui convidado para falar diante dos presbíteros, das lideranças leigas e quando terminei a minha exposição, levantou-se uma senhora e disse: “Isso que o senhor falou também acontece aqui entre nós, não é preciso ir ver isso somente no Marajó, na Amazônia. Aqui acontece isso. Aqui existem grupos organizados que enviam jovens para a exploração sexual tanto para o norte do Brasil como para o estrangeiro. E nesses grupos há pessoas que participam da missa todos os domingos e eu gostaria muito que essa Campanha da Fraternidade fosse assumida com toda a seriedade pelos párocos e por todos os presbíteros”.
A minha resposta, portanto, é genérica, mas suficientemente clara para indicar: a situação de risco gravíssimo em que se encontram muitas mulheres e também homens jovens de serem traficados é evidente e é um perigo grave.
O senhor poderia traçar um perfil de quem é aquele que pratica o tráfico humano?
Não, eu não conseguiria traçar um perfil. Existem, claro, em nível internacional os chefes de máfias. Organismos internacionais que possuem um grande poder econômico que influenciam, às vezes, os políticos e o Judiciário. Eles influenciam deputados e empresários e isto é verdadeiramente um problema grave. São coisas que são feitas entre poderosos.
Lemos, por exemplo, que até nos Estados Unidos, algumas autoridades, talvez até ex presidentes, estão ou estiveram envolvidas no tráfico humano, sobretudo no tráfico de menores para atividades sexuais. Provar não é possível, mas a voz é recorrente e continuada. Podem existir e existem grandes autoridades envolvidas. Outro exemplo igual ocorre na Inglaterra. Na verdade, é um fenômeno mundial. Aquilo que parece um fenômeno, uma praga, uma chaga brasileira ou somente da Amazônia é um tumor que ameaça toda a humanidade e que está diante de nós, mas traçar um perfil direto do traficante, eu não poderia.
Quais as motivações, na opinião do senhor, que levam as pessoas a se tornarem vítimas do tráfico humano?
Me lembro que uma entrevista feita pela Globo, em 2010, num município do Marajó onde fui bispo durante 30 anos. A pergunta não era propriamente sobre tráfico humano, mas sobre prostituição. O repórter perguntou a uma menina de 16 anos: “Por que você se prostitui? Seus pais passam fome, estão desempregados? ” Ela respondeu: “meus pais trabalham, temos uma família que não passa fome, estamos bem. Agora, eu gostaria de ter perfume, ter certo tipo de sapatos, roupas e por isso me prostituo”.
Essa motivação tem por trás a ideologia da Mídia em apresentar um mundo feminino realizado ligado a isso, à exterioridade de possuir a beleza corporal e nada mais. E isto está, comprovadamente, entre os motivos do tráfico humano.
Mais forte ainda do que isso está a necessidade de sobrevivência. Lá entre nós, por exemplo, a população é carente. Nós temos um município, Melgas, com o IDH mais baixo do Brasil. E perto dele temos mais outros dois municípios que estão entre os dez mais pobres do Brasil. Mulheres, sobretudo mulheres, saem do Marajó para sobreviver, par anão passar fome. Depois, um lugar onde há muita injustiça, onde a distribuição desigual da renda é evidente e o desemprego estrutural é tão claro que um grande número de mulheres tem como motivação principal busca da sobrevivência e de promover-se na vida fugindo do inferno, que as vezes, é o Marajó.
Por outra parte, existe um grande número delas que sai e não são traficadas. Elas têm baixa educação, não tem preparação para a vida de quase nada e são culturalmente fechadas. Há, ainda, outras motivações que são: conhecer o mundo, o primeiro mundo, conhecer o que é ter um carro, ter uma casa.
E sobre a realidade das crianças? O tráfico e a prostituição infantil?
Sei que no Marajó eram, possivelmente continuam sendo traficadas meninas e meninos para a França por meio da Guiana Francesa para a venda de órgãos. Isso existia. Sobre o tráfico de crianças antes de nascer, eu conheço uma realidade que envolvem pessoas do Suriname. Elas vão ao Marajó para buscar mulheres saudáveis, bonitas, estabelecendo com elas até mesmo um contrato, com a condição que elas se deixem engravidar por homens que conhecerão em momento oportuno. Para isso, receberão uma taxa de 20 a 25 mil reais ou coisa semelhante. Assinados esses contratos, elas iam para o Suriname, e repito, talvez continuem indo, porque nossas autoridades são muito omissas. Lá no Suriname, essas mulheres se engravidam desses homens que são encaminhados por organizações internacionais. As crianças nascem e, por dois ou três anos, essas mulheres acompanham as crianças para cuidar e amamentar e depois elas têm que entregar os filhos sem saber o destino deles, sem saber nada.
O senhor tem sido ameaçado de morte por fazer denúncias sobre estas situações. O senhor tem medo?
O medo tem me acompanhado durante anos. Às vezes, ao sair do meu quarto para me dirigir a capela, pensava que atrás da porta poderia estar o meu assassino. Durante meses, eu tive esse pensamento. No corredor entre o quarto e a capela tem uma sacada e eu pensava que naquela direção poderia ter um rifle apontado para mim. E, muitas vezes, andando pelo interior, muitas vezes, o pensamento da morte me acompanha.
Creio que é um pensamento salutar porque, no meu caso, o medo não criou um sentimento de angústia e de ansiedade. Deus me deu a paz suficiente para enfrentar com reflexão e com sinceridade também a situação em que me encontrava. Entrando por mares e rios, num barco de uma paróquia, é possível que uma lancha rápida com uma metralhadora possa terminar conosco. Em menos de dois minutos, podem matar nós todos.
Eu tenho dito e dei este testemunho em Roma diante de mil sacerdotes em um retiro espiritual em São João de Latrão: “irmãos, não tenham medo. A Igreja está sendo chamada para o martírio, como nos tinha falado um bispo da Síria onde mulheres e homens tinham sido crucificados, adolescentes decapitados por não renegarem a fé em Cristo. E é Cristo que nos está chamando para dar esse mesmo testemunho com a nossa vida. E nós, que somos os pastores, devemos ir na frente. Não tenham medo. Aqui vos fala alguém que é um covarde, que sou eu, mas que sabe que o Espírito Santo dá a força, a fortaleza e a coragem para enfrentar a morte. Olhar nos olhos da morte e detrás deles ver o Ressuscitado. Para isso, tive que rezar porque considero que se alguém quer realmente encontrar paz em entregar-se à morte por Cristo e pelos irmãos, ele tem que rezar. Até que Deus ouviu, ouviu a minha oração e me deu essa paz fundamental para dizer: Senhor, aqui estou e estou disposto a morrer por Ele, pelo Evangelho. E, na verdade, para mim, hoje, e desde que Deus me deu esta convicção da possibilidade de poder morrer pelo Evangelho e pelos irmãos sinto que esta seria a melhor, mais alegre e plenificante saída desde mundo para minha vida humana, religiosa e episcopal.
CNBB
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