Para alguns migrantes, aderir aos valores laicos das sociedades ocidentais significa ter de cortar os laços com a família e a comunidade de origem. Aqui começa a nascer o problema da identidade cultural nacional
Alguns aspetos, antes obnubilados, das migrações ganharam recentemente uma relevância nova: falo dos aspetos identitários e culturais.
Na Europa ocidental, e refiro-me agora tão-somente aos migrantes dos países do Sul – Portugal, Espanha, Grécia e Itália –, a questão da identidade cultural nos movimentos migratórios pós-guerra colocou-se de maneira mitigada.
Todos eram cristãos e, com mais ou menos educação, todos orientavam as suas vidas por um conjunto de valores culturais comuns.
A lei do Estado de acolhimento era aceite por todos como regra comum de vida, o que não constituía problema de maior, pois ela quase nunca conflituava com os valores fundamentais das sociedades de origem.
Daí que, em regra, com mais ou menos especificidades gastronómicas e mais ou menos práticas religiosas distintas, não se verificaram problemas graves na integração dos recém-chegados nas sociedades de acolhimento.
O tempo e o dinheiro dos países que recebiam os emigrantes do Sul foram suficientes para resolver os preconceitos iniciais e os pormenores da integração cultural.
Questão diferente ocorreu, porém, com os emigrantes provindos das antigas colónias de alguns países europeus, sobretudo em França.
Refiro-me, obviamente, aos emigrantes magrebinos e a alguns africanos subsarianos que, devido à religião que professavam, reagiam mal ou não conseguiam comungar dos valores liberais que foram adquiridos esforçadamente ao longo dos últimos séculos pelas sociedades europeias.
Para alguns deles, aderir a tais valores laicos significava mesmo ter de cortar os laços com a família e a comunidade de origem.
É aqui, talvez, que começa a nascer o problema da identidade cultural nacional tal como ela é hoje encarada em muitos países europeus e explorada pelos movimentos populistas.
A questão não está, porém, na maior ou menor tolerância com as particularidades da indumentária dos emigrantes ou com a sua religião, mas no facto de tais particularidades serem entendidas hoje – bem ou mal – como querendo significar uma recusa ostensiva dos valores liberais que regem as sociedades de acolhimento.
No fundo, o que vem tornando essas particularidades de mais difícil aceitação nos países de acolhimento é elas terem passado a ser ostentadas no seio dos países europeus como um sinal de recusa de uma sociedade com valores liberais no que respeita à autodeterminação individual face ao Estado, à religião e à comunidade.
Vivendo na Holanda há já três anos, não me é difícil constatar o uso crescente do véu islâmico por parte das adolescentes de origem magrebina que ali nasceram e estudaram. Tal prática, todos me dizem, era quase desconhecida seis anos antes.
O efeito combinado de ação e reação à exteriorização desses sinais está, na verdade, a criar condições para uma rutura política e cultural que, creio, ninguém quer afinal.
De um lado, a questão é, portanto, só uma: a aceitação, ou não, pelos migrantes dos valores liberais e da organização republicana e laica da sociedade.
Do outro, para as sociedades de acolhimento, é manter rigorosamente o respeito por tais valores liberais na integração das populações que se acolhem, tendo como limite intransponível o respeito que tais valores devem merecer também aos que nelas buscam refúgio ou um futuro melhor.
Paul Bowles, em “A Casa da Aranha”, ilustrou há muito, e melhor do que muitos livros científicos, a dificuldade de entendimento e convergência entre os valores prosseguidos em ambas as sociedades.
A lei do Estado de acolhimento terá de ser, pois, o denominador comum que rege as relações entre nativos e migrantes.
Jornali
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