As organizações abaixo subscritas, atuantes no âmbito do
Direito Migratório e do Direito Internacional dos Refugiados, vêm expressar seu
repúdio e preocupação com as falas do presidente da República, no dia 14 de
outubro de 2022, sobre meninas venezuelanas, de 14 e 15 anos, em São Sebastião,
região administrativa do Distrito Federal.
Tal manifestação afronta diretamente garantias asseguradas
nas Políticas do Estado brasileiro de proteção a adolescentes, mulheres e
migrantes, banaliza a prática de conduta criminosa e as coloca em ainda maior
risco de violência pela estigmatização, desinformação e xenofobia. Ainda mais
grave por se tratar de fala do presidente da República, sobre quem recai o
dever de fazer cumprir princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição
Federal Brasileira.
A fala do presidente promove desinformação sobre a
comunidade venezuelana do Distrito Federal, uma vez que organizações da
sociedade civil locais confirmaram que não há indícios da existência de redes
de exploração sexual na região1 2 e não foram apresentadas provas sobre as
graves insinuações efetuadas. Jornalistas também apuraram que, no dia da
visita, um projeto social envolvendo atividades de estética estava acontecendo
no local. Ressaltamos que, à época do fato relatado, em abril de 2021, não
foram levantadas quaisquer das alegações feitas agora, inclusive em nenhum dos
registros publicados nas redes sociais do presidente da República3.
A exposição da comunidade venezuelana, promovida através de
acusações infundadas do presidente da República, coloca em risco a integridade
física e segurança de venezuelanos e venezuelanas, e, de forma ainda mais
preocupante, de meninas e adolescentes dessa comunidade. Conforme demonstra uma
coluna do Globo, desde que a fala começou a repercutir no último fim de semana,
a casa tem sido cercada por repórteres, além de a primeira-dama e a senadora
eleita Damares Alves terem forçado um encontro, em caráter sigiloso, sem a
presença de organizações e instituições que atuam na defesa de crianças e
adolescentes e pessoas migrantes, mesmo após a inicial recusa das líderes
venezuelanas da comunidade4.
Todos esses acontecimentos desrespeitam o paradigma da
proteção integral das crianças e adolescentes expresso no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), que, inclusive, estabelece como dever de todos garantir o
direito à privacidade, preservando a imagem e identidade dessas pessoas na
condição peculiar de desenvolvimento (Art. 17), “pondo-os a salvo de qualquer
tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (Art.
18).
A afirmação do presidente também estimula a estigmatização
de pessoas migrantes e refugiadas e, por consequência, busca deslegitimar o
direito de migrar. Atualmente, existem mais de 365 mil pessoas migrantes e
refugiadas venezuelanas no Brasil5, que contribuem para o desenvolvimento
econômico e cultural do país. Apesar de o país ter avançado no atendimento
emergencial humanitário com a Operação Acolhida, ainda faltam políticas de
longo prazo para a efetiva integração socioeconômica dessas pessoas. Neste
contexto, associações e coletivos de migrantes, organizações da sociedade
civil, instituições e organizações internacionais têm somado esforços para
acolher, integrar e proteger pessoas migrantes no país. A fala proferida pelo
Chefe de Estado está na contramão desses esforços e contribui para a propagação
da xenofobia, podendo afetar negativamente a percepção social sobre a migração.
O combate e prevenção à discriminação e à xenofobia devem ser considerados
prioridade em um Estado democrático de direito e são princípios da Lei de Migração
brasileira (Art. 3, II).
Ainda que fosse identificado qualquer crime de exploração
sexual no local, o presidente da República, na condição de agente público,
teria o dever de seguir o correto protocolo a ser adotado nesses casos,
incluindo o acionamento das redes de proteção às possíveis vítimas, conforme o
ECA e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo
Brasil. Além disso, o procedimento aplicado a pessoas migrantes e refugiadas
deve ser o mesmo aplicado para pessoas brasileiras.
De acordo com o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a
Infância, as obrigações estatais definidas na Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança se aplicam a todas as crianças que se encontram no país,
independentemente de nacionalidade, status migratório ou apatridia. Além disso,
o Unicef também afirma que os Estados devem tomar medidas positivas para
garantir que crianças vítimas de tráfico desfrutem de todos os direitos
previstos na Convenção, levando em consideração o princípio do melhor interesse
da criança e o direito à proteção sem discriminação de raça, gênero, religião,
origem, nacionalidade ou status migratório.
Os canais de denúncias oficiais são fundamentais à proteção
de crianças em situação de exploração ou abuso sexual. Para denunciar estes
crimes, deve-se buscar o Conselho Tutelar, delegacias especializadas no
atendimento de crianças ou de mulheres, o Ministério Público ou ligar para o
Disque Direitos Humanos (Disque 100), que recebe denúncias de violações de
direitos humanos contra crianças e adolescentes7, e para a Central de
Atendimento à Mulher (Disque 180), que recebe denúncias de violações contra
mulheres, inclusive as migrantes e refugiadas, e as encaminha aos órgãos competentes8.
Ambos os canais recebem denúncias gratuita e anonimamente. Toda possível
situação de violência deve ser reportada para a ciência do poder público e seus
respectivos procedimentos investigatórios, sob pena de a omissão também
acarretar em uma conduta criminosa.
Por fim, saudamos iniciativas como a da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que entrou com representação
junto à Defensoria da Infância e da Adolescência para garantir medida protetiva
às adolescentes venezuelanas citadas pelo presidente Bolsonaro9. O momento
requer que seja dada prioridade absoluta à proteção a essas adolescentes
migrantes e às lideranças venezuelanas expostas neste episódio.
Assinam:
Associação Nacional de Centros de defesa da Criança e do
Adolescente - ANCED
Associação Palotina e Congregação das Irmãs do Apostolado
Católico
Cáritas Arquidiocesana de São Paulo
Cáritas Brasileira
Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2
Cáritas Brasileira Regional Paraná
Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante - CDHIC
Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação
Popular - CESEEP
Centro de Integração do Migrante
Conectas Direitos Humanos
Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP FICAS
Fundação Avina
Instituto Migrações e Direitos Humanos - IMDH
Missão Paz
Migraidh Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional
UFSM Observatório das Metrópoles - São Paulo
Observatório Eclesial Brasil
Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes -
ProMigra Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados - SJMR
Signis Brasil
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