sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Estratégia de interiorização favorece integração socioeconômica de pessoas refugiadas e migrantes, mas ainda beneficia mais homens que mulheres, aponta pesquisa

 

Depois de viver em situação de rua com o filho pequeno, a venezuelana Rosa conseguiu ser interiorizada para o Rio de Janeiro (RJ) e hoje trabalha com carteira assinada © ONU Mulheres / Claudia Ferreira.

Mesmo no contexto de pandemia, pessoas refugiadas e migrantes vindas da Venezuela tiveram mais acesso a empregos formais, educação e moradia no Brasil depois que foram realocadas voluntariamente de Roraima para outros estados do país. Esse processo, chamado de interiorização, possibilita melhorias nas condições de vida das pessoas que são interiorizadas em diferentes modalidades. Entretanto, a estratégia ainda oferece menos oportunidades de integração socioeconômica às mulheres – em especial, às mulheres negras. É o que aponta a pesquisa “Oportunidades e desafios à integração local de pessoas de origem venezuelana interiorizadas no Brasil durante a pandemia de Covid-19”, lançada hoje (11) pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a ONU Mulheres e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), com apoio do Governo de Luxemburgo.

A estratégia de interiorização é um dos pilares de atuação da Operação Acolhida, principal resposta ao fluxo de pessoas venezuelanas deslocadas no Brasil. Trata-se de iniciativa que realoca pessoas refugiadas e migrantes que estão em Roraima, principal porta de entrada dessa população, para outros estados do Brasil, apoiando o processo de acolhimento e proteção humanitários até então fortemente concentrados na fronteira com a Venezuela. Desde 2018, já foram mais de 78 mil pessoas interiorizadas para mais de 800 municípios em todas as regiões do país.

Os principais dados da pesquisa foram apresentados em evento realizado em Boa Vista (RR), que contou com a presença de representantes da sociedade civil, da academia e de organizações que também trabalham para acolher e atender pessoas refugiadas e migrantes, tanto no estado quanto durante o processo de interiorização.

Principais dados da pesquisa foram apresentados em evento realizado nesta quinta-feira, 11, em Boa Vista (RR), com participação de academia, sociedade civil e organizações que trabalham na resposta ao fluxo migratório © Camila Geraldo / ACNUR.

“A estratégia de interiorização no Brasil é referência mundial neste tipo de integração e no recebimento de refugiados e migrantes. Um dos grandes feitos do estudo é mostrar como este processo transformou a vida das pessoas”, disse Arturo de Nieves, chefe interino do escritório do ACNUR em Roraima, durante o evento de lançamento da pesquisa.

Desafio à integração socioeconômica – De maneira geral, o número de homens e mulheres venezuelanas interiorizadas é similar – enquanto eles representam 51,7% da população interiorizada, elas representam 48,2%. Porém, a pesquisa aponta diferenças significativas nas modalidades de interiorização no comparativo entre homens e mulheres, o que afeta diretamente a integração socioeconômica. Mulheres estão sub-representadas na modalidade vaga de emprego sinalizada (27,3%) e são maioria (57,3%) na modalidade de reunificação familiar.

A pesquisa também aponta que há maior dificuldade de inserção laboral entre mulheres, sobretudo para mulheres com muitos filhos e famílias monoparentais. Essa dificuldade é percebida tanto entre as que são interiorizadas quanto entre as que permanecem em abrigos em Roraima. Pessoas interiorizadas com filhos e filhas têm participação expressiva entre as que se interiorizaram na modalidade institucional (92,2%) e reunificação familiar (83,8%) e menor entre as que foram interiorizadas com vaga de emprego sinalizada (74,5%). Ou seja, na interiorização, pessoas solteiras e sem filhos acabam tendo mais chances de ir para outros estados com a possibilidade de um emprego.

A partir dos dados coletados, que apontam a diferença entre homens e mulheres no acesso a uma vaga de emprego sinalizada na interiorização, a pesquisa recomenda tomar a dimensão de gênero de maneira transversal na formulação e implementação de políticas destinadas à população venezuelana, em diálogo com as políticas de proteção e promoção dos direitos de mulheres no país e, em particular, no que se refere à inserção laboral e políticas de geração de renda.

Foi o caso de Rosa Maria, que está há quatro anos e meio no Brasil. Viúva e com um filho de sete anos na época, ela deixou a Venezuela em direção a Roraima quando começou a faltar comida na mesa. Por dois anos, a vida de mãe e filho em Boa Vista foi bastante dura, como ela mesma descreve. Sem conseguir emprego, morou na rua, precisou tomar banho em rio, passou fome. Até que conseguiu uma vaga em um abrigo, de onde ela e o filho foram interiorizados para o Rio de Janeiro, na modalidade institucional.

Quando chegou, o único emprego que conseguiu foi de meio período como caixa de supermercado, onde ganhava R$ 500 por mês – insuficiente para manter a ela e ao filho. Sem outras oportunidades, ela buscou se capacitar, aprimorar o português e a buscar crescimento dentro da empresa. Atualmente, ela ganha o suficiente para pagar o aluguel de uma casa de dois cômodos e, inscrita em programas sociais públicos, ela e o filho estão refazendo a vida no Brasil. “Sou sozinha com meu filho. E cuido do meu emprego porque é a minha forma de viver”, afirma. “Faz dois anos e meio que estou trabalhando e me superando a cada dia.”

Trabalho e renda – De cada 10 pessoas interiorizadas, 8 estão dentro da força de trabalho, aponta a pesquisa. Porém, quando é feito o recorte de gênero, percebe-se que a participação feminina no mercado de trabalho é consideravelmente mais baixa – 72,2% contra 96,1% entre os homens. O mesmo se percebe nas taxas de desemprego: enquanto a taxa geral é de 11%, no recorte de gênero, percebe-se que ela é de 17,7% entre as mulheres contra apenas 6,4% entre os homens.

“Todas as modalidades de interiorização mostram um aumento de oportunidades, mas mulheres e homens têm oportunidades em graus diferentes. Historicamente, as mulheres têm dificuldades maiores em relação à inserção e permanência no mercado de trabalho. Isso também acontece no contexto atual”, explicou Vanessa Sampaio, gerente da área de Empoderamento Econômico da ONU Mulheres.

A conselheira da embaixada de Luxemburgo no Brasil, Nadia Mellina, ressaltou a importância dos dados obtidos: “Agora é a hora de usar esse conhecimento para desenvolver políticas que fortalecem as oportunidades e os direitos socioeconômicos para pessoas refugiadas e migrantes da Venezuela no Brasil.”

Apesar de a maioria da população venezuelana interiorizada ocupada encontrar-se empregada no setor privado (71,7%), o grau de informalidade laboral desta população é ainda relativamente alto (32,4%) e apresenta diferenças relevantes entre os sexos: a informalidade laboral das mulheres (37,3%) é 1,2 vezes maior que a dos homens (29,4%).

A pesquisa também aponta que, entre a população interiorizada, a taxa de subutilização da força de trabalho feminina (41,3%) é 3,5 vezes maior que a taxa de subutilização masculina (11,8%). Com relação à subutilização da força de trabalho, a menor taxa foi registrada na modalidade de vaga de emprego sinalizada (10,4%) e a maior, na modalidade de reunificação familiar (30,1%).

O rendimento médio mensal da população venezuelana interiorizada ocupada com 18 anos ou mais é de R$1.450,98, sendo quase 32% superior ao salário-mínimo vigente no Brasil em 2021, ainda que mais baixo entre as mulheres, R$1.177,63. Em comparação com a população brasileira, as mulheres têm rendimento médio mensal individual de R$2.215, enquanto as venezuelanas interiorizadas recebem, em média, R$1.177, quase metade do valor.

Escolaridade – A pesquisa também chama a atenção para os reflexos do ensino superior na empregabilidade de pessoas refugiadas e migrantes venezuelanas no Brasil. Entre a população brasileira em geral, 16,8% possuem ensino superior completo; entre pessoas venezuelanas interiorizadas, a parcela de quem possui essa escolaridade é similar, de 15%. Entre as mulheres venezuelanas interiorizadas, 17,5% possuem ensino superior completo, média acima da encontrada entre homens interiorizados, de 12,7%. Entretanto, as mulheres apresentam maior dificuldade de ingressarem no mercado formal de trabalho brasileiro.

Pessoas com ensino superior completo também representam uma proporção maior das interiorizadas na modalidade de vaga de emprego sinalizada (20,2%) – como esperado, por tratar-se de grupo com maior possibilidade de inserção laboral, ainda que subutilizada – e na modalidade institucional (17,1%). Em geral, pessoas interiorizadas na modalidade de vaga de emprego sinalizada possuem melhor perfil educacional (mais anos de estudo), com baixa participação de pessoas apenas com ensino fundamental, indicando impacto de seletividade pelas empresas no momento do recrutamento.

Desafios e vulnerabilidades – O impacto da dificuldade em conseguir emprego e renda reflete em diversas áreas – desde a incerteza de que haverá recursos para itens básicos, como moradia, até a insegurança alimentar. Das pessoas interiorizadas entrevistadas, 33,7% das mulheres e 30,8% dos homens afirmaram que já sofreram situação de insegurança alimentar após a interiorização.

Outro tema recorrente nas entrevistas é a discriminação: 26,1% das pessoas interiorizadas indicaram que, em algum momento, se sentiram discriminadas em função da nacionalidade.

Com um peso maior na vida de mulheres, a dificuldade de acesso à saúde, em especial à saúde sexual e reprodutiva, também é destacada na pesquisa. No momento das entrevistas, 4,8% das mulheres venezuelanas interiorizadas e 6,5% das mulheres abrigadas em Roraima informaram estar grávidas. Apenas 29,3% das interiorizadas e 35,9% das abrigadas afirmaram que queriam engravidar naquele momento, enquanto 28,5% das interiorizadas e 36,7% das abrigadas grávidas reportaram não querer mais filhas e filhos quando engravidaram. Esses dados apontam para a necessidade de aumentar o conhecimento sobre planejamento familiar e acesso à saúde materna nas diferentes fases da vida reprodutiva das mulheres em situação migratória e sobre o impacto da gravidez para os projetos familiares e pessoais.

Sobre a pesquisa – A pesquisa teve início em janeiro de 2021 e previu duas fases de coleta de dados quantitativos: a primeira aconteceu entre maio e julho de 2021 e a segunda ocorreu entre os meses de outubro e novembro de 2021. Foram entrevistadas 2 mil pessoas de origem venezuelana interiorizadas entre março de 2020 e agosto de 2021 e 682 pessoas residentes em abrigos em Boa Vista (RR), para fins de comparação. Foram realizadas, ainda, entrevistas com 48 gestores, gestoras e representantes de organizações internacionais, sociedade civil e atores governamentais atuando no nível federal, estadual e local, direta ou indiretamente envolvidos na Estratégia de Interiorização.

O estudo foi desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por meio do seu Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) e do IPEAD (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas Administrativas e Contábeis de Minas Gerais), com apoio da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Para o lançamento, as agências apresentam um site especial onde, além do download da pesquisa, é possível ter acesso a infográficos e histórias de mulheres que refletem os dados divulgados. Confira em https://www.onumulheres.org.br/pesquisa-moverse/

Sobre o Moverse – Iniciado em setembro de 2021, o programa conjunto Moverse – Empoderamento Econômico de Mulheres Refugiadas e Migrantes no Brasil é implementado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ONU Mulheres e Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), com o apoio do Governo de Luxemburgo. O objetivo geral do programa, com duração até dezembro de 2023, é garantir que políticas e estratégias de governos, empresas e instituições públicas e privadas fortaleçam os direitos econômicos e as oportunidades de desenvolvimento entre venezuelanas refugiadas e migrantes. Para alcançar esse objetivo, a iniciativa é construída em três frentes. A primeira trabalha diretamente com empresas, instituições e governos nos temas e ações ligadas a trabalho decente, proteção social e empreendedorismo. A segunda aborda diretamente mulheres refugiadas e migrantes, para que tenham acesso a capacitações e a oportunidades para participar de processos de tomada de decisões ligadas ao mercado laboral e ao empreendedorismo. E a terceira frente trabalha também com refugiadas e migrantes, para que tenham conhecimento e acesso a serviços de resposta à violência baseada em gênero.

Acnur

www.miguelimigrante.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário