quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Assassinato de Moise revela como a “democracia racial” brasileira acolhe populações migrantes

 


Reprodução/ TV Globo

Há pouco mais de uma semana, o jovem de 24 anos Moise Mugenyi Kabagambe, congolês e refugiado no Brasil há 11 anos, foi assassinado brutalmente no quiosque Tropicália, na orla da praia da Barra da Tijuca. A violência promovida por cinco homens, após Moise ter cobrado sua remuneração por diárias trabalhadas, revela como a realidade de migrantes internacionais e refugiados/as racializados/as é a do desprezo e ódio étnico-racial, assim como de insegurança laboral.

Este trágico acontecimento elucida a dura realidade da força de trabalho migrante e/ou refugiada que migra para buscar sua sobrevivência, fugindo de conflitos territoriais, perseguições étnicas, culturais, religiosas e políticas, que quando chega ao Brasil se depara com uma dura atmosfera disseminada pelo ethos das nossas burguesias racistas, patriarcais e fascistizantes.1

Moise, antes de vir ao Brasil, onde chegou aos 11 anos. Reprodução/TV Globo

Os fluxos migratórios na sociedade burguesa possuem uma grande diversidade, no que se refere à divisão internacional do trabalho, em seu desenvolvimento desigual e combinado entre os países e regiões. Nesse sentido, abrange elementos circunscritos à origem-destino, às classes sociais e ao momento histórico do capitalismo. Existem particularidades de determinados contextos sócio-históricos, que indicam o direcionamento do fluxo de pessoas e como os distintos movimentos de expropriações2 – a exemplo das guerras, que é a realidade da República Democrática do Congo3 – expulsam enormes contingentes populacionais.

Além disso, há as permanentes reestruturações da produção, seja com o aumento da composição orgânica do capital (que resumida e superficialmente significa o aumento de máquinas ou a injeção de novas técnicas que reduzem o trabalho vivo) ou com a desterritorialização das cadeias produtivas, que ocasionam a falta de emprego e a ausência de possibilidades de sobrevivência. Sintetizando, vemos que os fluxos migratórios acompanham o modo de como as leis econômico-sociais do capital se irradiam em determinadas particularidades regionais e históricas.

A maior parte dos/as trabalhadores/as, quando migram diante das situações supracitadas, torna-se mais suscetível a uma situação de trabalho mais precarizada.4 Essas pessoas só saem de seus países ou região de origem para locais onde há oferta de ocupação e de, supostamente, melhores condições de vida, porque vivem ou a ausência do trabalho ou um cenário de conflitos/guerras ou perseguições políticas ou étnico-raciais e culturais.

Atualmente, a contemporânea recepção aos/às migrantes internos ou internacionais no Brasil causa estranheza em algumas pessoas devido às construções de mitos da imagem do nosso país, onde supostamente existem apenas brasileiros/as hospitaleiros/as e cordiais. A verdade é que essa recepção calorosa depende da origem, da raça/etnia e da classe social do/a migrante. E esse mito de “povo hospitaleiro” é correlato a outro mito, que é o da “democracia racial”.

E esse mito de “povo hospitaleiro” é correlato a outro mito, que é o da “democracia racial”.

A verdadeira história da nossa formação econômico-social requer o resgate sem mistificações sobre a implementação do trabalho livre junto às políticas de incentivo à imigração que tiveram o propósito de embranquecer o nosso país e garantir o extermínio de negros/as, indígenas, “híbridos” como os planaltinos e nordestinos/as, no plano dos eugenistas.5 Portanto, uma camada social composta por migrantes e refugiados/as, que longe de suas pátrias – alguns indocumentados/as, é alvo de variadas agressões e grande parte é condicionada a vender sua força de trabalho em condições de máxima degradância.

Abrimos esse parênteses histórico, para destacarmos que o grau de violência, – visto no caso de Moise,6 mas também de diversos migrantes internacionais como haitianos/as, senegaleses/as, venezuelanos/as, bolivianos/as e peruanos/as – não pode ser considerada apenas como uma expressão contemporânea xenófoba da extrema-direita, mas devem ser destacados os processos estruturais da racialização e, por sua vez, de uma suposta hierarquização étnico-racial cultural, que alicerça o tecido social capitalista mundial e apresenta particularidades marcantes na formação econômico-social brasileira.

É evidente que em uma conjuntura internacional de crise estrutural do capital, que promove o avanço de posturas reacionárias e de bandeiras anti-imigração, pioram as possibilidades de progresso de políticas migratórias mais amplas e “legitimam” as agressões morais e físicas a essas pessoas.

Desde o golpe jurídico-parlamentar7 e alavancado com o triunfo de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, houve uma reorientação das políticas imigratórias em uma direção mais restritiva, por passarem a assumir a xenofobia e o racismo como uma prática legítima.8

Logo, observamos que, com o pujante levante da extrema-direita, associado às ideologias xenófobas e racistas, há um forte apoio dos aparatos coercitivos e ideológicos do Estado burguês, que promovem uma barbárie crescente, em que a violência se ancora nos discursos odiosos. Sua intensificação exprime ideias conservadoras e raivosas a diferentes grupos sociais, dentre eles, os refugiados, sobretudo negros e negras.

Moise, jovem negro, congolês, refugiado no Brasil desde 2011 foi vítima dessa violência engendrada no interior de um sistema racista que com requintes crueldade explana a indiferença da sociedade por corpos negros violados.

Temos que reconhecer que apesar da tradição migratória no Brasil, não existe acolhida a muitos migrantes africanos que buscam no Brasil proteção e segurança. Segundo o Comitê Internacional para os Refugiados (CONARE), a comunidade congolesa refugiada no Brasil se configura atualmente como a terceira nacionalidade com maior número de pessoas reconhecidas como refugiadas no país9, entretanto, apesar de estarem em grande número, em um país onde acreditavam ser acolhedor, vivenciam cotidianamente a discriminação e a insegurança, encontrando outra realidade, muito mais cruel, e que carrega a herança escravocrata permeando as vidas negras.

O novo local de morada escolhido pela família é inseguro, apesar de uma das mais modernas legislações atinentes ao refúgio

O estarrecedor caso do jovem Moise traz a reflexão que o novo local de morada escolhido pela família é inseguro, apesar de desenvolver uma das mais modernas legislações atinentes ao refúgio (Lei 9.474;97), além de ser o primeiro país da América Latina a elaborar e sancionar um documento com esse teor.

Ademais, tal fato expõe que as possíveis redes construídas pelos refugiados, seja de familiares, parcerias, amizades ou proximidades culturais, não os protegem desse sistema desumanizador que explora, expropria, tortura e mata nessa “rota de fuga” e que deveria ser uma rede de proteção frente as mazelas sociais e as perseguições sofridas nos seus Estados de origem.

* Assistente social, professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e militante da Resistência.
** Assistente social, mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela UFF e doutoranda em Serviço Social pela UERJ.

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