quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Governo chileno faz mudanças de última hora em Nova Lei de Migração para lidar com crise migratória

 Um acidente de trânsito envolvendo o transporte ilegal de imigrantes venezuelanos no norte do Chile escancara, novamente, o problema da imigração irregular no país. Em resposta, o governo do presidente Sebastián Piñera corre contra o tempo para tentar aprovar o texto do regulamento da Nova Lei de Migração, promulgada no ano passado, mas que ainda não entrou em vigor.


Protesto contra a migração ilegal, em Iquique, Chile, domingo, 30 de janeiro de 2022. AP - Ignacio Munoz

Camilla Viegas, correspondente da RFI em Santiago.

Na tarde da última terça-feira (8), cidadãos venezuelanos ficaram feridos após um acidente envolvendo o caminhão no qual viajavam através da rota CH 15, perto da cidade de Iquique, no norte do Chile. A polícia chilena constatou que o condutor do caminhão dirigia em estado de embriaguez e perdeu o controle do veículo, após tentar fazer uma ultrapassagem. Os venezuelanos viajavam entre a cabine e o contêiner de carga, sem qualquer tipo de segurança. Dois deles ficaram feridos gravemente e outros dois sofreram escoriações. Todos foram levados ao hospital mais próximo para atendimento.

A situação escancara, mais uma vez, a problemática da imigração que ocorre de forma irregular principalmente no norte do Chile, onde pessoas arriscam suas vidas para tentar entrar no país sem serem notadas pelas autoridades regulatórias. Um problema que acontece há alguns anos, mas que nos últimos dois tomou grandes proporções.

Racismo e xenofobia

Para a acadêmica María Emilia Tijoux, a situação no país é melhor definida como “uma ​​crise das políticas migratórias”. A socióloga e coordenadora da Cátedra de Racismo e Migrações Contemporâneas da Universidade do Chile explica que a migração é uma situação mundial, “no entanto, deve-se considerar que as crises das políticas migratórias, como no caso do Chile, estão forjadas há muito tempo. A política de ‘arrumar a casa’ com que o atual governo realizou sua campanha e que tem aplicado em todo o seu mandato envolveu não apenas expulsões, mas também um trabalho político e midiático contra as comunidades migrantes da região. Sem dúvida, a condição migratória [o fato de ser migrante] construiu na sociedade chilena um senso comum negativo mediado pelo racismo e pela xenofobia”.

Iquique é a capital da região de Tarapacá e fica a cerca de 1.800 km de distância da capital do país, Santiago. Nessa mesma região se encontra a pequena cidade de Colchane, que faz fronteira a leste com a Bolívia. No extremo norte do Chile, há a região de Arica y Parinacota, cuja capital é Arica e que faz fronteira ao norte com o Peru.

Migrações irregulares em alta

Segundo os dados da polícia, as fronteiras ao norte do país se caracterizam por grande presença de cidadãos venezuelanos que chegam através do Peru e da Bolívia. Nos sete primeiros meses de 2021, foram registradas 17.914 migrações irregulares, número que representa 38% a mais do que todos os casos contabilizados em 2020 (12.935). Os cidadãos bolivianos formam o segundo grupo migratório com maior presença oriunda das fronteiras ao norte.

“O que se vive no norte do país vinculou a migração ao crime, conseguindo uma punição permanente contida em práticas violentas e discursos de ódio. Diante disso, a regularização é essencial, pois é a principal ferramenta para que as pessoas se desloquem e organizem suas vidas. A irregularidade impede o atendimento das necessidades dos migrantes e favorece o tráfico e a exploração. Obviamente, esta é uma tarefa em que as instituições devem estar presentes. Ao mesmo tempo, é preciso educar a partir da interculturalidade e proporcionar conhecimento sobre as comunidades migrantes que residem no país”, explica a socióloga María Emília Tijoux.

O que diz a legislação

Na última sexta-feira (4), o Governo precisou reenviar para a Controladoria Geral da República uma versão corrigida do texto do regulamento da Nova Lei de Migração (Lei 21.325), promulgada em abril do ano passado pelo presidente Sebastián Piñera. As correções no regulamento são uma tentativa do atual governo de acelerar a aprovação do texto antes do final do mandato de Piñera.

A primeira versão do texto do regulamento foi enviada para a Controladoria em dezembro de 2021, oito meses depois que a lei foi promulgada. Depois de críticas no tocante à constitucionalidade do regulamento, o texto precisou ser retirado, na quinta-feira (3), e reingressado 24 horas depois, com correções.

A Controladoria fez observações em 190 artigos, mas o novo texto só apresenta mudanças em nove deles. A versão corrigida do regulamento se encontra agora em nova avaliação pela Controladoria e a expectativa do governo é que sua aprovação aconteça antes do dia 11 de março, último dia do mandato de Sebastián Piñera. Se aprovado, o regulamento permitirá a aplicação da Nova Lei de Migração que estabelece, entre outros temas, que ingressar no país sem a documentação adequada não é um delito.

O perfil do imigrante que chega ao Chile

Um último relatório oficial divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística em agosto do ano passado, detalhou os dados de 2020. No final daquele ano, foram contabilizados vivendo no Chile cerca de 1,4 milhão de estrangeiros, um aumento de 12% em relação aos números de 2018. Cerca de 48% dos estrangeiros ocupam a faixa etária entre 25 a 29 anos e as cinco nacionalidades com maior presença são provenientes da Venezuela (30,7%), do Peru (16,3%), do Haití (12,5%), da Colômbia (11,4%) e da Bolívia (8,5%). Os imigrantes desses cinco países somam cerca de 79% de todo o contingente populacional estrangeiro no Chile.

A crise econômica enfrentada pelo Peru e pela Bolívia, aprofundada nos últimos dois anos pela pandemia da Covid-19 e pelo cenário político turbulento nestes dois países, forçaram a onda migratória ao Chile. São centenas de pessoas com escassos recursos, que moram em barracões improvisados nas praças, ruas e praias de Iquique. Elas trazem o básico para sobreviver às intempéries do clima e às longas caminhadas e sabem que, chegando ao Chile, a primeira medida é fazer uma autodenúncia de sua entrada irregular no país. Com isso, elas passam a ser resguardadas pelo estado chileno, tendo acesso aos albergues sanitários montados desde o começo da pandemia nestas zonas.

De acordo com o Serviço Jesuíta aos Imigrantes, os grupos migratórios mudaram de perfil nos últimos anos e são caracterizados por famílias completas em busca de melhores oportunidades de trabalho, saúde e educação. “Diferente do que acontecia nos anos 1990, quando a imigração era composta por grupos femininos, principalmente provenientes do Peru, hoje temos famílias completas migrando”, explicou Waleska Ureta, diretora nacional do Serviço Jesuíta aos Imigrantes, em entrevista à Rádio Universo.

Golpes

Em dezembro do ano passado, o Ministério Público denunciou cinco pessoas, quatro de nacionalidade peruana e um chileno, pelo crime de tráfico de migrantes. De acordo com as informações do MP, estas pessoas teriam ingressado irregularmente no Chile entre 2 mil e 3 mil cidadãos haitianos por mês, entre janeiro de 2016 e maio de 2018.

De acordo com o jornal El Mercúrio, o grupo teria cobrado entre 1.200 e 1.400 dólares de cada cidadão haitiano, simulando a compra de passagens aéreas para a chegada ao país e reservas de hotel falsas. O caso ainda está em tramitação na justiça chilena e os denunciados podem pegar de 541 dias a cinco anos de prisão.

A escalada da violência e da xenofobia

No dia 31 de janeiro, Iquique foi palco de um protesto inédito no país: caminhoneiros fecharam a rota de acesso à cidade em protesto contra a imigração descontrolada. A ação aconteceu ao mesmo tempo em que trabalhadores estavam em greve geral para chamar a atenção das autoridades para a crise migratória na região, dentre eles taxistas, agentes portuários e comerciantes. Os trabalhadores do aeroporto internacional de Iquique também cruzaram os braços, o que resultou em cancelamento e alteração de diversos voos.

No dia anterior (30), cerca de 4 mil pessoas protestaram nas ruas da cidade pedindo ação do governo frente à problemática. Na marcha intitulada “Não mais violência”, um grupo de manifestantes chegou a destruir parte dos barracos improvisados de imigrantes que estavam instalados nas ruas. Um cidadão estrangeiro foi agredido pelos manifestantes e precisou ser protegido pelos policiais. As imagens viralizaram nas redes sociais.

O protesto foi uma resposta a um incidente anterior, ocorrido dia 25 de janeiro, quando cidadãos venezuelanos agrediram dois policiais, após serem indagados por seus documentos. Um dos policiais teve o nariz fraturado e os quatro agressores foram presos. Em resposta ao incidente, o ministro do Interior, Rodrigo Delgado, determinou na época que os quatro imigrantes seriam expulsos do país e explicou que o procedimento que a polícia realizava faz parte de uma “estratégia implementada em Tarapacá nos últimos meses para desarticular quadrilhas de tráfico de drogas e de crime organizado”.

De acordo com o escritório regional do Ministério Público na região de Tarapacá, os homicídios aumentaram 183% em 2021 na região, o tráfico de drogas 42%, o tráfico de migrantes 501% e os roubos com violência ou intimidação 18%. Todos esses números comparados a 2020.

Em setembro do ano passado, outro protesto contra a imigração irregular terminou em violência. Um grupo de manifestantes ateou fogo a barracas e objetos pessoais de famílias de imigrantes venezuelanos que estavam alojados em uma praça de Iquique. Colchões, mochilas, barracas e até brinquedos foram destruídos pelo fogo.

Também em setembro do ano passado, a polícia chilena, obedecendo ordens da Delegação Regional Presidencial, executou uma operação de desalojamento de imigrantes que estavam acampados na Plaza Brasil, em Iquique. Cerca de 150 famílias receberam ordem para desocupar o local nas primeiras horas da manhã. Crianças, mulheres e idosos compunham o grupo, que precisou sair às pressas do local, em meio aos gritos hostis de pessoas que assistiam à cena.

“Desde o Tráfico Transatlântico de Escravos e a configuração do Estado-nação, busca-se o desenvolvimento no Chile olhando para a Europa e desprezando os povos originários e afro-chilenos. Agora, diante de migrantes que chegam apenas com mão de obra para vender e desprovidos de capital, é pela cor de sua pele, sua origem, sua nacionalidade e sua condição econômica que são julgados e, também, punidos, explica a professora María Emilia Tijoux. “Desde os anos 90, a xenofobia e o racismo são constantes contra as comunidades que chegam e seu dinamismo é observado com o passar do tempo. Isso foi vivenciado por peruanos, colombianos, equatorianos, dominicanos e haitianos que têm sido permanentemente maltratados. Atualmente é a população venezuelana que é objeto de racismo. O racismo que observamos contém o classismo que já opera no Chile pelas grandes desigualdades existentes, mas o racismo, não esqueçamos, ataca tanto pela cor da pele quanto pela origem. Uma pessoa de boa condição econômica e de pele negra não deixa necessariamente de ser racializada e maltratada”, finaliza a acadêmica.  

Opinião Pública

Uma pesquisa divulgada no início deste mês pela consultoria Cadem revelou a opinião dos chilenos com relação ao problema migratório que afeta a zona norte do país. Cerca de 79% dos entrevistados desaprovam a forma como o atual governo tem atuado com relação à crise migratória.

Embora 60% considerem que a chegada de estrangeiros ao país é boa para a cultura e 57% avaliem essa presença positiva para a inovação, 52% creem que a presença de estrangeiros é negativa para a economia e 55% que é ruim para a oferta de emprego.

Além disso, 84% dos entrevistados avaliam que o país deveria permitir a entrada de pessoas que fogem de guerras, ditaduras ou crises econômicas em outros países, porém com certos limites. Somente 5% estão de acordo com a liberação total.

Para 73% dos entrevistados na pesquisa Cadem, os chilenos têm se tornado mais tolerantes à imigração nos últimos 4 anos.

rfi

www.miguelimigrante.blogspot.com

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