segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Imigração: o problema e a solução

 

Foto de Paulete Matos.

Há décadas que o tema da imigração está no programa eleitoral e na agenda política de todos os partidos políticos dos países mais desenvolvidos. Ouvimos falar da necessidade de controlar os fluxos, ora para proteger os autóctones do desemprego, ora para se poder receber decentemente os estrangeiros legalizados, pois os países mais ricos não podiam “acolher toda a miséria do mundo”. Ouvimos falar na necessidade de estabelecer quotas que controlassem a importação de trabalhadores estrangeiros e fizessem frente à ameaçadora “invasão” em curso. Construiu-se a fortaleza Schengen, reforçou-se o policiamento nas fronteiras e nas ruas, expulsou-se muitos dos que não tinham documentos, por vezes em acções colectivas, fretando aviões. E tolerou-se a presença de muitos outros que, embora indocumentados, fazem parte de uma outra quota, a dos “clandestinos”.

Hoje, o discurso dominante deixou de lado o alarmismo, perante a evidente falta de mão-de-obra em inúmeros sectores da economia e da sociedade, desde as indústrias pesqueira, agrícola ou da construção até aos profissionais da saúde e dos serviços domésticos, perante o envelhecimento da população e o deficit da segurança social. No passado dia 18 de dezembro, dia internacional dos migrantes, as intervenções públicas nas instâncias do poder difundiram uma mensagem optimista e serena do papel dos imigrantes na sociedade. Em Portugal, o presidente da República referiu-se aos “que têm chegado e ajudado a construir uma sociedade mais jovem, diversa e plural", “os imigrantes que nos procuram e aqui encontram uma nova vida, contribuindo para o desenvolvimento e bem-estar do nosso país". A comissária europeia do Interior, Ylva Johansson, proclamou que a imigração é “uma solução e não um problema”: "As pessoas vêm para aqui para viver, trabalhar, amar. Os factos mostram que a migração funciona.” E, já em 2019, António Costa anunciava o fim das quotas de trabalhadores estrangeiros e a abertura à imigração, “tão velha como a humanidade”. Vivemos no melhor dos mundos possíveis: afinal, a imigração enriquece o país, contribui para o aumento da natalidade e rejuvenesce a sociedade.

Estes discursos não escondem, todavia, a continuidade de uma política restritiva à entrada na Europa de estrangeiros extra-comunitários. A receita que existe hoje em Portugal, por exemplo, é a da combinação de um contingente de imigrantes em situação legalizada coexistindo com outros tantos a quem não se reconhece o direito de viver e trabalhar no país. Esses são obrigados a viver na clandestinidade, tornam-se invisíveis, apenas existindo para quem os explora. Essa é a receita para colocar à disposição dos empresários a escolha entre uma mão-de-obra barata com alguns direitos e uma mão-de-obra quase gratuita – quando não escrava, como se tem visto no sector da agricultura no Alentejo e no Algarve -, vulnerável, desumanizada e descartável. Para a “economia”, esta massa de imigrantes à margem da sociedade, fora do seu olhar e do dos sindicatos, invisível para os tribunais e para os inspectores das condições de trabalho, pode ser a solução; para nós, ela é um problema.

Desde o anúncio da “guerra ao terror” decretada por Bush após o ataque às Torres Gémeas e ao Pentágono em setembro de 2001, o controlo da imigração passou a ser visto também como uma questão de segurança. Em 2004, a União Europeia cria a Frontex, que começa a sua missão de guarda-fronteiras com um orçamento de pouco mais de seis milhões de euros e prevê para 2022 um orçamento de quase 758 milhões de euros. A verba destinada às deportações de migrantes passou de 80 mil euros em 2005 para 63 milhões em 2019. São números que só por si espelham a reacção da União Europeia à chegada massiva de migrantes às suas portas e a importância que a repressão tem nessa política.

A imigração, tal como a vivemos, é efectivamente um problema político e só não o seria se ela fosse encarada e vivida como uma consequência natural de um direito generalizado à livre circulação das pessoas. Mas a mobilidade humana não é encarada como um direito universal; a livre circulação está limitada aos cidadãos do espaço Schengen dentro desse espaço e para o resto do planeta; ela é de sentido único. No sentido contrário, confrontamo-nos com os muros de betão ou de arame farpado, as polícias e os drones de vigilância ou os centros de detenção.

O escritor indiano Suketu Mehta formulou melhor do que ninguém a essência dos fluxos migratórios com a sua famosa expressão “nós estamos aqui porque vocês estiveram lá”. Esta frase será tão acertada na boca de uma pessoa oriunda de alguma ex-colónia que vem procurar trabalho numa antiga metrópole, em Inglaterra, em França ou em Portugal, como na de qualquer migrante que chega numa lancha à Sicília ou que espera por uma oportunidade de passagem junto aos muros da Europa central ou em Pas-de-Calais, à beira da Mancha.

A questão da emigração também tem de ser vista de outro ângulo: as fugas massivas de populações são fenómenos forçados pelas guerras e a pilhagem imperialistas. A ocupação do Afeganistão em 2001, que perdurou durante vinte anos, e sobretudo a invasão do Iraque em 2003, à qual se seguiu uma ocupação mortífera liderada pelos Estados Unidos e o Reino Unido, foram o início de um desastre humano sem fim à vista. A destruição e a pilhagem provocadas pelas políticas imperialistas de que Portugal também foi cúmplice activo semearam o terror e uma pobreza extrema no seio das populações civis. Em 2007, estimava-se em mais de quatro milhões o número de refugiados iraquianos no mundo. Com o fim da guerra do Iraque, o Islão político e fundamentalista tornou-se um movimento de massas que agravou a situação de miséria e repressão. O djihadismo actua hoje em todos os países onde os Estados Unidos, apoiados pelos restantes países imperialistas, interveio militarmente. Afeganistão, Iraque, Somália, Iémen, Líbia e Paquistão são hoje sociedades devastadas pela fome, doenças, desemprego, medo e insegurança; sociedades onde simplesmente viver se tornou impossível.

A catástrofe humanitária que assola estas vastas regiões do mundo provocou o êxodo de milhões de pessoas e uma (pequena) parte delas consegue chegar às portas da Europa, onde o seu destino é decidido entre a obtenção de um estatuto de refugiado, a deportação para países subcontratados pela UE como a Líbia ou a Turquia, ou ainda a permanência por tempo indeterminado em campos de concentração sobrelotados onde as condições de vida não são muito diferentes daquelas que deixaram para trás. Segundo dados do Alto-comissariado da ONU para os refugiados, os requerentes de asilo eram quatro milhões em 2020 (sobre cerca de 84 milhões de refugiados e deslocados). A União Europeia afirma não poder acolher tanta gente, mas segundo a mesma fonte, 86% dos refugiados deslocam-se para os países vizinhos com economias pouco desenvolvidas; só o Médio Oriente acolhe um terço dos refugiados no mundo. A Alemanha, o país europeu com mais refugiados no seu território, tem na verdade menos de metade dos refugiados que vivem na Turquia, um país com um número de habitantes semelhante.

Fará sentido discutir sobre quem é imigrante, quem é migrante, quem é refugiado ou quem é falso requerente de asilo? E quais e quantos deles têm direito de procurar sustento e segurança nos países que os saquearam? Os passadores e traficantes de seres humanos são hoje apontados como únicos ou principais responsáveis das mortes trágicas no Mediterrâneo, da tortura nos campos de refugiados da Líbia ou das condições desumanas dos refugiados ao longo dos muros erguidos pelo mundo fora, mas todos sabemos que as causas principais desta catástrofe humana são as guerras e ocupações militares que devastam países para melhor espoliá-los das suas riquezas. Esse é o problema da imigração, que continuará a existir enquanto a rapacidade das grandes companhias capitalistas continuar a destruir vidas e futuro nos países periféricos.

Esquerda.net

www.miguelimigrante.blogspot.com

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