sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Chile dos livros e das ruas

 

Uma série de traduções trouxe em 2021 novidades da literatura chilena para o Brasil. Diamela Eltit, Nona Fernández e Alejandro Zambra tiveram obras lançadas no mercado brasileiro. Esse movimento oferece mais trabalhos de escritores e escritoras fundamentais da atualidade e coincide com a energia política que sacudiu as ruas do Chile nos últimos anos. Os chilenos preparam atualmente o processo para elaborar uma nova Constituição do país, o que pode mudar os rumos

O dado político mais recente foi a vitória de Gabriel Boric na eleição para presidente do Chile. A escolha de um jovem de apenas 35 anos é a prova de que existe, de fato, uma nova política — e não artifícios para enganar turistas desavisados. O resultado eleitoral ainda mostrou a potência da cultura contestadora de um país que serviu de laboratório para atrocidades do século 20, mas que sobreviveu ao não deixar se cair na apatia e ao valorizar como poucos lugares a memória coletiva.

Os chilenos foram até recentemente o símbolo de uma estabilidade política conservadora na América Latina. Vendeu-se a fantasia de uma ilha no meio de um mar em chamas na região. Uma espécie de utopia do Fim da História. Ao longo de 30 anos, parecia uma sociedade imune a radicalismos. Mas, como o personagem do romance “Casa de Campo” (1978), de José Donoso, era a imagem da criança arrumadinha que escondia, na verdade, a energia incontrolável debaixo das roupas enfeitadas.

Os visitantes estrangeiros poderiam se impressionar com as aparências de uma economia liberal e moderna. Ao mesmo tempo, porém, não havia como esconder que algo de muito perturbador estava por trás daquela maquiagem social feita de vinhos, salmões e estações de esqui na neve perto da capital Santiago. Estudantes pediam ajuda em dinheiro na rua, como pedintes, para bancar o crédito da faculdade, e manifestações fechavam diariamente as avenidas de algum ponto da cidade.

O espaço público do Chile estava doente, tal qual se via na prosa de Diamela Eltit, a grande narradora do desastre de seu país a partir dos anos 1980. O livro “Lumpérica” (1980) é desconcertante e inclassificável. Uma ditadura puro sangue, tocada por Augusto Pinochet, havia jogado mais da metade da população para baixo da linha de pobreza. Era pior do que o Brasil, mas os chilenos e os estrangeiros cuidavam de vender o “show case” para toda a região e para o mundo.

Até mesmo um produto de exportação, como a escritora Isabel Allende, exibiu o abismo histórico em que o país havia se metido. Sua biografia virou uma interessante minissérie Isabel, no Amazon Prime. E até seu best-seller mundial, “A Casa dos Espíritos” (1982), expõe a energia subterrânea do país, sufocado pela bestialidade de uma ditadura. Um governo que combinou um liberalismo radical com as técnicas mais brutais de violência física contra seus cidadãos e cidadãs.

É essa cultura antiviolência que produziu Gabriel Boric. Um estudante nascido no extremo sul da Patagônia chilena, povoada por imigrantes iugoslavos. Boric é sobrenome croata. Ele foi parar na capital nas ondas do movimento estudantil que a partir de 1990 nunca deixou a chama da contestação se apagar. Em 2019, a moçada deu a estocada final com revoltas diárias e a cobrança por uma nova Constituição. Conseguiram uma vitória que colocou o governo de joelhos.

As leis deixadas por Pinochet caducaram. O sistema privado de aposentadorias, por exemplo, se revelou um fracasso na prática. O crédito estudantil fora a solução pensada para abolir o ensino público e adotar a educação privada para todos, nos moldes do mais vulgar neoliberalismo — outro fracasso retumbante. Com esse pano de fundo, os chilenos encenavam uma peça farsesca de estabilidade política e econômica. Era, na verdade, uma ruína como a dos demais vizinhos latino-americanos.

O escritor Roberto Bolaño foi embora do Chile, tornando-se um exilado em estado permanente. Não se preocupou em voltar para aquela terra que o expulsara. Seus livros são testemunho do delírio coletivo que resolve todos as questões com a violência. Um horror que desemboca em reações brutais contra a população mais vulnerável (pobres, mulheres, indígenas). O desaparecimento de corpos deve ser a contribuição da política chilena para o mundo — algo compartilhado com os argentinos.

Énio Viera

www.revistabula.com

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