erca de 262,5 mil migrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, a quinta maior nação anfitriã destes cidadãos na América Latina. Entre janeiro de 2017 e agosto de 2020, o Brasil acolheu 609.049 venezuelanos e viu partir 345.574 depois do fluxo disparar 922% no biênio anterior.
Recentemente, a iniciativa Track4Tip do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime, Unodc, lançou o Relatório Situacional Brasil: Tráfico de Pessoas em Fluxos Migratórios Mistos em Especial de Venezuelanos.
O estudo revela que fatores como acesso à informação, aos serviços de assistência social e trabalho ou emprego são os mais relevantes para proteção e resiliência visando reduzir o risco de o grupo cair nas malhas do tráfico de pessoas.
Eleutério Guevane, da ONU News, conversou com a especialista do Unodc, Heloisa Greco. De Montevideo, Uruguai, ela fala sobre desafios e oportunidades, medidas para conter o tráfico de seres humanos, as situações em pontos de destino e trânsito, além da proteção.
ONU News: O estudo penetra na questão do perigo do tráfico humano desta população, que carece de abrigo na jornada para vários países. Vamos falar, primeiro, desta iniciativa que levou a cabo este estudo. Do que se trata exatamente?
Heloisa Greco, HG: Primeiro, eu queria agradecer o convite para esta oportunidade e da nossa alegria também de poder divulgar o relatório que foi lançado no Brasil. O relatório tem o nome Relatório Situacional Tráfico de Pessoas em Fluxos Migratórios Mistos e Especial Venezuelano. Este foi um relatório desenvolvido dentro de um projeto do Unodc que que chama Track4Tip Transformando Alertas em Respostas de Justiça Criminal para Combater o Tráfico de Pessoas em Fluxos Migratórios.
E é uma iniciativa que tem três anos, de 2019 até 2022, que está sendo implementada pela Unodc, com parceria e apoio do Escritório de Monitoramento e Combate do Tráfico de Pessoas e Departamento de Estados Unidos. Esse projeto beneficia oito países da América do Sul e do Caribe. O Equador, o Peru, o Brasil, a República Dominicana, a Colômbia, Trindade e Tobago, Coração e Aruba.
O projeto é ambicioso, grande, e o objetivo principal dele é melhorar e aprimorar a resposta da justiça criminal em relação ao tráfico de pessoas nessa região, na América do Sul e um pouco da América Central, nos fluxos migratórios, principalmente, uma visão de direitos humanos centrados na vítima. Então, é para melhorar esses afluxos migratórios e identificar situações de tráfico de pessoas nesses tráficos mistos. E aí, sim, tem um olhar especial também para o fluxo migratório venezuelano.
ON: Tem sido o maior movimento neste momento no Brasil? Que desafios e oportunidades é que esta situação particular tem trazido ao país?
HG: A questão dos fluxos migratórios, em especial dos venezuelanos, é um desafio. Se a gente imaginar que de 2015 a 2017 esse fluxo migratório de venezuelanos cresceu 922%, imagine-se o impacto quando tem esse fluxo entra. Realmente tem uma porta principal no país, que é o estado de Roraima, no norte do Brasil. Então o aumento, em pouco tempo, provoca, sem dúvida nenhuma, um desafio para todas as políticas. De receber e acolher esses imigrantes que chegam e depois eu posso explicar um pouco como chegam em situação de vulnerabilidade. Eu posso explicar um pouco mais que vulnerabilidades seriam essas. Então, sem dúvida nenhuma, isso é um desafio.
Nesse curto tempo também, os venezuelanos e as venezuelanas são o segundo grupo migratório com o maior número de registros ativos na Polícia Federal no Brasil. Isso quer dizer que a população migrante está em segundo lugar ou é o segundo maior contingente de migrantes, no país. E isso num curto tempo. Então é claro que isso implica desafios. Oportunidades, eu acho que uma oportunidade também para desenvolver e baixar à terra mesmo como implementar a lei migratória brasileira, que é de 2017. Ela vem com uma perspectiva de direitos humanos, e vem substituindo o estatuto do estrangeiro que era de uma perspectiva bem securitista da época da ditadura.
Então, é uma lei que por ter essa perspectiva de direitos humanos, entende a migração como um direito inalienável de todas as pessoas. Eu acho que é uma oportunidade também de se efetivar algo, com esse desafio migratório atual, principalmente venezuelano.
ON: E como o tráfico humano se insere neste fluxo particular de venezuelanos, que afinal estão em busca de abrigo?
HG: Vamos pensar um pouco assim: a gente tentou identificar se tinham situações de tráfico de pessoas nesse fluxo venezuelano. Pensar um pouco como é que a gente trabalha e como o país tem que trabalhar com o tráfico de pessoas em geral no Brasil. A gente tem a legislação nacional que é de 2016, mas antes da legislação nacional já tem uma política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas que é de 2006. E é 10 anos anterior à lei que hoje está vigente. Tinha uma lei antiga, mas a atual tem uma perspectiva mais centrada na vítima, uma perspectiva mais centrada na vítima e nos direitos humanos melhor do que a antiga.
A Política Nacional de 2006 já seguia todo o protocolo internacional, o Protocolo de Palermo, que é o protocolo internacional enfrentamento ao tráfico de pessoas. E já tínhamos planos nacionais sendo desenvolvidos. Então, esses planos nacionais e na política pregam uma atenção integrada às vítimas, que têm uma coordenação institucional como a proteção, dialoga com o sistema de repressão, o sistema de justiça e o sistema de polícia e também dialoga com políticas de prevenção.
E já tinha essa estrutura, que já vem sendo desenvolvida desde a ratificação do protocolo no Brasil, que foi em 2004. E veio a política, em 2006. Então já tem uma estrutura e vem tomando corpo até chegar na legislação de 2016. E é um pouco esse cenário que a gente tem agora. Tendo essa estrutura agora, temos que identificar a situação do fluxo dos venezuelanos, quais são as especificidades e quais as características que pode ter para um tráfico de pessoas com esse público.
Eu acho que tem um ponto que é fundamental, principalmente pensando nos venezuelanos, que é a centralidade da questão da vulnerabilidade das pessoas. E isso é um ponto que a gente desenvolve no relatório situacional. A pessoa que está venerável se torna mais suscetível a aceitar uma proposta, seja de trabalho ou seja de viagem, que pode vir a ser uma forma de exploração. Entender esse mapa das vulnerabilidades e pensar em políticas de prevenção que trata das vulnerabilidades, seja das vulnerabilidades características pessoais: a questão da infância, de gênero, ou vulnerabilidades contextuais porque a pessoa está numa situação migratória.
E aí entra a questão da população no contingente venezuelano. Ao ingressar no Brasil, a gente fala que está numa situação de vulnerabilidade. Por que? Porque pelo relatório também se verificou que têm a precariedade nos percursos e nas formas de transporte, como essas pessoas veem e entram no país, elas têm o desgaste com o cansaço. às vezes gasta muito dinheiro também, o pouco que ainda tem, para entrar no país. A fragmentação familiar, alguns ficam e outros vêm. Outros não entraram também no país. Alguns vão para uma parte do Brasil, outros ficam em Roraima. Essa fragmentação onde você não tem um contato afetivo, um contrato de confiança, isso deixa a pessoa mais vulnerável também. Você perde os seus pontos de referência, ainda mais num país novo. Falta de documentação também, quando a pessoa entra no país até ao processo de regularização há falta de regularização. É um indicador que também pode deixar a pessoa em situação de vulnerabilidade. E a falda de acesso também ao mercado laboral. Toma-se tempo até você ter a documentação, até você conseguir ingressar no mercado laboral, e ter segurança de que não vai ser explorado.
Então, essas características podem deixar, não quer dizer que todo o migrante venezuelano que ingressa está numa situação de tráfico, que pode entrar, mas está mais suscetível por todas essas características.
ON: E vem à tona a questão da percepção que as pessoas têm destes movimentos, principalmente quando envolvem situações suspeitas de tráfico em território brasileiro? Sabemos que brasileiros são bons acolhedores, mas como fica?
HG: Em relação à percepção da população, da comunidade brasileira, isso o nosso relatório não chegou a investigar. A gente tem no relatório a percepção de profissionais da assistência às vítimas, ou seja, a percepção criminal dos operadores do sistema de justiça, a percepção desse grupo bem específico. A gente não está falando de uma percepção geral da população.
O que está no relatório é que muitos trazem a informação de que, sim, acreditam que tem situações de exploração. Mas a maioria, e aí se eu não me engano 73% dos que participaram da pesquisa, não conhecem nenhuma investigação ou nenhum trâmite judicial que envolva situações de tráfico de pessoas migrantes venezuelanos.
É importante ter a noção da percepção, que cada um está tendo no seu trabalho na sua região, que envolva situações de tráfico na sua região, mas judicialmente como trâmite, muitos desconheciam a maioria desconhecia um trâmite judicial, porque não tinha clareza nos indicadores de tráfico, ou não tinha suficiente prova, não encaminhou para um inquérito, ou alguma denúncia, enfim, não chegou a ser um processo judicial.
ON: Para terminar, queríamos que falasse da proteção das vítimas. Como é que as autoridades têm lidado com a situação? Como estes indivíduos têm lidado com os venezuelanos? Que noção eles têm da existência dessa proteção?
HG: Em relação à proteção também é pensando um pouco na política nacional. A política já prega a integração, como eu falei, do sistema de Justiça, do sistema de Proteção. Tem já uma articulação interinstitucional que está estabelecida desde a época da política dos primeiros planos.
É importante também falar que no Brasil, desde 2011, se eu não me engano, tem uma rede de núcleos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e postos avançados de atendimento humanizado ao imigrante. Esses núcleos de enfrentamento ao tráfico de pessoas são dispositivos estaduais, que alguns estados têm, que atuam de forma de rede, que recebem possíveis vítimas de tráfico e identificam se são casos de tráfico ou não. Conseguem também acolher e depois fazer todo o intercâmbio com a polícia e auxiliar no acompanhamento dessa situação.
Em relação à proteção também é interessante dizer que a própria legislação brasileira, essa lei que é de 2016, ela dá recursos que são muito protetivos para vítima. Ela garante a atenção integral à vítima, essa atenção psicossocial, de inserção no mercado e atenção jurídica, a no acompanhamento dessa situação, e aos familiares independentemente da nacionalidade e da colaboração, investigação ou processo judicial. Isso é muito protetivo para a vítima: por ela não estar vinculada e ao fazer denúncia ela ter essa proteção independente.
E outra garantia protetiva é a concepção de residência para vítimas de tráfico de pessoas, do tráfico internacional. A garantia do prazo de residência por tempo indeterminado. Se eu fui vítima no outro país e desejo permanecer no Brasil, eu posso e tenho o direito de permanecer no país, independente também de colaboração judicial.
FIM.
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