segunda-feira, 12 de julho de 2021

Acolhimento de refugiados: novos impactos

 


A questão das migrações é um tema bastante complexo, com muitos aspetos que devem ser tidos em conta simultaneamente. Fazem parte dessas questões: a segurança das pessoas que procuram proteção internacional ou uma vida melhor, as preocupações dos países terceiros que fazem fronteira com a UE, que temem que as pressões migratórias excedam as suas capacidades, a forma como podemos gerir estes fluxos e procurar simultaneamente demonstrar solidariedade, quer para com os requerentes de proteção internacional, quer para com os diferentes Estados-membros que recebem mais pedidos de asilo. Muitos países receiam que, caso os procedimentos não sejam respeitados nas fronteiras externas, os seus próprios sistemas nacionais de asilo, integração e regresso não estejam à altura em caso de grandes fluxos migratórios.

Veja-se que o provável próximo início da ligação marítima entre Marrocos (Tânger) e Portugal (Portimão) pode vir a constituir uma significativa alteração na questão dos refugiados no nosso país. Em Portugal, os pedidos de proteção internacional com origem em cidadãos marroquinos já se apresentava, em 2020, como quarto lugar do ranking nacional. O incremento deste dossier marroquino pode vir a constituir-se como um peso determinante para o acolhimento proporcionado por Portugal aos requerentes de asilo.

No contexto europeu o número de requerentes de asilo em razão de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, ou pertença a determinado grupo social ou por opinião política, atingiu um pico em 1992, com 672 mil pedidos na UE-15, essencialmente pelo acolhimento da população da ex-Jugoslávia, valor amplamente superado em 2015, com 1.282.690 de requerentes, a maior crise migratória alguma vez registada. Desde esse ano que a tendência foi decrescente, chegando no ano de 2020 a registar apenas 471.630 requerentes de asilo que solicitaram proteção na UE-27. Esta diminuição dos números é, essencialmente, explicada pela consequência das restrições nas viagens resultantes da pandemia Covid-19, que travou a saída generalizada do número de cidadãos de países terceiros que entraram na UE, quer imigrantes legais, quer requerentes de asilo. Igualmente, também aqueles que saem da UE no quadro dos procedimentos de regresso, diminuíram significativamente em 2020 quando comparado com 2019. Dados preliminares, apresentados no “Annual Report on Migration and Asylum 2020”, indicam que o número de vistos e autorizações de residência emitidos em 2020 diminuíram quase 50% em alguns Estados-membros, dando o exemplo da Suécia, que apresenta o nível mais abaixo de imigração desde 2005. Da mesma forma, o número de pedidos de asilo sofreu forte impacto, levando a uma diminuição em 32,6% em 2020 em comparação com o ano anterior, de acordo com dados divulgados pelo Eurostat.

Se a Covid-19 tem sido utilizada, muitas vezes, para justificar a maioria dos acontecimentos que temos vivido no último ano, neste caso é indiscutível que o réu é pandémico.

Com a situação universal desta doença alguns Estados-membros alteraram os procedimentos em matéria de asilo, sendo que algumas alterações foram implementadas de forma permanente, enquanto outras têm caráter meramente temporário. Estas citadas alterações foram feitas através de propostas legislativas, algumas medidas para facilitar a apresentação de pedidos de asilo ,outras para prorrogar prazos. A título de exemplo, refiro que o Luxemburgo suspendeu temporariamente as entrevistas para cumprimento das transferências de Dublin e todos os certificados foram, igualmente, temporariamente suspensos para o preenchimento de um pedido de proteção internacional, medidas que vigoraram durante o estado de emergência. Na Letónia, um novo procedimento para o registo imediato de um Pedido de Proteção Internacional foi adotado. Outros exemplos poderiam ser apresentados aqui. No caso de Portugal, estabeleceu-se a prorrogação da validade dos documentos, onde se incluem os Pedidos de Proteção Internacional, considerando-se válidos todos os documentos com caducidade posterior ao estado de emergência. Esta medida foi sendo sucessivamente renovada, mantendo-se em vigor até 31 de dezembro de 2021. Importa ainda salientar que, na generalidade dos Estados-membros europeus foram estabelecidas mudanças na receção dos requerentes de asilo, medidas preventivas no acolhimento para reduzir a propagação da Covid-19. Destacam-se o aumento do número de centros destinados ao acolhimento (de emergência ou temporário), o alojamento em apartamentos ou estruturas habitacionais individualizadas, a adaptação ou reconversão de estruturas militares desativadas para salvaguardar o acolhimento, a obrigatoriedade de cumprimento de quarentena à chegada ao território e a inclusão prioritária dos requerentes de asilo nos planos de vacinação.

Na generalidade dos Estados-membros assiste-se à modernização dos procedimentos de atribuição dos pedidos de proteção internacional; a pandemia Covid-19, em alguns casos, contribuiu para o avanço da “era digital” nos processos de asilo. São exemplo desta modernização a criação de websites de acesso à informação aos requerentes de asilo traduzidos em diferentes idiomas, o aumento da digitalização dos processos jurídicos, facilitando a informação entre serviços, entidades e mesmo entre diferentes Estados-membros. Como consequência desta digitalização tornou-se evidente a aceleração na tomada de decisão sobre os pedidos de asilo. Portugal ainda está a dar os primeiros passos nesta “era”, mas não poderá adiar por muito tempo a necessidade de acompanhar a Europa.

A esta altura o caro(a) leitor(a) perguntar-me-á: “E, então?” Parecer-lhe-á tudo acima referido uma evidência de “La Palice”. A interrogação que faço é: as causas que levam aos fluxos migratórias terão cessado, diminuído, ganho menos impacto? Não creio. Os conflitos armados mantêm-se, as perseguições não estão de quarentena, muito menos a precariedade socioeconómica diminuiu, até se acentuou. Arrisco-me a afirmar que tudo se terá discutido menos no espaço mediático, ganho menor notoriedade à luz dos holofotes, que recaem, quase exclusivamente, sobre a pandemia. Atrevo-me, ainda, ousar afirmar que a pandemia pode ter acentuado os fatores que induzem ou forçam as pessoas a moverem-se para fora dos seus territórios: sistemas de saúde débeis que a pandemia agravou (Índia, Nepal…), maior precariedade no desenvolvimento socioeconómico, mais fome e pobreza, vulnerabilidades acrescidas, apenas são gritos mudos que ainda não se ouvem na Europa.

E porque é que isto é importante, poderá perguntar-me. A resposta é metafórica se procurarmos olhar para as sete rotas ativas de entrada de migrantes no espaço Europeu: África Ocidental, Mediterrâneo Ocidental, Mediterrâneo Central, Apúlia e Calábria, Balcãs Ocidentais, Mediterrâneo Oriental e o percurso circular da Albânia para a Grécia e visualizar um dique que se formou em todas elas, verá que apenas protelámos um fenómeno ativo. Ora o dique apenas irá suster as águas até, para bem de todos, retomarmos uma maior normalidade das nossas vidas. Não nos é possível antever que quantidade de água (migrantes) é que o dique está a suster, mas está nas nossas mãos a possibilidade de planear e preparar minimamente o acolhimento futuro deste expectável aumento de movimentos migratórios.

No âmbito de uma reforma mais geral das regras da UE em matéria de migração e asilo, em 23 de setembro de 2020, a Comissão Europeia propôs um Novo Pacto em matéria de migração e asilo. A proposta prevê um quadro europeu comum global para a gestão da migração e do asilo, quadro esse que inclui várias vertentes legislativas. Este Novo Pacto em criação, contempla um leque de medidas e alterações legislativas que estão em análise. Saliento dessas propostas que, se algumas são transversais a todos os Estados-membros e dependentes de consensos, outras podem já ser alvo de planeamento, de preparação nacional para a sua execução, como sejam, as Condições de Acolhimento que cada país assegurará para garantir que os requerentes de asilo beneficiam de normas de acolhimento dignas em espaços habitacionais identificados para o efeito. Alguns estudos têm explorado a perspetiva de que os requerentes de asilo ficam num estado de exceção ou intermédio quanto à sua situação legal enquanto aguardam pela decisão face ao seu pedido de asilo; este estado está associado à condição de “limbo”. Devem por isso ser acauteladas estruturas condignas onde as pessoas possam ficar alojadas até à tomada da decisão final de concessão de estatuto. Remeter a espera dos pedidos de asilo dos migrantes em respostas do mercado livre de arrendamento, agora mais desafogado pela ausência de turistas, é uma solução contraproducente. A retoma turística pretende-se inevitável, os alojamentos agora disponíveis rapidamente deixarão de o estar. E depois? Onde serão alojados os requerentes de asilo se não planearmos hoje?

Este estado de transição “de não status” em que deixamos os requerentes de asilo perdura demasiado tempo, colocando-os numa situação de incerteza, longos períodos de espera e falta de oportunidades para realizar atividades significativas remetem os requerentes de asilo para espaços vazios de desempenho de papéis sociais. O Novo Pacto prevê o direito ao trabalho para os requerentes de asilo, o mais tardar, nove meses após a apresentação do seu pedido e o direito à educação para menores, bem como a necessidade de nomear tutores para os menores não acompanhados.

Quando olhamos para a sustentabilidade e robustez do Estado Social em cada país europeu não podemos deixar de refletir sobre quais os mecanismos que estarão previstos para assegurar uma Europa una, capaz de garantir regras uniformes para os pedidos de asilo. Pois é, uma Alemanha e um Portugal não enfrentam a mesma dificuldade em assumir um tal compromisso, não sairão da mesma casa de partida, quer pela diferença dos seus modelos de Estado Social quer pela sua sustentabilidade. A proposta legislativa visa assegurar que todos os requerentes de asilo sejam tratados de forma equitativa em todos os Estados-membros, muito embora seja indiscutível que tal uniformização procurará reduzir o “íman” de atratividade de cada um. No entanto, fica a questão: será assim tão simples, não existirão outras forças que continuarão a definir Estados-membros mais atrativos que outros?

O projeto de regras define critérios comuns de identificação das pessoas que têm efetivamente necessidade de proteção internacional e direitos comuns para essas pessoas em todos os Estados-membros.

Perante a enorme complexidade nunca é demais alertar: não deixem para amanhã o que podem começar a fazer já hoje. Remediar sai sempre mais dispendioso que planear, nem que seja pelo preço a pagar pela renúncia à evidência.

Ana Sofia Branco 

 Observador 

www.miguelimigrante.blogspot.com

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