terça-feira, 6 de julho de 2021

A xenofobia que a pandemia esconde

 O cenário geopolítico atual experimenta uma constante ascensão de discursos anti-imigração. Isso se deve, em grande medida, ao fortalecimento de partidos de extrema direita, principalmente no continente europeu, como o Vox na Espanha, a Frente Nacional na França e a Liga Norte na Itália, para citarmos apenas alguns exemplos, além da aprovação do Brexit no Reino Unido.

Na União Europeia, os imigrantes estão entre as principais vítimas da pandemia

Ancorada na lógica de proteção dos direitos dos seus próprios cidadãos, ante um momento delicado de crise econômica, uma parcela considerável da população dos países ricos do hemisfério norte apoia políticas protecionistas e a diminuição do acesso a direitos do estado de bem-estar social a estrangeiros. Há uma correspondência direta entre os supostos interesses nacionais e as preocupações assumidas por parte de quem possui uma “cidadania legítima” diante das possíveis “ameaças” de imigrantes. Essa é a munição perfeita para o crescimento de sentimentos ultranacionalistas e, consequentemente, para a intensificação da xenofobia.

Isso se torna ainda mais grave na presente conjuntura pandêmica, chegando a se expressar nas políticas migratórias vendidas como medidas sanitárias: é o que vemos com o chamado passaporte da vacina (https://domtotal.com/fato-em-foco/715/2021/06/europa-decreta-apartheid-contra-paises-pobres/). Aquilo que se anunciava como um problema global, que exigia uma solução orquestrada de forma conjunta, a pandemia da COVID-19 agora tem se assumido como uma questão interna de cada país, um obstáculo que cada um terá de resolver por seus próprios meios de vacinação e de contenção do vírus dentro de suas fronteiras.

Na esteira desse controle do trânsito internacional de pessoas, vemos a facilitação do turismo para alguns grupos seletos, como o passaporte verde europeu, que limita a circulação de pessoas vindas de países subdesenvolvidos, penalizados por não terem o mesmo poder de negociação que os países ricos têm com o cartel da indústria farmacêutica produtora de vacinas. Tomando esse exemplo do continente europeu, a institucionalização de um “novo normal” para alguns privilegiados vacinados é uma forma de dissimular o fato de que os imigrantes na União Europeia, especialmente os “ilegais”, estão entre as principais vítimas da pandemia da COVID-19, pois não possuem os mesmos direitos de acesso aos serviços de saúde que os cidadãos, além de viverem geralmente em situações socioeconômicas de vulnerabilidade.

Isso mostra que a xenofobia e a exclusão dos diferentes não se aplica apenas ao discurso expressado em redes sociais ou com insultos nas ruas: há diversas formas de materialização de um regime segregacionista entre os povos que antecedem a produção de falas preconceituosas. Por exemplo, o número de pessoas que morreram tentando atravessar o Mar Mediterrâneo no ano de 2020 passou de 1.700, todos náufragos, que partiam dos países do norte da África em embarcações inapropriadas ou eram interceptados por patrulhas dos países do Sul da Europa. Na Espanha, especificamente, subiu mais de 44% o número da imigração ilegal até maio deste ano em comparação com 2020, ano em que já havia subido também uma taxa de 46% em ralação a 2019.

A maioria das pessoas consideradas imigrantes ilegais, comumente invisibilizadas, são, na verdade, refugiados de guerras e de outras formas de destruição causadas pelo colonialismo europeu em seus países originários. Elas estão em situação de migração forçada e têm uma destinação certa para o subemprego, principalmente nas plantações de grandes fazendas do agronegócio da comunidade europeia, como bem ilustra o documentário de 2020 da EuroNews: “Trabalhadores invisíveis: a exploração laboral nos campos europeus” (https://www.youtube.com/watch?v=jeF3re5ssPs). São seres humanos vivendo em circunstâncias de trabalho muitas vezes análogas à escravidão. Ainda assim, tenta-se controlar a entrada dessas pessoas em solo europeu, pois o Velho Mundo já possui um estoque de mão-de-obra barata muito grande, além do seu próprio contingente de desempregados nativos.

Esse é um quadro demográfico e social importante para entendermos a chamada “crise migratória”, que é o grande motor da xenofobia. E, no contexto de pandemia, outras problemáticas já se configuraram e mudaram o papel de algumas nações no tabuleiro global. É o caso do Brasil, que assume uma posição trágica. Devido à falta de planejamento do governo Bolsonaro no combate à COVID-19, por razões político-ideológicas e interesses escusos dos gabinetes paralelos em Brasília, o Brasil passou a ser visto no mundo como um palco de novas mutações do SARS-CoV-2. Desde o início deste ano, divulgou-se constantemente nos principais jornais internacionais uma enxurrada de notícias sobre a chamada “variante brasileira”, o que fez se vincular à presença dos brasileiros uma imagem de perigo, um estigma de vetor do coronavírus.

Não é preciso mencionar que brasileiros e brasileiras já eram objeto de inúmeros preconceitos no exterior, sendo geralmente vítimas de racismo ou associados à prostituição. Somam-se, pois, a essas práticas xenofóbicas contra nós as consequências da pandemia que se traduzem também na diplomacia: vemos isso com as restrições de entrada de brasileiros em determinados países europeus. Cabe citar aqui a Espanha, a Alemanha, a França, a Itália, a Bélgica, entre outros, os quais sequer estão expedindo vistos para estudantes e pesquisadores brasileiros.

Em alguns países, como é o caso da Espanha, nem mesmo brasileiros trabalhadores ou familiares de residentes espanhóis estão autorizados a entrar: até brasileiros vacinados estão impedidos de voar à Espanha saindo do Brasil, enquanto o governo espanhol reabre o turismo para o resto do mundo. A razão pode ser ancorada em um aparente discurso médico de controle do coronavírus, mas sabemos que há interesses financeiros de fundo em torno da necessidade de reaquecer a economia espanhola, matéria em que ficamos de fora: o Brasil representa meros 0,6% do turismo para a Espanha... país em que a principal fonte de renda vem dos turistas estrangeiros e, por isso, não impõe as mesmas barreiras sanitárias a cidadãos britânicos, japoneses ou estadunidenses, para dar apenas alguns exemplos de turistas bem recebidos.

Essas motivações econômicas que classificam as nações em primeiro e segundo plano são as mesmas que se refletem nas práticas de xenofobia: os britânicos podem até ser rotulados de “arrogantes” e “esnobes”, mas jamais como “parasitas” como os brasileiros, que teriam apenas a intenção de se apropriar de bolsas de estudos e de benefícios da seguridade social dos países mais abastados da União Europeia. São cada vez mais comuns as manifestações preconceituosas agressivas contra brasileiros nas redes sociais e mesmo nas ruas, vindas de cidadãos “legítimos” europeus. Em Portugal, por exemplo, há um estudo da Casa do Brasil de Lisboa (https://casadobrasildelisboa.pt/wp-content/uploads/2021/03/Relat%C3%B3rio_MigraMyths_singlepage.pdf) que mostra uma estatística alarmante: em torno de 86% dos brasileiros em solo português já sofreram algum tipo de discriminação simplesmente pelo fato de terem nacionalidade brasileira – e não entram nessa contagem as novas formas de preconceito que derivam da imagem associada à “variante brasileira” do coronavírus.

Essas são as ironias do pêndulo da história: não somos bem-vindos em países que outrora enviaram tantos imigrantes para o território brasileiro. Cabe lembrar que o Brasil recebeu, só entre o final do século XIX e início do século XX, mais de 500 mil imigrantes espanhóis, mais de 100 mil alemães, mais de 800 mil portugueses e mais de 1 milhão de italianos, os quais saíram de suas terras em busca de melhores condições de vida, fugindo de diversos tipos de crise em que se encontrava o continente europeu. Ademais, muitos brasileiros que são vítimas de xenofobia hoje na Europa são descendentes daqueles mesmos imigrantes que vieram atrás de emprego no Brasil pouco mais de cem anos atrás.

Os princípios básicos das relações diplomáticas, fundados na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, prezam pela livre circulação dos povos e pelas relações amistosas entre as nações. Nesse sentido, toda forma xenofobia deve ser combatida, quer seja manifestada verbalmente por simpatizantes de um conservadorismo nacionalista ou veladas em medidas de Estado editadas por governos que se dizem progressistas e defensores de valores democráticos.

*Júlio Bonatti, 32 anos, é doutor em Linguística pela UFSCAR. 

domtotal.com

www.miguelimigrante.blogspot.com


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