O fato da rota migratória mais mortífera do mundo ser uma que se dirige à Europa prova três coisas que exigem reação. Prova que a Europa é um destino apetecido, que no mar se mistura quem foge da guerra e de perseguições e quem foge em busca de uma vida melhor, e que a ausência de uma política de imigração consistente e de respostas rápidas aos pedidos de asilo alimentam as redes de tráfico de seres humanos que, quando não morrem, chegam em profunda miséria às nossas costas. O direito dos europeus decidirem sobre as políticas migratórias que querem ter não os isenta de responsabilidades perante crises humanitárias, nem justifica que se misture tudo não resolvendo nada. Mas é o que a União Europeia continua a fazer.
A Agência das Nações Unidas para a Droga e Crime publicou, no passado dia 28 de junho, o Relatório sobre o tráfico de migrantes e refugiados. Uma realidade dura e desumana para quem, sem possibilidade de usar as vias legais e fugindo da guerra, da violência e da pobreza extrema, coloca nas mãos de um traficante o seu destino, o seu futuro, a sua vida.
De acordo com o Relatório, de todas as rotas migratórias no mundo, a do Mediterrâneo surge como a mais perigosa, seja em número de mortes na travessia, seja na violência exercida sobre migrantes e refugiados. Uma rota onde se estima terem perdido a vida, desde 2014, mais de 20 mil pessoas.
A violência dos números é a demonstração de que não estamos apenas perante uma crise de natureza migratória. Estamos, cada vez mais, perante uma crise que assume contornos de crise humanitária e que faz do Mediterrâneo a rota mais mortífera do mundo.
Esta realidade resulta, em grande parte, do facto de a Europa ainda não ter sido capaz, por um lado, de definir a sua política de imigração e, por outro, de não ser suficientemente capaz de lidar com as suas obrigações e responsabilidades internacionais.
De acordo com o relatório, são os homens, a grande maioria dos migrantes e refugiados traficados, que sofre uma maior violência e abuso neste caminho. São reportados frequentes casos de trabalhos forçados, violência física e psicológica e tratamento degradante. Às mulheres são reportados casos de violência física e sexual e o acesso reduzido ou nenhum a cuidados de saúde.
Neste relatório são ainda identificadas outras rotas migratórias mais violentas: o Estreito de Darian, na América Central; o Deserto do Saara; além do já referido Mar Mediterrâneo. Em qualquer uma destas três travessias, migrantes e refugiados reportam escasso acesso a água ou alimentação e estão permanentemente sujeitos a condições atmosféricas extremas. E durante esta travessia, mulheres e crianças em dificuldade são, na sua grande maioria, deixadas para trás e abandonadas à morte.
De acordo com as Nações Unidas, 46% das mortes registadas em todas as rotas migratórias no mundo verificam-se na rota do Mar Mediterrâneo, estimando-se que mais de 20 mil pessoas tenham perdido a vida no mar desde 2014, um valor muito abaixo da verdadeira realidade dos factos face à impossibilidade de registar, com rigor, todas as mortes. E nos primeiros dois meses de 2021 já se contabilizam mais de 221 mortes.
Das três rotas mediterrânicas (Ocidental, Central e Oriental), a rota do Mediterrâneo Central, travessia realizada entre a Líbia e Itália, é a mais perigosa de todas – contando com 69% das mortes – por duas razões: por um lado, é a rota mais longa (cerca de 300 km) e, por outro, os barcos são inadequados para o percurso e não dispõem de equipamento de segurança. A comida e água nas embarcações é escassa, assim como o combustível, que raramente serve para chegar ao destino, originando que muitas embarcações fiquem à deriva no mar e entregues à sorte da eventualidade de serem detetados por alguma autoridade costeira europeia.
A utilização da rota do Mediterrâneo Central é muito sazonal e o número de travessias aumenta nos meses de verão, com a acalmia do mar. Daí a necessidade de olhar com especial cuidado para os meses que se avizinham. Para já, o mês de junho de 2021 foi bastante significativo no número de episódios que originaram mortes por naufrágio – contabilizamos já 866 mortes só neste ano.
De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a 25 de junho as autoridades tunisinas resgataram do Mar Mediterrâneo mais de 250 migrantes do Bangladesch, vindos da Líbia e que tentavam chegar à Europa – a maior missão de salvamento no Mediterrâneo realizado pelas autoridades tunisinas.
Outra tragédia chega-nos do Iémen, a 13 de junho. De acordo com as Nações Unidas encontram-se desaparecidas, depois do barco onde seguiam ter-se afundado, mais de 200 migrantes do Iémen e do Corno de África.
A 11 de junho e de acordo com OIM, a polícia costeira da Líbia intercetou mais de 200 migrantes que tentavam chegar à Europa. Estas pessoas foram, entretanto, transferidas para centros de detenção, na Líbia, sem condições e sujeitas a todo o tipo de violências e maus tratos.
Esta crise migratória com uma crescente dimensão humanitária é resultado da incapacidade ou impossibilidade da União em conseguir definir com clareza a sua política migratória e respeitar as regras a que está obrigada em matéria de política de asilo.
Por um lado, a União deve ser intransigente quanto à aplicação do Direito Internacional, nomeadamente quanto à Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto de Refugiado e quanto à aplicação princípio do Non-Refoulement. Em consequência, a aplicação do direito de proteção internacional e a garantia do direito de asilo não podem ficar dependentes da vontade única de um Estado-membro. Por isso mesmo, não podemos ter a Dinamarca a querer reenviar refugiados sírios de volta para Damasco, porque a considera como zona segura, contra a opinião das Nações Unidas e de várias organizações internacionais. Assim como não podemos ter a Alemanha a suspender processos de reunificação familiar ou a terminar com a proibição geral de deportação de sírios para o seu país de origem.
Por fim, a União deverá ser capaz de criar a sua política de imigração, definindo com clareza a natureza da imigração que pretende ter no seu território, quais as qualificações, para que áreas e sectores de atividade. Seja para colmatar as necessidades de mão-de-obra, seja para repovoamento de zonas desfavorecidas ou desabitadas.
Enquanto a União Europeia não for capaz de responder aos problemas migratórios na sua globalidade (sejam necessidades de proteção internacional ou imigração), não deixa a quem foge da guerra, da violência e da morte, ou a quem, legitimamente, procura melhores condições de vida e uma nova oportunidade, uma alternativa às redes ilegais de tráfico de refugiados e migrantes. E esta resposta deve estar enquadrada nas obrigações da União perante o Direito Internacional, no seu próprio ordenamento jurídico, no respeito pela Carta Universal dos Direitos Humanos, assim, como na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, nos seus Tratados, bem como na sua legislação ordinária.
Tiago Cardoso
/observador.pt
www.miguelimigrante.blogspot.com
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