segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Emigração cubana pelo RS

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Os quatro cubanos que sofreram acidente de trânsito em Santa Vitória do Palmar, no extremo sul do Estado, não estavam cruzando o Brasil rumo ao Uruguai para turismo: eram parte de novo fenômeno migratório que sai do Caribe em direção à América do Sul. A maioria nutre o desejo de fazer de Montevidéu um trampolim para os Estados Unidos. 
Em meio à jornada, há também os que vão ficando pelo caminho, decidindo solicitar refúgio e fixar residência no Rio Grande do Sul, na Fronteira Oeste. O acidente, que matou três cubanos e quatro brasileiros, acabou expondo a nova rota de migrantes caribenhos. 
Em 5 de janeiro, na Calle Chile, rua do lado brasileiro do Chuí, a apenas duas quadras da fronteira com o Uruguai, oito cubanos se reuniam em frente ao Hotel Bianca. Falavam ininterruptamente, em espanhol. Era meio de tarde e o sol ardente deixava o clima seco, a poeira tomava o horizonte. Quatro deles, um casal com dois filhos, se hospedaram para passar a noite.
Os outros acharam cara a diária e saíram à procura de uma casa para alugar por 30 dias. Entre eles, estava o casal Carlos Luis Torres Molina, 47 anos, e Ivon Rodriguez Perez, 44. De casamentos anteriores, deixaram quatro filhos (um dele e três dela) em Cuba aos cuidados de parentes. Contaram ter partido de Havana, no início da jornada que costuma levar entre três e quatro dias, em 30 de dezembro. Ao falarem dos companheiros de viagem, a surpresa:
– Saímos de Cuba em um grupo de 25 pessoas, contando com os quatro que se acidentaram no táxi (em Santa Vitória do Palmar). Os conhecemos somente na travessia. Estivemos com eles mais ou menos até a chegada a Boa Vista (capital de Roraima), depois nos separamos – conta Molina, que construía móveis artesanais na ilha comunista.
Mateus Bruxel / Agencia RBS
No dia 1º, táxi que levava quatro cubanos rumo ao Chuí bateu contra Fiesta. No total, sete pessoas morreram
Os migrantes cubanos ingressam no Brasil pela fronteira entre Guiana e Roraima, na cidade de Bonfim. Sem ter o visto consular, recebem autorização de turista, que vale por 90 dias. Depois, precisam pedir o refúgio na Polícia Federal (PF), o que lhes dá o direito, mesmo antes do julgamento sobre a aceitação, de ter carteira de trabalho e CPF. 
– Não queremos mais voltar. Vendemos tudo em Cuba, até a casa – diz Molina, que conta ter gasto US$ 4 mil para chegar ao sul do Brasil com a mulher.
Tensão e dificuldade para encontrar pouso
Naquela tarde, ele e Ivon, além de ter de procurar por um lugar para dormir, sentiam-se aflitos por não saber como solicitar a permanência na América do Sul. Estavam em dúvida entre ficar no Brasil, que avaliam ser mais próspero, ou seguir ao Uruguai, onde os papéis de legalização saem com mais rapidez.
Decidiram pela opção brasileira, tomaram informações junto às autoridades sobre os procedimentos legais. Anotaram o passo a passo em um bloquinho. Já não estavam mais tão perdidos quanto antes. Mas ainda não tinham onde dormir.
A noite caiu, e Molina começou a ficar nervoso. Ele e Ivon regressaram ao Hotel Bianca, no Chuí, pegaram as malas que estavam guardadas ali, e passaram a fazer as últimas tentativas de arrumar pouso. Tenso, Molina passou a fumar um cigarro atrás do outro, da marca cubana H. Upmann. Moreno alto, magro e forte, faz um tipo descolado, bem vestido e vaidoso. Enquanto Ivon negociava uma casa pelo telefone, sem sucesso, o homem marejou os olhos ante a assombrosa hipótese de dormir ao relento em país desconhecido.
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Eram 21h35min quando os companheiros cubanos surgiram para chamá-los a se juntar a outra negociação de aluguel. O casal pegou as suas duas malas e partiu em caminhada, desaparecendo em meio ao amontoado de free shops.
Em Santana do Livramento, uma família se multiplica
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Giovani Pino desembarcou em Santana do Livramento há seis meses
Distante 597 quilômetros do Chuí, na também fronteiriça Santana do Livramento, grupos de entre 10 e 15 cubanos chegam à rodoviária quase todos os dias. Seis meses atrás, desembarcaram ali, vindos de Havana, Giovani Pino, 42 anos, sua esposa Sandra Cristina, 24, e o padrinho do homem, Benedito Fernandez, 60. Pino optou por permanecer na cidade, encaminhou os papéis de refúgio e logo foi ajeitando a vida:
– No primeiro dia em que cheguei, o patrão me acolheu, me deu a oportunidade do emprego, um bom salário e teto para minha família.
Fernandez ganha a vida como pedreiro na cidade, e Pino trabalha no restaurante da rodoviária. Faz de tudo um pouco. Reside em um apartamento no hotel que fica em frente ao emprego, de propriedade da mesma família dona do terminal de ônibus. Há quase dois meses, Sandra, que viajou grávida, fez o parto na Santa Casa de Misericórdia, em Livramento. Nasceu Maria Victoria.
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Há seis meses em Santana do Livramento, Pino já tem emprego e viu a mulher, Sandra, dar à luz a filha Maria Victoria
– Gosto de Cuba, mas preciso trabalhar. Estou bem aqui, quero ficar por um bom tempo. E agora tenho uma filha brasileira. Acho que isso vai ajudar nos papéis – diz Pino. 
De outros casamentos, ele deixou seis filhos na ilha caribenha. Tem um neto. Até o momento, não conseguiu enviar dinheiro aos que ficaram. Está priorizando economizar ao máximo para comprar uma casa:
– Os cubanos migram há 30 anos. Onde há oportunidade, migramos.
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Alternativa aos EUA na América do Sul
A pergunta ainda não plenamente respondida é o motivo de os cubanos estarem escolhendo o Uruguai e, mais recentemente e em número ainda comedido, o Brasil. Dados do jornal El País, de Montevidéu, indicam que 6.350 cubanos ingressaram naquele país entre 2016 e 2017. Mas os números se avolumaram a partir de meados do ano passado.
– A chegada de cubanos irá continuar. Não sei até quando, mas continuará. A solidariedade dos uruguaios é um ponto que ajuda nisso – diz Olga Alemán, presidente da Associação de Cubanos no Uruguai.
– É um país receptivo, nutre boas relações diplomáticas, tem legislação que facilita a emissão do refúgio. Muitos estão ficando por aqui, mas, de fato, a ideia inicial da maioria é fazer de Montevidéu uma plataforma para seguir aos EUA – completa Karla Mateluna, uruguaia que mora no Chuy e integra a ONG Idas y Vueltas, de acolhida a imigrantes.
Com a porta dos EUA cada vez mais fechada a estrangeiros, eles seguem procurando alternativas para fugir da falta de emprego e de dinheiro na ilha caribenha, sobretudo desde o início dos anos 1990, após o colapso da antiga União Soviética. A opção uruguaia é reforçada pelo idioma e pelo fato de muitos cubanos já contarem com parentes no país.
– Em 2016, o então presidente dos EUA, Barack Obama, eliminou a política pés secos/pés molhados, que permitia a todo cubano que chegava à fronteira ter caminho aberto para o refúgio e a residência permanente (green card). Milhares de cubanos estão ficando presos na América Latina a caminho dos EUA. Centenas se encontram neste momento chegando a Chile, Peru, Uruguai, Brasil e Argentina, vindos principalmente da Guiana, um dos poucos países que não exige visto para eles – conta Mario J. Pentón, cubano residente em Miami, jornalista do diário 14ymedio, com noticiário especializado na ilha caribenha. 
A cobrança de visto revela o motivo de os migrantes não tomarem um avião no Aeroporto José Martí, em Havana, direto para São Paulo, Montevidéu ou Buenos Aires. Tanto os viajantes quanto o jornalista, crítico do regime dos irmãos Fidel (morto em 2016) e Raúl Castro, explicam que os cubanos estão bloqueados. Para sair de Cuba por via aérea, só conseguem visto consular para Guiana e Rússia. Por isso, seguem até Georgetown, na Guiana, e ingressam no Brasil por via terrestre. 
– Se calcula que ao menos 82 mil cubanos chegaram ao Uruguai na última década, tendência que deve aumentar pelas difíceis condições que encontram para viajar aos EUA, onde existe a maior comunidade de exilados – afirma Pentón. 
Polícias suspeitam de rede de atravessadores
Autoridades policiais não estão convencidas e demonstram estranheza com o fluxo crescente. Nos bastidores, é recorrente a indicação de que a PF está em busca de informações. A Polícia Civil gaúcha, em suas bases fronteiriças, faz o mesmo. Uma das suspeitas é de que redes internacionais de coiotes estejam insuflando a alternativa da América do Sul, criando rotas difíceis e longas para vender soluções. Traficantes de pessoas, no contexto da chegada dos cubanos, foram presos recentemente no Uruguai. E os relatos de jornadas de trabalho exaustivas já começam a surgir. É mais um capítulo da crise humanitária mundial, com ingredientes de um embrionário processo migratório na América Latina.
Gauchazu

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