No ano em que se comemora 130 anos da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil em 1888, o crime ainda é recorrente no país, ainda que a prática tenha se aprimorado na forma. De acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo, iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 2003 e 2017 43.428 pessoas foram resgatadas em situações análogas a escravidão no Brasil, com base no sistema de Controle de Erradicação do Trabalho Escravo (Coete).
Entre os resgatados, 77,28% são negros, pardos ou indígenas, 94,89% são homens e 72,56% são analfabetos ou têm até o 5° ano incompleto.
Ontem (28) foi o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, data criada em 2009 para homenagear os auditores fiscais do Trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados em 28 de janeiro de 2004, durante vistoria para apurar denúncias de trabalho escravo em fazendas de Unaí, em Minas Gerais, em um episódio que ficou conhecido como Chacina de Unaí.
Na última semana, houve um ato público em frente ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, para exigir a prisão dos quatro empresários condenados como mandantes dos assassinatos, que recorreram da sentença e continuam em liberdade. Os executores do crime estão cumprindo pena desde 2013.
Na próxima semana, declarada Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o Ministério do Trabalho vai promover diversas ações de conscientização sobre o tema. O objetivo é sensibilizar a população e incentivar a erradicação do trabalho escravo. “As atividades programadas incluem a distribuição de material sobre o assunto e a realização de simpósios, painéis e manifestações nas redes sociais”, informou o Ministério, por meio da assessoria de imprensa.
O dia 28 de janeiro também celebra o Dia Nacional do Auditor-Fiscal do Trabalho (AFT), profissionais responsáveis pela inspeção do trabalho no Brasil. De acordo com o Ministério do Trabalho, em 2017 foram realizadas 206 mil inspeções, que resultaram em mais de 257 mil autos de infração. Dentre as ações dos auditores estão a repressão ao trabalho infantil e ao escravo, a inclusão de pessoas com deficiência, o combate à informalidade e a diminuição dos acidentes de trabalho.
Escravidão moderna
O problema não ocorre só no Brasil. A estimativa do relatório Índice de Escravidão Global 2016, da Fundação Walk Free, é de que naquele ano havia cerca de 45,8 milhões de pessoas em todo o mundo sujeitas a alguma forma de escravidão moderna.
A escravidão moderna ocorre quando uma pessoa controla a outra, de tal forma que retire dela sua liberdade individual, com a intenção de explorá-la. Entre as formas de escravidão estão o tráfico de pessoas, trabalho infantil, exploração sexual, recrutamento de pessoas para conflitos armados e trabalho forçado em condições degradantes, com extensas jornadas, sob coerção, violência, ameaça ou dívida fraudulenta.
Durante palestra em Londres na quarta-feira (24), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, reconheceu que há tráfico de trabalhadores no território nacional, principalmente para serem escravizados em empreendimentos rurais remotos. Segundo ela, a escravidão rural atinge predominantemente os brasileiros, enquanto a escravidão urbana atinge mais os estrangeiros, na sua maioria bolivianos, traficados para cidades grandes para trabalhar em indústrias de roupas. Eles são confinados em galpões, onde vivem e trabalham escondidos da fiscalização do Ministério do Trabalho.
Raquel Dodge explicou que “a escravidão moderna não é uma atividade acidental, nem ocasional. Afirmou que a prática ultrapassa fronteiras internacionais em muitas modalidades” e que também envolve a produção e o tráfico de bens ilícitos. “É um empreendimento complexo, de grande proporção, voltado para a obtenção de lucro, que exige grande investimento e preparação”, disse Raquel. “Quando reúne tais características, a escravidão moderna corresponde ao conceito de crime do colarinho branco, exatamente a modalidade de crime de mais difícil persecução penal”, defendeu.
Cooperação internacional
Ela informou ainda que a escravidão moderna vai além da coerção física. “Pode ter um componente de persuasão, de coerção psicológica, como ocorre na servidão por dívida, que é sempre maior que os créditos do trabalhador, o que torna impossível a quitação e nunca os desobriga. Nesse caso, a coerção psicológica resulta em trabalho forçado sem pagamento.”
“O enfrentamento à escravidão moderna é uma tarefa que precisa ser exercida em cada país e deve contar com a cooperação internacional para sedimentar princípios, combinar estratégias, compartilhar boas práticas. A escravidão moderna é uma atividade muito lucrativa, com alto poder corrosivo das instituições democráticas e a maior nódoa sobre a condição humana”, acrescentou.
Raquel Dodge destacou que a escravidão também ocorre quando há humilhação contínua, com exposição a condições degradantes de trabalho, tratamento inferior ao garantido aos animais, restrição ao uso de água potável, com entrega de alimentos deteriorados ou em quantidades insuficientes. Segundo a PGR, nas 712 inspeções em propriedades rurais, de 1993 a 2004, foram registrados 142 casos de escravidão moderna, com 7.763 vítimas sob a modalidade de servidão por dívida.
Código Penal
Pela definição do Código Penal brasileiro, submeter alguém a atividade análoga ao escravo é sujeitar a trabalho forçado ou jornada exaustiva, quer impondo ao trabalhador condições degradantes, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção, em razão de dívida contraída.
Qualquer cidadão pode denunciar a prática de exploração análoga ao trabalho escravo em postos de atendimento do Ministério do Trabalho, tanto nas Superintendências Regionais como nas Gerências Regionais do Trabalho. Também é possível fazer a denúncia por meio do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos.
A eficiência do combate ao trabalho escravo no Brasil pelo governo foi ameaçada no último ano. Houve corte de verbas para ações de fiscalização, denunciado, entre outros, por meio de nota técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que mostra que houve um corte de 70,9% dos recursos do Tesouro Nacional para a Secretaria de Fiscalização do Trabalho.
Em outubro de 2017, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) publicou portaria estabelecendo que, para que fosse considerada jornada exaustiva ou condição degradante, seria necessário que houvesse a privação do direito de ir e vir, o que no Código Penal não é obrigatório, dificultando o combate à prática.
Nova portaria
O texto também alterava as regras para flagrante e para publicação da lista de empresas que teriam cometido essa prática, além de retirar a autonomia dos auditores-fiscais durante inspeções. Uma das mudanças previa que a “lista suja” divulgada pelo Ministério, que traz os nomes de empregadores autuados pela prática do crime e que cabia à área técnica, só seria divulgada com a autorização do Ministro.
Na época, o documento recebeu críticas de entidades nacionais e internacionais, que argumentavam que as novas regras dificultavam a fiscalização e o combate ao crime. A portaria teve seus efeitos suspensos por meio de uma liminar concedida pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a argumentação de que abria margem para a violação de princípios fundamentais da Constituição – entre eles o da dignidade humana, do valor social do trabalho e da livre iniciativa.
No dia 29 de dezembro de 2017, o Ministério do Trabalho publicou nova portaria revendo os pontos polêmicos relativos à fiscalização e divulgação de empresas cuja atividade faz uso de trabalho em condições análogas à escravidão. Com o novo texto, o Ministério do Trabalho voltou a adotar critérios já estabelecidos internacionalmente para definir o que é trabalho forçado.
Corte Interamericana
Também em Londres, a procuradora-geral da República anunciou a criação de uma força-tarefa para reconstituir o caso de um grupo de 128 trabalhadores rurais mantidos em situação análoga à escravidão por mais de uma década na Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no sul do Pará. A Fazenda Brasil Verde pertence ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos maiores criadores de gados da região Norte do país.
A medida é uma resposta do Estado brasileiro à condenação por conivência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que determinou a reabertura das investigações para identificar, processar e punir os responsáveis pelos crimes, além da indenização das vítimas em U$ 5 milhões. Os trabalhadores processaram o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) após várias denúncias não atendidas no país, e venceram. Esta foi a primeira vez que a Corte julgou um caso sobre escravidão e tráfico de pessoas.
A criação da força-tarefa atende a pedido da Câmara Criminal do Ministério Público Federal, e de acordo com a procuradoria-geral, “visa garantir o cumprimento integral da sentença da CIDH que condenou o Estado brasileiro por não ter adotado medidas efetivas para impedir a submissão de seres humanos a condições degradantes e desumanas”.
Quatro procuradores vão coletar material probatório dos fatos ocorridos há mais de 20 anos e vão auxiliar o procurador responsável pelo caso nas oitivas de cerca de 50 vítimas submetidas a condições degradantes na fazenda, que já foram localizadas e residem em 11 estados brasileiros.
Edição: Armando Cardoso
Agencia Brasil
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