Certo dia, a refugiada congolesa Anne
chegou na sua casa em São Paulo e prometeu que dali em diante tudo seria
diferente. Ela havia deixado para trás uma carreira de modelo no seu país de
origem e, para cuidar dos cinco filhos no Brasil, percebeu que sair de casa era
uma questão de sobrevivência – dela e da família.
Vivendo como refugiada há sete anos no Brasil, Anne bateu em
várias portas até, finalmente, encontrar um emprego. Hoje, trabalha como
doceira numa pequena loja de bolos.
Mas com um salário insuficiente e com o marido desempregado,
Anne quer mais. Mas no esforço de melhorar sua vida e da sua família, foi
confrontada por uma realidade ainda mais complexa para lidar.
“Quer dizer que agora você acha que é homem? Só quer trabalhar e
sair. Quem vai cuidar das crianças? Eu é que não vou”. Foi isso que ela ouviu
do marido quando decidiu buscar por um emprego que oferecesse um salário maior
e, consequentemente, exigiria maior dedicação. Contrariado, o companheiro
passou a agredir Anne verbalmente e, segundo ela, também a agrediu fisicamente.
“Mas foi só uma vez”, garante.
Anne compartilhou esta história num grupo de cerca de 20
mulheres, todas refugiadas, que participaram em São Paulo da atividade “Empoderando
Mulheres”, articulada entre o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), o Pacto Global, a ONU Mulheres, o PARR (Programa de Apoio
para a Recolocação dos Refugiados) e a consultoria Fox Time.
O objetivo do encontro foi discutir questões ligadas à igualdade
de gênero e inserção de mulheres no mercado de trabalho. Durante o encontro,
também foram discutidas formas de abordar os casos de violência contra a
mulher.
A representante da ONU Mulheres, Adriana Carvalho, mostrou a
disparidade salarial entre homens e mulheres e, ainda mais, entre brancos e
negros. Enquanto um homem branco no Brasil tem um salário médio de R$ 2.262,30,
uma mulher da mesma cor recebe, em média, R$ 1.517,70. Entre os negros, os
homens recebem R$ 1.256,90, e as mulheres, R$ 876,40. Ao ouvir isso, a
refugiada angolana Sylvie protestou: “Isso é um absurdo. O problema é a
injustiça. A diferença de salário não deveria ser ligado à cor. Negro trabalha
muito mais e ganha pouco”.
Para Adriana Carvalho, a diferença salarial pode ser atribuída a
uma série de fatores e ainda se agrava no caso das refugiadas: “O fato de ser
refugiada já é um status complicado. Em geral, as pessoas já olham com
preconceito por que não entendem. E quando junta a questão racial e de gênero,
fica ainda mais complicado”. Para ela, fornecer informações precisas sobre
direitos trabalhistas e difundir o tema da igualdade de gênero é o melhor
caminho para provocar transformações sociais.
Ainda sobre a questão do trabalho, a gerente de Desenvolvimento
Organizacional da Fox time, Danielle Pieroni, ressalta a importância do
acompanhamento contínuo da integração das refugiadas ao local de trabalho, pois
isso ajudaria a “prevenir que elas sejam enganadas”. Para ela, o país “passa
por um momento econômico onde o trabalho informal é crescente, e é justamente
esta categoria de trabalho que apresenta o maior número de queixas
trabalhistas”, explica.
Uma forma de evitar ilegalidades, segundo Danielle, é promover a
sensibilização das empresas para a temática do refúgio. “É preciso estimular as
adaptações necessárias e também sensibilizar as equipes de Recurso Humanos para
que a empresa esteja pronta a integrar um funcionário refugiado e, assim,
evitar que esta pessoa sofra com bullying ou preconceito”, conclui.
Durante o encontro, a promotora de Justiça Maria Gabriela Prado
Manssur, Coordenadora do Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher do
Ministério Público do Estado de São Paulo, abordou aspectos de proteção contra
a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha.
“As refugiadas precisam entender que, uma vez estando no Brasil,
tanto ela como o agressor estão sujeitos às leis brasileiras. Mesmo que elas
venham de um contexto cultural onde a mulher era tratada como submissa ou que a
violência física seja tolerada como algo ‘normal’, é importante que elas
percebam que nenhum tipo de violência é ‘normal’ e, portanto, é uma situação
que precisa ser combatida”, esclarece.
Para a promotora, a criação de uma rede de proteção possibilita
que as mulheres se sintam seguras para fazer denúncias: “É por meio da
conscientização e do empoderamento que estas mulheres vão conseguir romper o
silêncio e impedir a perpetuação do ciclo de violência”, ressalta a doutora
Maria Gabriela.
Depois de ouvir um dia inteiro de conversas e informações, Anne
disse que, mais uma vez, quer mudar de vida. Ela vai procurar ajuda para
aprender a lidar com as pressões do marido e, timidamente, começa a vislumbrar
um futuro onde seja a responsável pelo sustento de seus cinco filhos, sem se
sujeitar às vontades do companheiro. Sentiu-se empoderada e dona de suas
próprias escolhas, enfim.
Por Luiza Bodenmüller, de São Paulo.
Por: ACNUR
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