Enquanto permanecer sendo vista como problema, a imigração será combustível para discursos de ódio
Por Camila Rodrigues da Silva e Luis Felipe Aires Magalhães
Este ano de 2024 marca não apenas os dez anos de realização da I Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar), que ocorreu ainda no governo Dilma, como também a organização da II Comigrar, que será em Foz do Iguaçu (PR), entre os dias 7 e 9 de junho. A realização de uma segunda edição dessa conferência expressa os desafios, transformações e potencialidades das migrações internacionais no Brasil nas duas últimas décadas. Por um lado, imigrantes continuam enfrentando dificuldades em encontrar trabalho decente, em acessar serviços públicos – que são universais, e em ter direito à cidade onde vivem. Por outro, é crescente a organização e a mobilização de grupos de imigrantes de diversas nacionalidades, e eles estão articulados em um número cada vez maior de cidades brasileiras.
Falamos em cidades porque é nesse espaço em que grande parte da inserção sociolaboral e das interações étnico-raciais desses migrantes acontecem. Os postos de saúde, as creches, as escolas de educação básica e os serviços de assistência social, por exemplo, são predominantemente de responsabilidade dos municípios.
Por consequência, as principais dificuldades enfrentadas por eles guardam uma inegável relação com o direito à cidade. Na dimensão da moradia, a menor bancarização e o não reconhecimento de sua documentação lhes encaminham ao circuito informal de aluguéis, no qual residem em habitações precárias, como cortiços nas regiões centrais e favelas nas periferias urbanas. Nesta situação, sofrem com piores condições de mobilidade e de saneamento.
Na dimensão do acesso a serviços públicos, o racismo estrutural, o racismo institucional e a xenofobia destroem não apenas o mito da democracia racial como também do país acolhedor, já que essas pessoas não têm igualdade de tratamento. No mercado de trabalho, eles são alocados preferencialmente em atividades laborais mais desgastantes e de maior periculosidade e insalubridade, mesmo no caso daqueles que têm formação técnico-profissional e escolaridade de nível superior.
A despeito de sua presença crescente nas metrópoles brasileiras, seguem invisibilizados, sobretudo em registros e estatísticas civis que não têm o campo nacionalidade para preenchimento, impedindo, por exemplo, um conhecimento mais preciso das internações e óbitos de imigrantes no país, questão central para qualquer política pública de saúde da população migrante.
Além disso, a gestão urbana, historicamente acostumada a compreender o tema como de competência exclusivamente federal, ainda tem sido incapaz de oferecer serviços para migrantes que compreendam suas especificidades sociais, linguísticas, de documentação e, sobretudo, que estejam próximos aos seus locais de residência e sequer, na imensa maioria dos casos, reconhece a população migrante como sujeito organizado, o que resulta na inexistência de conselhos municipais de imigrantes. Como a legislação ainda impede que imigrantes tenham direito ao voto antes de se naturalizar (processo que, quando ocorre, ainda é demorado e burocrático), resta claro o porquê de a questão imigratória não ser, também, uma pauta nas eleições municipais.
Também observamos uma distribuição espacial desses imigrantes, considerando capitais e outros municípios de menor porte. Em 2010, 34% dos registros se concentraram no estado de São Paulo, segundo o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra). Em 2023, essa proporção reduziu para 22%. Em contrapartida, a proporção de registros em Roraima passou de menos de 1% em 2010 para 17% de todos os registros no Brasil em 2023. Os estados de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Amazonas também passaram a abrigar, proporcionalmente, mais migrantes que no início da década de 2010.
A principal causa dessa ampliação de destinos é a Operação Acolhida, criada em 2017 no Governo Temer, que tem feito a interiorização de venezuelanos que migram pela fronteira terrestre em Roraima. Com ela, o próprio Estado brasileiro está direcionando os imigrantes internacionais não só para capitais, mas para cidades do interior, atraídos por vagas na construção civil e no agronegócio, como Chapecó (SC), Maringá (PR), Dourados (MS) e Lucas do Rio Verde (MT).
Nesse cenário, em que a II Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (II Comigrar) pode avançar no direito à cidade dos milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil na última década?
Embora a nova Lei de Migração (nº 13.445 /2017), fruto da I Comigrar, tenha revogado a submissão do imigrante à Lei de Segurança Nacional, a questão migratória e de refúgio no país continuam enfrentando políticas securitivistas. Entre os exemplos dessa condição está a exclusividade de pastas e secretarias relacionadas à migração e ao refúgio no Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o distanciamento de ministérios como dos Direitos Humanos e Cidadania, Igualdade Racial, Desenvolvimento Social e das Cidades desta temática, e a manutenção da Operação Acolhida, estratégia militar de gestão migratória e controle de corpos criada no contexto da intensificação da migração venezuelana.
Uma consequência importante da forma securitivista de governança migratória é a excessiva concentração na esfera federal dos mecanismos de gestão da migração e do refúgio. Essa decisão, por um lado, obstaculizou durante décadas a criação de políticas públicas para migrantes nos municípios; por outro, impediu maior entendimento das mediações existentes entre migração e questão urbana.
Assim, é apenas recentemente que municípios brasileiros estão criando centros de referência para imigrantes, como é o caso de São Paulo, que possui desde 2013 uma Coordenadoria de Políticas para Imigrantes, criada durante a gestão de Fernando Haddad. Serviços para migrantes são oferecidos também nas cidades de Porto Alegre (RS), Caxias do Sul (RS), Rio de Janeiro ( RJ), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM) e Boa Vista (RR), entre outros.
Nesta conjuntura, é imprescindível que haja tanto organização política de imigrantes para sua maior participação social como também que este ascenço encontre espaços na gestão urbana, quer sob a forma de conselhos municipais, conferências de migração, fóruns interesetoriais, coordenadorias de políticas para migrantes etc.
Embora estejamos em ano de Comigrar, o avanço em políticas públicas federais pode não se refletir em avanços na ponta se os municípios não reconhecerem a urgência e importância das reivindicações da população migrante, não criarem espaços de participação e seguirem entendendo migrante apenas como problema, e não como sujeito de direitos.
Aos candidatos e candidatas nestas eleições municipais, importa considerar que políticas para migrantes trazem ganhos para toda a sociedade. Diferentemente do planteado pela extrema-direita e incorporado pelo senso comum sobre o tema, os migrantes não “roubam postos de trabalho”, mas sim os criam, tendo em vista sua propensão ao empreendedorismo. Eles não “deterioram os espaços públicos”, mas os ocupam e dinamizam, comercial e culturalmente. Não “sobrecarregam serviços públicos”, que já estavam defasados antes de sua chegada, mas contribuem para desenvolver formas de atender melhor a população vulnerável, chamam a atenção para o problema da insuficiência da rede de serviços públicos, e ainda podem oferecer sua capacidade técnica e profissional para aperfeiçoá-la.
Enquanto permanecer sendo vista como problema, a imigração será combustível para discursos e políticas de ódio, fracionando ainda mais o tecido social das metrópoles brasileiras, a segregação e a discriminação étnico-racial. Quando passar a ser compreendida como parte possuidora de direitos e de cidadania plena, a imigração poderá ser então percebida pelo próprio campo progressista como uma força social a mais na luta pela democratização do direito à cidade.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato)
Edição: Thalita Pires
Brasil de Fato
www.miguelimigrante.blogspot.com
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