segunda-feira, 30 de novembro de 2015

“A distinção entre imigrante e refugiado vale em tempo de paz. Mas estamos em tempo de guerra”

O psiquiatra e antropólogo italiano Roberto Beneduce dirige em Turim o Centro Frantz Fanon, de apoio psicológico a imigrantes e refugiados, que fundou em 1996. Na semana passada, esteve em Lisboa a convite do Instituto de Ciências Sociais (ICS) para a apresentação da palestra Europa, refugiados e retóricas de crise no IV Fórum da Associação Portuguesa de Antropologia. Em entrevista ao PÚBLICO, o professor da Universidade de Turim e autor de variadíssimos estudos académicos diz que “a fragilidade dos imigrantes e refugiados é materialmente produzida” pelos sistemas europeus, e “não unicamente pelos [seus] passados traumáticos”.
Quando os refugiados chegam a um país de acolhimento do que precisam concretamente?
A primeira necessidade é a de ser protegido relativamente a um mundo que é entendido como um mundo que ameaça, que persegue. É preciso imaginar os cuidados como uma protecção. É a partir dessa relação de protecção que podemos considerar um trabalho terapêutico autêntico. Os imigrantes perderam a confiança no mundo. É preciso saber trabalhar com pessoas que se sentem vigiadas, ameaçadas.
Esse é um dos desafios para os países que acolhem?
A imigração obriga-nos a reflectir ao mesmo tempo sobre nós mesmos e sobre os outros, sobre as nossas sociedades, os nossos sistemas, a nossa formação do Estado, a nossa História. A mensagem que tento passar — e tentei passar na conferência de quinta-feira — é que temos de imaginar uma abordagem nova relativamente à questão da imigração. Não apenas de um ponto de vista administrativo e das leis, mas também de um ponto de vista do conhecimento daqueles que cuidam dos refugiados. A ideia é aceitar o desafio da incerteza. Eu trabalho desde o início dos anos 90, mas tenho de começar sempre, e de novo, a pensar os problemas. Não é uma questão de retórica.
Porque as circunstâncias das pessoas que chegam são sempre diferentes?
As suas circunstâncias são, em cada momento, diferentes. Mas ao mesmo tempo, ao longo dos anos, tudo muda: as leis europeias, o perfil dos refugiados, o contexto geopolítico. Durante a guerra na ex-Jugoslávia houve uma atitude positiva e agora há uma resistência.
As pessoas são menos tolerantes agora do que eram nos anos 90?
Não é apenas isso. O caso do Balcãs foi um caso em que fomos [os países europeus] de certa maneira responsáveis. Decidimos de certa maneira intervir. Os problemas eram muito próximos de nós e sentíamos uma necessidade moral, não só política, de intervir. Agora, é como uma coisa imprevista que quereríamos repelir e que continua a pôr em causa as escolhas políticas dos nossos governos. Nós somos co-produtores da imigração, não somos apenas países que acolhem. Somos co-responsáveis pelo que se passa. Devemos reconhecer de forma autocrítica a nossa responsabilidade passada e presente.
O desafio é inédito ou o maior que alguma vez existiu desde os anos 40?
O desafio é inédito, porque põe a nu os erros de uma política internacional que começam em 2001 com o ataque às torres gémeas [em Nova Iorque]. A partir de 2001, reproduzimos erros atrás de erros. E construímos um território de guerra do Iraque e Afeganistão até à Líbia. Temos por isso a nossa quota-parte de responsabilidade na crise que agora nos sufoca.
Quando diz nós, refere-se a quem? Aos governos europeus e também aos Estados Unidos?
Sim. É preciso reconhecer que há uma ignorância dos nossos ministros dos Negócios Estrangeiros que não são capazes de prever o que se passa. Somos, cada vez mais, confrontados com problemas que nos ultrapassam. E os nossos governos não são capazes de assumir a responsabilidade de uma ignorância que é trágica, com as consequências que daí resultam.
Atribui o mesmo tipo de responsabilidade à Europa e aos Estados Unidos?
Não posso generalizar a todos os países europeus. Cada país assume a sua própria política. Mas não podemos deixar de nos interrogar sobre o que, por exemplo, a França fez na Líbia ou no Mali, e a Inglaterra no Iraque. Não nos podemos limitar a reconhecer os erros quando há milhares de mortes entre civis. Vamos estar perante estes problemas por muito tempo. Muito trabalho será exigido. As dificuldades económicas que estão, há anos, na origem deste problema migratório não encontram respostas para já. As desigualdades estão a aumentar. E as desigualdades dos direitos são uma das razões fundamentais deste processo caótico de imigração.

 Portugal 

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