quarta-feira, 27 de julho de 2022

ESPECIALISTAS APONTAM OS DESAFIOS DA ATUAÇÃO DA IGREJA NO ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO HUMANO NO BRASIL

 

Os noticiários brasileiros relatam com regularidade nos últimos anos denúncias de tráfico de pessoas. Todos os dias mulheres, homens, jovens e crianças são aliciados e tornam-se vítimas do tráfico de pessoas no Brasil e no mundo. 30 de julho é o dia mundial de enfrentamento ao tráfico humano, a data, instituída em 2013 pela na Assembleia Geral da Nações Unidas, é para refletir sobre este crime bárbaro que afeta milhões de pessoas. O Relatório das Nações Unidas divulgado em 2021, revelou que mais de 50 mil pessoas foram identificadas como vítimas de tráfico humano. No Brasil, com a pandemia da Covid-19 e aumento das vulnerabilidades, o tráfico de pessoas aumentou consideravelmente. O relatório aponta que mulheres e meninas são as maiores vítimas para a exploração sexual e também homens para o trabalho escravo.

O conceito de tráfico de pessoas segundo o Protocolo de Palermo, significa recrutamento, transportar, alojar, transferir ou acolher pessoas, recorrendo a ameaças ou uso da força ou outras formas de coação, abusos e situações de vulnerabilidade com entrega de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. Em resumo o conceito geral sobre tráfico humano, consiste no ato de comercializar, escravizar e explorar pessoas como se fossem mercadorias. Ainda que haja consentimento por parte da vítima, estes atos são classificados como crime. No Brasil, desde 2016 existe a Lei Federal nº 13.344/2016, que além de definir o tráfico de pessoas garante a reinserção das vítimas na sociedade.

O relatório nacional sobre tráfico de pessoas, produzido e divulgado em 2021 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em parceria com a Secretária Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAJUS/MJSP), identificou duas modalidades mais exploradas no Brasil: trabalho análogo à escravidão; seguido da exploração sexual. Existem quatro classificações para as modalidades do tráfico de pessoas em todo mundo: Tráfico para fins de exploração sexual, laboral ou trabalho análogo a escravidão, tráfico de migrantes e tráfico de órgãos. No Brasil outras modalidades foram reconhecidas pelo Ministério da Justiça, entre elas a servidão doméstica, mendicância e o casamento servil.

O tráfico de pessoas no país sob o olhar de quem enfrenta a realidade de perto

Em 2014, o tráfico humano foi tema da Campanha da Fraternidade (CF) e o resultado da reflexão fortaleceu ações existentes dentro da Igreja em conjunto com a sociedade civil. Atualmente a Igreja, sociedade civil e organismos internacionais caminham juntos no enfrentamento ao que o Papa Francisco considera como a grande chaga do mundo. Representantes da Comissão, organizações, órgãos públicos, núcleos de defesa e pesquisadores expõem o reflexo do enfrentamento nos últimos anos, sobretudo ao contexto da pandemia e da crise econômica social no país. Os entrevistados apontam os avanços e retrocessos nas políticas públicas, dados subnotificados do crime, regiões com maiores dificuldades de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.

A religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, que integra a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, da CNBB, irmã Eurides Alves de Oliveira, coordenou em âmbito nacional a rede “Um Grito Pela Vida”. Atuando na cidade de São Paulo, ela fala da realidade do enfrentamento em grandes cidades e das articulações não efetivas junto ao poder público. Silvia Cristina Xavier é Coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria Estadual da Justiça e Trabalho do estado do Paraná. Silvia coordena junto à equipe um trabalho de prevenção que estreita as relações com os órgãos e instituições do Estado, mas ainda carece de capacitação. A socióloga, doutora em sociedade e Cultura, Márcia Maria de Oliveira da Universidade Federal de Roraima, partilha sobre a ausência dos estados e fiscalização na região norte do país ao enfrentamento ao tráfico humano. O procurador do Trabalho e vice coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete/MPT), Italvar Filipe de Paiva Medina, responde sobre os avanços e retrocessos no combate ao trabalho análogo a escravidão.

Qual a maior dificuldade no enfrentamento ao Tráfico Humano na atual conjuntura e consequências da pandemia da Covid-19 na região sudeste do país?

Irmã Eurides Alves de Oliveira: Primeiro, a maior dificuldade é mensurar de forma real a situação na região sudeste, em particular no estado e na cidade de São Paulo. A ausência de dados é a maior dificuldade. Existem registros de denúncias, mas são subnotificadas. Temos os dados nacionais, mas são muito pulverizados, cada órgão tem uma estatística que são importantes, mas que não dão conta da dimensão desta realidade. Em São Paulo enfrentamos a situação do trabalho análogo a escravidão que envolve os migrantes, que são explorados no mercado informal, oficina de costura, indústrias e outros setores. Temos o tráfico para o trabalho infantil e a exploração sexual. A fome e a miséria na vida das pessoas que vivem nas áreas urbanas da região sudeste as deixam suscetíveis a este crime. Em nosso atual cenário, o tráfico acontece até pela anuência da pessoa, mesmo sabendo que não é o certo, mas acaba sendo a alternativa na vida como meio de sobrevivência. Esta é uma realidade na cidade de São Paulo que estamos vivenciando. A região sudeste por concentrar o maior número das metrópoles, é onde se tem a maior dificuldade de mensurar a quantidade e o enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Em algumas regiões do país, incluindo o sudeste houve desarticulações dos núcleos e a política nacional de enfrentamento ainda é pouco compreendida, como você analisa esta realidade?

Irmã Eurides Alves de Oliveira: Até o ano de 2016 São Paulo tinha um núcleo de enfrentamento bastante combatível e há mais de dois anos este mesmo núcleo encontra-se inativo. Nós quanto comissão e sociedade civil temos o dever em chamar atenção do estado para a urgência em reativar os espaços e os mecanismos de enfrentamento. Talvez um dos grandes problemas, seja o fato que em nosso país as políticas públicas não sejam de estado e sim de governo, não há prioridade e isso desestrutura os mecanismos. O desafio neste momento é a sociedade ficar atenta às propostas de políticas de governo quanto a pauta do tráfico humano. Estamos em período eleitoral, temos que ficar atentos a quais candidatos pautam este tema em suas plataformas de governo e após as eleições batalhar para que o congresso e senado referendam o enfrentamento como política de estado e não apenas como uma pasta.

A região sul do país é tríplice fronteira e rota do tráfico de pessoas, o estado do Paraná possui boa articulação com o organismo do estado para o enfrentamento, como manter essa articulação no enfrentamento ao tráfico de pessoas?

Silvia Cristina Xavier: Durante a pandemia não paramos de fazer atendimento e os serviços de prevenção. Nesse período tivemos relatos, mas não tivemos a denúncia formalizada. São casos que em razão do isolamento a vítima estava com proximidade do aliciador e não se sentiu segura. Isto colabora para a subnotificação das denúncias. Manter uma articulação junto aos órgãos públicos e instituições é uma constante. Precisamos manter a todo tempo a capacitação, o diálogo e o trabalho de prevenção nestes espaços para que as autoridades coatoras recebam as denúncias, entendendo que é de lei realizar a investigação. Os aliciamentos pelas redes sociais têm aumentado seduzindo as vítimas para tráfico de exploração sexual e o trabalho escravo. Por isso é importante a capacitação dos servidores para prevenção destes crimes. Já faz tempo que fazemos a capacitação nos órgãos públicos do estado. Realizamos capacitações nos hospitais de referência do estado do Paraná, na rede de educação, no judiciário, conselho tutelar e assistência social.

A campanha de enfrentamento no estado do Paraná é permanente e acompanha a agenda nacional e do estado, é uma das formas de multiplicar agentes. Temos buscado outras estratégias para alcançar mais espaços, a exemplo das igrejas cristãs que participaram da capacitação neste mês de julho. Toda essa articulação e relação com as organizações, instituições e a igreja tem ajudado, mas não diminuíram os crimes. Muito recente durante uma capacitação no interior do estado, ouvir de um delgado da polícia federal que o tráfico humano não existe. Estes são um dos desafios diante as políticas públicas de enfrentamento nacional, que são enormes. O ideal seria se as pessoas conhecessem a lei, soubessem o que é tráfico de pessoas para reprimir esse crime perverso. Com tudo isso eu gostaria que as pessoas tivessem um pouco mais de Jesus no coração para enxergar, que o ser humano não é uma mercadoria.

Quais as razões levam a região norte do país, especificamente a região amazônica, enfrentar maior dificuldade e desarticulações nas políticas de enfrentamento ao tráfico humano?

Márcia Maria de Oliveira: Desde 2017 até o momento, houve uma ruptura muito forte dos planos de enfrentamento nacional ao tráfico na região. Nos últimos anos isso tem sido muito drástico principalmente aos núcleos que estavam sendo posicionados em regiões estratégicas a exemplo das fronteiras entre Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana Inglesa e Francesa. Com isso, as rotas se multiplicaram e as redes do crime se empoderam na perspectiva da impunidade. Outro ponto grave é a omissão do atual quadro de governo dos estados que tem sido omisso nas fiscalizações. Sem a denúncia da polícia federal ao ministério público não há seguimento das investigações. Outro fator que contribui para o crime de tráfico de pessoas na região norte é a presença do garimpo ilegal que tem se multiplicado. Com essas rotas do tráfico de ouro aumentou o número de meninas e mulheres vítimas da exploração sexual. O cenário atual que temos na região, a política está a serviço do fortalecimento da rota do tráfico. Este é um dilema que temos enfrentado em todos estes estados. Os núcleos e grupos de trabalho não avançam porque o próprio estado nega a existência do tráfico de pessoas.

As questões ambientais estão atreladas ao tráfico de pessoas na região amazônica de que forma?

Márcia Maria de Oliveira: A ausência da fiscalização é grave e nos últimos relatórios sobre trabalho escravo não aparece o estado de Roraima e nenhum estado da região amazônica. Isso acontece porque os governos além de não permitir, dificulta quando o ministério do trabalho tenta fazer alguma fiscalização. Ao publicar um artigo sobre o tema em 2020, sofri críticas e até ameaças por parte do governo atual. O estado nega a existência de milhares de pessoas trabalhando em regime de escravidão e que morrem de exaustão. Outro agravante é a reabertura das grandes madeireiras que aliciam trabalhadores e sem registro no ministério do trabalho. Portanto, o desmatamento ilegal, o garimpo ilegal e os fatores que violam o meio ambiente nestes últimos anos estão muito próximos do tráfico de pessoas na região amazônica. As modalidades do tráfico correm soltas na região. A não fiscalização por parte dos órgãos responsáveis que foram sucateados. Não temos expectativas de mudanças. Como reverter esse quadro? Continuaremos fortalecendo a sociedade civil, multiplicando os espaços de debate de prevenção e enfrentamento e principalmente atuamos fortemente na prevenção. As pesquisas continuaram, as denúncias continuaram de qualquer forma.

Quais os avanços no enfrentamento ao trabalho análogo a escravidão desde o Protocolo de Palermo e como tem sido as progressões junto ao Ministério Público do Trabalho e a sociedade civil?

Procurador Italvar Medina: Houve avanços, foi criado a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), a “lista suja” que é o cadastro de empregadores autuados por trabalhos análogos a escravo e tem aumentado o foco das instituições no combate ao trabalho escravo. Antes o foco era voltado para as atividades rurais, depois foi reforçado as atenções para as fiscalizações em áreas urbanas e bem recente em razão das denúncias tem ganhado destaque as situações de trabalho escravo doméstico e um fator que tem gerado desafios, são as atenções às vítimas após resgate. Neste sentido a preocupação após os resgates é para que estes trabalhadores e trabalhadoras não fiquem em situação ainda mais vulnerável e buscamos seus direitos e meios para que sejam assistidos. Um passo importante para fomentar o tema é a criação das comissões estaduais de erradicação ao trabalho escravo que tem colaborado no enfrentamento e nas ações pós resgate. Infelizmente não houve só avanços, tivemos retrocessos. Atualmente temos aproximadamente 44% dos cargos vagos. Desde 2014 o governo federal não realiza concurso público. Ainda que estejamos mantendo as ações repressivas há uma queda na inspeção de rotina, sobretudo as inspeções rurais, o que abre espaço para exploração do trabalho contemporâneo. Os avanços dos garimpos ilegais e do desmatamento, tem contribuído para a superexploração do trabalho escravo com a redução da fiscalização e dos órgãos ambientais. Essas atividades clandestinas estão intrinsicamente relacionadas com a exploração do trabalho irregular com situações análogo a escravidão. A região do país com maior déficit de fiscalização é a região norte. São estados com áreas territoriais muito grandes, seus centros urbanos também possuem áreas rurais extensas e uma presença do estado muito pequena. Esse isolamento geográfico na região favorece a exploração do trabalho escravo e possui uma queda abrupta de auditores fiscais. Existe fiscalização, mas são muito poucas e são realizadas no modo local e nacional. Mas é insuficiente para as demandas que existem no norte do país e por isso possuem denúncias que demoram meses ou anos para serem fiscalizadas pela falta de auditores, é uma defasagem muito grande.

Houve precarização das políticas de enfrentamento e políticas sociais, como a sociedade civil pode rearticular ações de combate à exploração do trabalho escravo contemporâneo neste atual cenário?

Procurador Italvar Medina: O aumento da conscientização é importante, o exercício do voto consciente, observar quais parlamentares que defendem a garantia dos direitos humanos e aqueles que têm o discurso contrário. É importante frisar que o combate ao trabalho escravo no Brasil só foi reconhecido e intensificado somente pela iniciativa da sociedade civil, foram pressões da sociedade civil organizada a exemplo da Comissão da Pastoral da Terra na década de 1970 que deram início ao combate do trabalho escravo no país. A sociedade civil teve bastante participação ativa na Conatrae ao exigir as ações de políticas públicas do governo. Em 2019 a Conatrae chegou a ser extinta pelo governo atual, mas foi recriada com sua composição reduzida e somente quatro integrantes da sociedade civil. Portanto, o trabalho de consciência junto a sociedade civil é importante. É necessário avançar nas ações repressivas, mesmo nesta atual conjuntura, espero que tenha uma retomada das ações preventivas especialmente nas áreas de desmatamento e garimpo.

O trabalho da Comissão para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB

Encontro de formação para multiplicadores no Pará, de 27 a 29 de maio deste ano. | Foto: arquivo Comissão.

Desde a criação da Comissão Especial pastoral para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2016, a igreja tem avançado nas articulações de combate e prevenção em todo do país. O bispo da prelazia de Marajó (PA) e presidente da comissão, dom Evaristo Spengler, diz que a Igreja no Brasil vem se organizando  para enfrentar as amarras da escravidão em território nacional, com deslocamentos pelas regiões do Brasil.

Ele aponta que sem tem se multiplicado iniciativas de sensibilização da sociedade sobre o tráfico humano. Muito além de exercer o papel da igreja, a Comissão luta em defesa da vida de forma permanente. Mais que lembrar a data de 30 de julho, a Comissão reúne questões fundamentais sobre a prevenção, proteção e denúncias em torno da temática com as capacitações realizadas durante todo o ano no país

“Para nós, a Igreja através da Comissão o compromisso de enfrentamento ao tráfico de pessoas é um imperativo de fé e uma causa pastoral que requer envolvimento de todos e todas da sociedade”, reforça Ir. Eurides Oliveira.

A Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano além de exercer como pastoral com gestos e ações de solidariedade para com as vítimas, realiza formação para fazer incidência política e chamar atenção da sociedade para o crime do Tráfico de Pessoas. Formando sujeitos sociais é possível entender a dinâmica do tráfico e chamar atenção do estado. Diante a atual conjuntura política social no país, a comissão publicou um manifesto em março deste ano que convoca os órgãos competentes e a sociedade civil a se comprometer com as articulações das políticas públicas de combate ao tráfico de pessoas no Brasil. É importante reforçar que a denúncia é fundamental para punir este tipo de crime e os canais preservam o anonimato e podem ser feitas através do Disque 100 e do Ligue 180. Para situações do tráfico para trabalho escravo existe também o canal do sistema Ipê https://ipe.sit.trabalho.gov.br. O sistema Ipê coleta denúncias em todo território brasileiro.

Por Cláudia Pereira

cnbb.org.br

www.miguelimigrante.blogspot.com

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