No
atual contexto histórico, três enfoques distintos nos ajudam a entender o
surgimento do que poderíamos chamar de “bolhas identitárias” (entre outras
possíveis). De início, a economia globalizada – tanto extensiva quanto intensivamente
– incorpora vorazmente novos recantos do planeta. Depois, para além do aspecto
econômico, de um ponto de vista sociopolítico, movemo-nos hoje em meio a um
estado de crise/caos/barbárie/violência,
provocado especialmente por governos de extrema-direita, na linha de um
renovado populismo nacionalista. Por fim, a combinação dos fatores precedentes
associada à pandemia acabou por escancarar e agravar o individualismo
exacerbado, marca registrada da modernidade tardia ou pós-modernidade.
Em
razão disso, semelhantes “bolhas identitárias” costumam navegar na contramão do
processo de globalização. São “bolhas”, na exata medida em que se encerram
hermeticamente sobre si próprias, isolando-se ao mesmo tempo de tudo e de
todos; são “identitárias”, enquanto utilizam os valores e expressões culturais (ou
religiosos) para se proteger das eventuais hostilidades que poderão chegar do
lado de fora, buscando contemporaneamente maior coesão interna frente às
possíveis hostilidades. Nessa perspectiva, não seria exagero afirmar que a
sociedade hodierna tende a converter-se num gigantesco arquipélago de ilhas
justapostas, coexistentes, cerradas, e por isso mesmo praticamente
incomunicáveis. De forma paradoxal, tanto mais incomunicáveis quanto mais
desenvolvidos e sofisticados se fazem os meios de comunicação social; tanto
mais distantes umas das outras, quanto mais próximas entre si no tempo e no
espaço.
Aquém
das relações socioeconômicas ou político-culturais mundializadas, as bolhas se
formam a partir dos laços mais elementares, primários; quase sempre numa
resistência tenaz e frontal à tendência de estandardização planetária.
Permanecem umbilicalmente vinculadas às raízes locais, territoriais, às vezes
tribais – contra o movimento de uniformização universal. Nessa redução a uma
espécie de tabula rasa, ganham
particular relevância as ligações familiares, de parentesco ou de compadrio,
como também os costumes, a culinária e as singularidades de cada povo, nação,
etnia ou cultura. É como regressar ao cara-a-cara do universo rural, no momento
em que a sociedade se urbaniza aceleradamente.
Um
clima de recíproca agressividade de ordem externa, acrescida de polarizações
extremadas entre um “nós” conhecido e confiável, de um lado, e um “eles”
desconhecido e suspeito, de outro, pavimenta um terreno próprio para a formação
de guetos, contrapostos às comunidades. Terreno minado e ao mesmo fértil para o
nascimento e desenvolvimento de erva daninha. Ou melhor, terreno fértil porque
minado com as bombas ocultas da intolerância, da discriminação e da xenofobia.
Muros em lugar de pontes se erguem e se multiplicam, afastando cada vez mais as
bolhas umas das outras. E essas, ao mesmo tempo que, dentro do próprio
ambiente, respiram um ar político, ideológico e religioso comum, destilam e
respiram igualmente o oxigênio tóxico nos eventuais contatos com o mundo
exterior.
Desse
estado de coisas, decorre o desafio de superar o enorme contraste entre os de
dentro e os de fora. O desafio envolve as relações interiores de cada ilha,
simultânea à transformação do arquipélago isolado num cosmos de relações sadias
e saudáveis. Nem o arquipélago de bolhas separadas, nem a uniformidade
redutora. Dessa passagem depende a justiça e a solidariedade; e a estas, está
subordinada a paz, se a queremos sólida e duradoura. Descendo a um nível mais
concreto, trata-se de passar do gueto à comunidade. Esta mantém as portas
abertas à pluralidade, ao passo que aquele tende a fechar-se sob a casca qual
caramujo, voltando-se sobre o próprio umbigo. Os extremos se tocam: gueto e
estandardização geram tédio. A comunidade desvela o horizonte do mútuo intercâmbio.
Neste, as diferenças e identidades, longe de nos isolar e nos tornar mais
pobres, constituem, ao contrário, tesouros “ocultos no campo” e que se prestam
ao encontro, ao confronto, ao diálogo e ao enriquecimento recíproco.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM
www.miguelimigrante.blogspot.com
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