Sim, o mundo dá voltas bruscas
Migrantes suíços em situação de pobreza compõem um conceito complexo que, provavelmente, não faz parte do imaginário popular do século XXI – nem da realidade do século XXI.
De fato, os suíços do nosso tempo desfrutam de um dos padrões de qualidade de vida mais elevados de toda a história da humanidade, dispondo de alta renda, vivendo em cidades que invariavelmente são listadas entre as melhores do planeta e queixando-se do governo por esporte, já que, mesmo não existindo um regime perfeito nem sequer na Suíça, eles contam com grande eficiência dos serviços públicos, baixos níveis de corrupção e excelente retorno dos seus impostos em forma de saúde, educação, segurança e infraestrutura.
Os altos e baixos da humanidade
Entretanto, vale recordar que a Argentina já foi, há pouco mais de 100 anos, um dos 10 países mais ricos do mundo em renda per capita, a ponto de que os franceses, quando queriam dizer que alguém era “podre de rico”, diziam que era “rico feito um argentino”.
Vale recordar também que a Venezuela, hoje detentora do tétrico posto de segundo maior produtor mundial de refugiados, já ocupou posição melhor ainda que a dos “hermanos” argentinos: chegou a ser o quarto país mais rico da Via Láctea, enquanto grassavam indicadores de miséria pela deprimente vizinhança latino-americana.
Vale recordar, ainda, que a hiperinflação na Alemanha, há exatos 100 anos, entre janeiro de 1922 e dezembro de 1923, atingiu a estapafúrdia taxa acumulada de 1 bilhão por cento. Em outubro de 1923, por exemplo, o aumento de preços era de 29.500% ao mês, ou 20,9% ao dia, corando de vergonha até a Venezuela de Nicolás Maduro.
Podemos também citar o que era Dubai há 20 anos, o que era Singapura há 50 anos, o que era a Coreia do Sul há 70 anos, o que era a China há 100 anos.
Então por que a Suíça de 100 anos atrás não poderia ser muito diferente do que é na atualidade?
Pois ela era.
Uma Suíça pobre
E, recentemente, por ocasião da celebração dos 200 anos de existência da Sociedade Suíça de Bordeaux, na França, o seu presidente Jean-Michel Begey recordou, em entrevista ao portal SwissInfo.ch, que o objetivo inicial dessa entidade era justamente o de “ajudar migrantes suíços em situação de pobreza”. E ele mostra documentos históricos para comprovar que as suas palavras não são um disparate.
Em 1822, cerca de 50 migrantes suíços criaram em Bordeaux a Sociedade Suíça de Caridade, ou Societé Suisse de Bienfaisance.
Ela tinha o propósito de ajudar os suíços que fugiam da pobreza em sua terra natal, chegavam àquele porto francês e perseguiam o objetivo desesperado de embarcar em algum navio para tentar a vida em promissoras terras estrangeiras – de preferência, na América do Norte. Alguns não tinham dinheiro nem para começar a viagem. A Sociedade Suíça de Caridade lhes doava então de roupas e cobertores a pão e dinheiro, além de prestar apoio aos que não achavam melhor remédio que retornar à Suíça.
Segundo Jean-Michel Begey, havia no país alpino, pasmem, “uma grande pobreza, uma situação que durou até a década de 1920”. O governo suíço, prossegue ele, chegou a escrever a todas as associações de migrantes suíços no mundo para lhes solicitar “que ajudassem os seus compatriotas recém-chegados. Após a I Guerra Mundial, havia uma grande falta de mão-de-obra na França, especialmente na região de Bordeaux. Portanto, seria uma boa oportunidade para os migrantes tentarem a sorte por lá”.
E a Sociedade Suíça de Caridade os ajudava, dado que, muitas vezes, essas pessoas “eram mal pagas, mal alojadas e subnutridas”. Os registros da organização exemplificam que, entres os seus beneficiados, havia 20 migrantes suíços que tinham ido trabalhar numa fábrica de óleo em Bordeaux “sob difíceis condições”, substituindo operários franceses “mobilizados na guerra”.
“Deixaram sua marca”
Jean-Michel Begey relata ainda que muitos migrantes suíços em Bordeaux “deixaram a sua marca na cidade”, entre os quais produtores de vinho, confeiteiros e famílias até hoje “bastante ativas na gastronomia local”.
Ou seja, os migrantes suíços não apenas se organizaram para ajudar-se uns aos outros num momento muito difícil para o seu povo, como ainda contribuíram positivamente com a cidade estrangeira que os acolheu e na qual prosperaram.
Em 1921, conta Jean-Michel Begey, uma segunda associação de migrantes suíços foi formada em Bordeaux para ajudar os compatriotas a se divertirem: o Clube Suíço de Bordeaux, cuja sede veio a se tornar a atual Casa Suíça, ou Maison Suisse. Seus membros se reuniam para festas que juntavam centenas de pessoas. No início dos anos 2000, as duas organizações se fundiram na Sociedade Suíça de Bordeaux, que, até hoje, além das atividades de recreação, continua ajudando pessoas necessitadas de outras nacionalidades mediante projetos de apoio e fomento.
Lições de ontem para hoje – e amanhã
Nas atuais conjunturas internacionais de crise, sobretudo por conta do trauma acarretado pela pandemia de covid-19 e pela corrente guerra do regime de Putin contra o território e o povo da Ucrânia, com a consequente imprevisibilidade dos cenários geopolíticos, ideológicos, sociais e econômicos do mundo inteiro nos próximos anos, é relevante resgatar histórias que muita gente nem sabia que eram tão recentes sobre os altos e baixos da prosperidade humana em um mundo de tantas idas e vindas como é o nosso.
E, dessas histórias, é sempre desejável tirar lições. Algumas falam de queda, outras de superação. Algumas retratam pessoas que renunciaram à autorresponsabilidade para delegar o seu destino ao Estado, vendo-o desabar sobre suas cabeças com todo o seu peso morto e apodrecido. Outras mostram pessoas que se uniram para exercer em primeira pessoa o protagonismo na busca do próprio progresso, com frutos suficientes para compartilhar até hoje entre si e com outras pessoas mais necessitadas do que elas.
A Doutrina Social da Igreja Católica propõe o conceito de “subsidiariedade”, que deveria ser muito mais destacado em contextos críticos como o atual.
.aleteia.org/
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