sábado, 11 de junho de 2022

Direito climático: desastres naturais e migrações ambientais

 Estudos científicos comprovam a correlação entre as mudanças climáticas e a intensificação dos desastres naturais, evidenciando que fatores antrópicos vêm potencializando a ocorrência de eventos climáticos extremos, como inundações, tempestades, ciclones tropicais, elevação do nível dos oceanos, severas ondas de calor, secas prolongadas e incêndios florestais frequentes. Outrossim, a variabilidade do clima vem provocando uma nefasta crise humanitária, desencadeando o aumento vertiginoso dos chamados refugiados ecológicos ou migrantes ambientais, numa verdadeira diáspora resultante do deslocamento forçado de milhares de pessoas afetadas por desastres naturais.

O relatório "Climate Change 2021: Sixth Assessment Report" (WG1-AR6)  e o mais recente "Climate Change 2022: Impacts, Adaptation, and Vulnerability" , ambos do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), apontam que as atividades humanas, potencializadas pela queima de carvão, de petróleo e de outros combustíveis fósseis, estão influenciando o aquecimento da atmosfera, dos oceanos e da superfície terrestre, provocando graves externalidades negativas. Outrossim, outro importante estudo científico, "Natural Disasters Report 1900-2011", produzido pelo Centre for Research on the Epidemiology of Disasters da Universidade Católica de Louvain , constatou que os desastres naturais tiveram uma escalada a partir de 1950, período de maior ênfase da 4ª Revolução Industrial, se intensificando bruscamente a partir da década de 2000, quando superaram até mesmo os desastres tecnológicos. Essa potencialização dos eventos climáticos extremos nas últimas décadas também é comprovada pelo Global Natural Disaster Assessment Report 2019que avaliou de forma sistematizada os desastres globais dos últimos 30 anos a partir do Banco de Dados Internacional de Desastres (EM-DAT), reconhecendo os nefastos efeitos sociais, econômicos, políticos e ambientais decorrentes dos eventos climáticos extremos . Segundo consta no documento, apenas em 2019, os desastres climáticos afetaram 90,6 milhões de pessoas no mundo, a grande maioria por tempestades (34,5%), inundações (32,7%) e secas (31,1%), causando perdas econômicas de US$ 121,856 bilhões. O mesmo estudo identificou as características dos maiores desastres naturais, entre 1989-2019, apontando que no período houve um total acumulado de 9.921 desastres naturais no planeta, uma média de 320 por ano, evidenciando uma correlação entre tais eventos e as alterações climáticas.

Referido cenário indica que a instabilidade do sistema climático vem se acentuando nas últimas décadas, intensificando catástrofes e alterando a dinâmica do planeta. Fazendo referência ao Relatório Stern , Sachs, em boa hora, alerta que uma elevação de 4ºC na temperatura do clima até 2100 seria capaz de provocar grandes desequilíbrios ambientais, tais como a redução da umidade dos solos, a precipitação de chuvas em regiões semiáridas, perdas incalculáveis na produção agrícola, severas ondas de calor, secas prolongadas, inundações, intensificação de ciclones tropicais, derretimento dos glaciares e a elevação do nível dos oceanos . Quanto ao último fenômeno, o Special Report Global Warming of 1.5ºC do IPCC  aponta, por sua vez , que o aumento do nível dos mares pode expor a graves riscos milhares de pessoas que vivem em zonas oceânicas, penínsulas e ilhas, provocando a destruição de propriedades costeiras e a remoção forçada de comunidades.

Igual cenário é retratado pelo instituto Climate Central, vinculado ao Princeton Environmental Institute, ao apontar que a elevação da temperatura média global entre 2ºC e 4ºC pode afetar 600 milhões de habitantes que residem em regiões litorâneas, provocando deslocamentos em massa e a necessidade de adaptação das comunidades, atingindo grandes metrópoles como Xangai, Sydney, Londres, Nova York, Miami, Calcutá, Rio de Janeiro, Hong Kong, Jacarta e Durban . Outro recente estudo de pesquisadores da Universidade de Yale, publicado na revista Nature Geoscience , afirma que as nações estão subestimando os riscos das mudanças climáticas, pois à medida que o planeta se aquece pelas emissões antropogênicas de gases, o século 21 poderá ser palco de uma expansão de furacões e tufões. Fato, aliás, que já está ocorrendo.

A instabilidade do clima, portanto, vem produzindo uma nova categoria de desastre humanitário, que envolve especificamente os chamados migrantes ambientais ou refugiados ecológicos. A terminologia ecological refugees foi inicialmente introduzida, para fins de esclarecimento, nos estudos de Lester Brown, na década de 1970, que indicavam que as mudanças do clima, induzidas por atividades humanas, poderiam provocar impactos futuros e alterar o curso dos eventos naturais .

Contudo, o direito internacional, até o momento, não reconhece expressamente a terminologia refugiados ambientais, pois esse fenômeno migratório não está previsto na Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados de Genebra de 1951 , o qual considera como refugiados apenas as pessoas que sofrem perseguição e são forçadas a abandonar sua residência habitual por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Destarte, ainda existe um vácuo no direito internacional para a proteção dos migrantes ambientais, fator que vem dificultando o reconhecimento de refúgio em decorrência de desastres naturais, sob o argumento de que esta causa não se enquadra nas hipóteses previstas na já aludida convenção.

Em virtude do dissenso acerca do enquadramento dessa categoria como de refugiado, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), utiliza a terminologia migrante ambiental . Contudo, o direito internacional avança no sentido de reconhecimento do status de refugiados às pessoas afetadas por fatores ambientais, notadamente por envolver uma questão humanitária . Nesse norte, o Centre International de Droit Comparé de L’environnement, da Universidade de Limoges, discute a construção do Projeto de Convenção relativa ao Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais . O projeto, denominado Convenção de Limoges, reconhece que o aumento exponencial dessas migrações constitui uma ameaça para a estabilidade das nações, almejando construir um mecanismo para a proteção dos deslocados ambientais diante da lacuna do direito internacional.

Referido tema representa um problema humanitário que tende até mesmo substituir a principal causa de refúgio dos dias atuais, que é a guerra, pois o desequilíbrio climático pode provocar grandes deslocamentos humanos em nível global , tendo a potencialidade de alterar o fluxo populacional, além de provocar o aumento do ciclo de instabilidade e de vulnerabilidade nos países menos desenvolvidos. Tais projeções são confirmadas pelo Global Report on Internal Displacement 2020 produzido pelo Internal Displacement Monitoring Centre (IDMC) , revelando que as chuvas de monções, as inundações e as tempestades tropicais, foram a maior causa de fluxos migratórios em 2019. Nesse período, os desastres naturais, impulsionados por fatores antrópicos, causaram o deslocamento de 24,9 milhões de pessoas em 140 países, superando as migrações provocadas por guerras, conflitos civis e violência. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), se não houver a reversão desse quadro, os riscos de tragédias ambientais relacionadas ao clima podem afetar 200 milhões de pessoas até o ano de 2050 , gerando um elevado número de refugiados invisíveis. O tema passou a ser debatido pela ONU somente a partir de 2010 durante a Conferência sobre Mudanças Climáticas de Cancún (COP 16) , sendo reconhecido que as migrações humanas oriundas das mudanças do clima exigem a adoção de medidas coordenadas para enfrentamento do problema. O assunto voltou a pauta de discussões durante a Conferência Nansen (Noruega, 2011), sendo abordadas possíveis medidas para reduzir os impactos dos deslocamentos oriundos de alterações climáticas, resultando na elaboração dos 10 Princípios Orientadores dos Deslocados Internos (Princípios Nansen) . Com o avanço das migrações ambientais, em 2016 a ONU aprovou a Declaração de Nova Iorque sobre Refugiados e Migrantes , assumindo o compromisso de prestar assistência aos migrantes de países afetados por conflitos ou desastres naturais.

Em 2018, o Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular das Nações Unidas  deu novo enfoque ao tema dos migrantes ambientais, reconhecendo a necessidade de mapear, compreender, prever e lidar com os movimentos migratórios oriundos de desastres naturais e efeitos adversos das mudanças do clima. O pacto reconheceu que as alterações climáticas estão impulsionando as inundações, ciclones, incêndios florestais e secas prolongadas, forçando milhares de pessoas a abandonar seus lares e territórios, alertando que a dinâmica e o ritmo de tais fenômenos estão assumindo uma escala sem precedentes na história da Terra.

O preocupante cenário das migrações ambientais foi palco de novos debates durante a COP 26 (2021), cujo documento final (Glasgow Climate Pact)  reconheceu os impactos sociais, econômicos e ambientais oriundos da crise climática e a necessidade de uma ação global multinível para adaptação, mitigação e resposta aos seus efeitos adversos. Contudo, embora o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados tenha feito um apelo aos dirigentes da COP 26, alertando que a crise climática está acelerando os desastres naturais e as migrações humanas, ampliando o quadro de pobreza, de desigualdade e de vulnerabilidade em escala global, forçando milhares de pessoas a abandonar seus locais de origem , o tema foi tratado de forma bastante superficial na Escócia.

Em sede de conclusão, apesar de existirem alguns avanços sobre o tema, são evidentes as lacunas normativas no direito internacional para a proteção dos deslocados ambientais, sendo importante a construção de um mecanismo efetivo de proteção a essa categoria de migrantes.

conjur.com.br

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