Com o tema ‘Migração e diálogo’ e o lema ‘quem bate à nossa porta?’ está em curso a 36ª Semana do Migrante, celebrada de 13 a 20 de junho de 2021 com diversas atividades, a maioria online que nos permite refletir sobre a situação migratória no Brasil e no mundo.
Os números de deslocados internos e internacionais não para de crescer. Todos os dias milhares de mulheres e homens em idade laboral, crianças, jovens e idosos são expulsos de seus lares e territórios por motivos diversos que têm em comum a ganância do mercado e o egoísmo de governantes que permitem que as desigualdades sociais pautem as sociedades num ritmo crescente de negação da cidadania e dos direitos humanos. Outros milhares se vêm obrigados a partir em busca de trabalho, saúde, educação e melhores condições de vida longe de suas famílias e seus grupos de convivência.
A migração forçada provoca chagas profundas em todas as sociedades. Por outro lado, é sinal de resistência, de esperança e de luta pela vida. Com os migrantes, circulam histórias de vida, narrativas culturais, saberes e conhecimentos ancestrais, ciências e tecnologias. Mesmo em meio a tantas dores e sofrimentos, as migrações representam um fato positivo para quem parte e para quem acolhe. Quem parte vai ao encontro do novo e do diferente e quem acolhe, o faz na certeza de abrir seus horizontes a quem chega e quer ficar para reconstruir sua vida e de seus familiares.
Em nível mundial, as migrações tornam-se cada vez mais complexas e desafiadoras. Os países mais ricos estabelecem medidas restritivas que dificultam ou impedem as migrações regulares. As deportações tornaram-se frequentes, inclusive em blocos por nacionalidades como vem ocorrendo com brasileiros nos Estados Unidos durante a gestão do ex-presidente Donald Trump, que tinha uma política voltada à anti-imigração que foi seguida e adotada pelo atual presidente Joe Biden. De modo geral as deportações ocorrem em meio a meditas repressivas e prisões arbitrárias que ferem os direitos humanos separando até mesmo as crianças de colo de seus pais (https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/05/21/brasileiros-deportados-pelo-governo-dos-eua-chegam-ao-brasil-nesta-sexta-feira).
É neste cenário que a 36ª Semana do Migrante nos desafia a ouvir, olhar e reconhecer ‘quem bate à nossa porta?’ Ao mesmo tempo que nos convida ao ‘diálogo’ como parte de uma reflexão permanente na qual se reconhece que “a migração, por si só, é já uma abertura ao diálogo. Querendo ou não, o ato de migrar provoca um potencial confronto dialógico. Pôr-se a caminho equivale a pavimentar a via para um intercâmbio entre diferentes expressões culturais e valores. Deslocar-se pressupõe ou estimula troca de valores”, afirma o texto base da 36ª Semana do Migrante (https://www.migrante.org.br). No atual contexto mundial das migrações, a 36ª Semana do Migrante representa uma oportunidade ímpar para manter este debate vivo: “o que podemos fazer no sentido de pressionar por leis migratórias mais justas e inclusivas e que levem em conta os direitos humanos dos migrantes?” É a provocação do Serviço pastoral dos Migrantes que promove a Semana do Migrante juntamente com diversas outras instituições que historicamente se dedicam ao atendimento e à atenção aos migrantes no Brasil.
A provocação do Texto Base com o chamado “abrir-se a quem bate à nossa porta” nos remete ao último escrito de Zygmunt Bauman, um dos mais importantes expoentes da sociologia das migrações. Seu último texto intitulado “estranhos à nossa porta” Editado no Brasil pela Zahar em 2017, traz em sua capa a imagem provocativa de um barco inflável lotado de migrantes resgatados em alguma margem de algum oceano que pode ser em qualquer parte do mundo. Nesta imagem se destaca a figura de uma criança com colete salva-vidas, correndo sozinha pela margem do oceano, desafiando a força das ondas que insistiam em a devolver para alto-mar.
Neste livro e em textos anteriores como ‘Vidas Desperdiçadas’, Bauman, alerta que aos olhos do capitalismo egoísta e déspota “nosso planeta está lotado!” E não há mais lugar para pobres, desempregados, doentes, idosos, indígenas, negros… que formam a maioria dos migrantes “catapultados para lugar algum”, afirma Bauman. Eles e elas representam a parte mais perversa das desigualdades sociais que vem produzindo exclusões e expulsões em grande escala sem nenhuma preocupação nem previsão de resolver os problemas estruturais que produzem as migrações. Sim. As migrações são planejadas e fazem parte da estrutura perversa deste sistema fundamentado nas desigualdades, no acúmulo cada vez mais concentrado das riquezas que produz miséria e exclusão.
As agências internacionais ligadas às Nações Unidas alertam, com suas cifras crescentes, que mais da metade dos migrantes e refugiados do planeta é constituída por mulheres e crianças de até 16 anos. São esses ‘estranhos’ que batem a nossa porta: mulheres e crianças na sua grande maioria. Sem trabalho, sem comida, sem teto e muitas vezes apenas com a roupa do corpo. São esses migrantes que batem à nossa porta na esperança de que ela se abra. Na esperança que haja diálogo. Entretanto, no diálogo, “não basta o reconhecimento da pluralidade; não basta a coexistência pacífica com o diferente; não basta o diálogo. O conceito de compromisso tem a ver com um programa de atividades centradas nas causas dos migrantes e refugiados. Aqui estão em jogo as ações sociopastorais e os atores”, assegura o Texto Base 36ª Semana do Migrante.
A resposta a esta provocação é ampla e podemos ensaiar diversas possibilidades no sentido de “acolher, proteger, promover e integrar os migrantes e os refugiados” como nos desafiava o Papa Francisco por ocasião do seu discurso pelo dia mundial dos migrantes e refugiados (2019). São verbos potentes e carregados de sentido que conduzem à elaboração de políticas públicas capazes de ir além da ação emergencial.
A emergência é importante e fundamental quando escutamos quem bate à nossa porta e nos dispomos acolhimento. Entretanto, os migrantes esperam muito mais do que isso. Eles merecem recomeçar suas vidas protegidos de todas as formas de opressão que os forçaram à migração. “Acolher, proteger, promover e integrar os migrantes e os refugiados” continua sendo um grande desafio para todas as sociedades.
É motivo de grande alegria que em um universo de “28 países, o Brasil figure como o terceiro mais favorável à recepção de refugiados” de acordo com os resultados da pesquisa do instituto Ipsos, ouviu mais de 19.500 pessoas com idade entre 16 e 74 anos em diversos países (https://www.noticiasaominuto.com.br/mundo/1814188/de-28-paises-brasil-e-o-3-mais-favoravel-a-recepcao-de-refugiados-diz-pesquisa). Porém, precisamos avançar no sentido de ampliar nossa visão com relação ao diferente, “os estranhos à nossa porta”, como dizia Bauman, são nossos irmãos e irmãs de outras línguas, pensamentos, experiências, histórias de vida. A maioria destes “estranhos à nossa porta” são mulheres e crianças que precisam de amparo, atenção e acolhimento.
Na sequência, precisamos nos organizar enquanto sociedade para completar o ciclo para além do acolhimento, que é “proteger, promover e integrar os migrantes e os refugiados”. Esta dinâmica é fundamental para criar políticas públicas permanentes e inserir o Brasil de fato no conjunto de países que acolhe protege, promove e integra os migrantes e os refugiados.
*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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