quarta-feira, 9 de junho de 2021

A face feminina e invisível da migração

 

Neste breve ensaio, nos propomos refletir sobre os recentes processos migratórios e sua faceta feminina, quase sempre invisibilizada. As duas últimas décadas do século XX, de acordo com David Held, foram marcadas por diversas transformações sociais e econômicas e daí emergiu uma expectativa de um mundo interconectado e sem barreiras em todos os aspectos da vida contemporânea. Essa previsão, porém, não se confirmou, e nos últimos vinte anos o que temos visto é uma separação cada vez maior entre os países do norte e do sul global, com o agravamento da disparidade econômica entre eles.

Uma das consequências dessa desigualdade entre países ricos e pobres se reflete no aumento dos deslocamentos internacionais, quantidade que chega a um patamar nunca antes registrado. Até 1970, estimava-se cerca de 70 milhões de migrantes ao redor do mundo; hoje esse número já chega a mais de 200 milhões, segundo dados da ONU. Essas pessoas são definidas como “imigrantes” e deixam seus países de origem em busca de melhores condições de subsistência para si e para suas famílias. Já aqueles que deixam seus países devido a perseguições de cunho racial, religioso ou político são denominados “refugiados”, de acordo a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951).  Independentemente das motivações que levam um grupo e outro a deixarem seus países de origem, o fato é que o processo migratório é um fenômeno complexo, muito intrincado e atravessado por múltiplas variáveis.

No Brasil, os anos 2000 foram marcados pela retomada das ondas migratórias, e os principais fluxos que se deslocam para cá são de indivíduos originários de países do sul global, especialmente provenientes do Haiti e da Venezuela. Esse padrão migratório contrasta com o período clássico das migrações nos séculos XIX e XX (1870 – 1946). O deslocamento sul-sul está presente não somente no Brasil, mas nas migrações contemporâneas globais, sendo mais comuns os fluxos intra-regiões ou entre países em desenvolvimento. 

Além da mudança nas tendências de rotas e destinos migratórios, também se identifica um novo perfil de migrante. Se há algumas décadas havia o predomínio do homem em idade laboral, hoje esse perfil é mais diverso e, principalmente, feminino. A esse processo chamamos de feminização das migrações, de acordo com Donna Gabaccia.

A alta demanda por mão de obra feminina, produzida pela expansão do capitalismo em conjunto com o aumento da autonomia de mulheres de classe média, contribuiu para o percentual de mulheres migrantes na atualidade atingir 49%, conforme dados da ONU em 2019. Esse fenômeno possui dimensão global, apesar de apresentar diferenças regionais. Na América Latina, alguns dos principais deslocamentos já são predominantemente femininos. Por exemplo, nos fluxos bolivianos para a Venezuela, a cada 100 imigrantes, 99,8 são mulheres, o mesmo ocorrendo entre colombianos, paraguaios e peruanos, segundo a CEPAL. Maciçamente as migrantes desempenham tarefas domésticas e de cuidado

No contexto brasileiro, a feminização das migrações também é uma realidade e até 2019 46% das pessoas que migraram são do sexo feminino, de acordo com estatísticas da ONU. Essas mulheres, além de se fazerem presentes nos processos migratórios, possuem cada vez mais um papel de protagonismo nessas jornadas. Muitas delas não mais migram com seus cônjuges ou para reunião familiar, mas se deslocam sozinhas ou como chefes de família. Mesmo com o aumento de sua autonomia nos processos migratórios, elas ainda se mantêm invisibilizadas tanto nos estudos acadêmicos quanto nas políticas públicas e nas legislações, formando uma categoria subalternizada, mesmo sendo quase metade da população imigrante. 

Sua identidade de mulher estrangeira em conjunto com outros marcadores sociais, como raça, classe, etnia e sexualidade, formam teias complexas de opressão que as colocam em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica e dificultam sua inclusão social no país de destino. Nesse contexto, é recorrente que mulheres imigrantes sejam vítimas de tráfico humano, dos narcotraficantes, de trabalho análogo à escravidão, da violência de gênero e sexual.

Frente a essas mudanças nos padrões migratórios, é necessário que se construam novos olhares e perspectivas a respeito dos deslocamentos internacionais, com atenção especial à intersecção de gênero. Esse é um desafio que se faz urgente neste momento, para assim assegurar o direito de mobilidade internacional com segurança ao alcance de todo e todas e de forma justa, e não apenas para a parcela hegemônica da sociedade.

(*) Maria Lúcia Moritz é professora do Departamento e do PPG em Ciência Política e coordenadora do projeto de extensão “Cruzando Fronteiras: gênero e migração na América Latina”. Larissa Serafim é mestranda em Ciência Política e participante voluntária do projeto de extensão “Cruzando Fronteiras: gênero e migração na América Latina”.

 CAMPO GRANDE NEWS

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