sábado, 5 de junho de 2021

O feminicídio, o racismo e as políticas da dor

 

Ana Fossen 

Há cerca de 15 dias, ao fazer meu repasse diário de notícias, deparei-me com um vídeo publicado pelo "El País" espanhol. A matéria mostrava o resgate de vários imigrantes marroquinos que saíram de seu país a nado ou em botes infláveis e atravessaram o Mar Mediterrâneo chegando em Ceuta, na Espanha. Os que vinham nadando percorreram uma distância de quase sete quilômetros e os botes infláveis, que teriam capacidade para sete pessoas, chegavam às praias com até trinta pessoas, dentre elas crianças e bebês.

Segundo minha rápida pesquisa, desde 2013 os dois países tentam fazer um acordo que seja razoável para controlar a entrada de cidadãos marroquinos na Espanha, que fogem da pobreza e das desigualdades em seu país. Outras questões que evolviam partidos políticos árabes e a interferência, no ano passado, do ex-presidente norte-americano Donald Trump, esquentaram e atravancaram ainda mais
as relações
na região.

Segundo os jornais europeus - e peço desculpas por não ter consultado os jornais marroquinos, pelo motivo óbvio de que eu não tenho nenhum conhecimento de árabe ou de amazigh - numa noite teriam sido disparadas dezenas de fake news pelo WhatsApp, relatando à população que havia um relaxamento da fiscalização na chegada de imigrantes às praias de Ceuta, e que essas falsidades teriam sido veiculadas por setores políticos marroquinos em vingança pelas últimas atitudes do governo de Pedro Sánchez.

A partir destes fatos, de uma noite para outra haviam espalhados, no litoral sul espanhol, oito mil imigrantes e umas quantas dezenas de corpos.

As discussões sobre a imigração da África ou da Síria para a Europa são antigas e complexas, assim como a dos latinos e chineses aos Estados Unidos. Ainda que não existam invasões armadas, frotas de caravelas no litoral, o mundo globalizado ainda se pensa em nacionalidades e territorialidades.

Sem embargo, uma das cenas que mais me chamou a atenção foi a de um imigrante que havia sido resgatado por integrantes da Cruz Vermelha, que depois de nadar quilômetros tremia, andava desorientado e que ao ser ajudado por uma jovem voluntária desta entidade a agarrava com tal desespero, demonstrando a que ponto uma situação política pode atingir uma população desinformada ou neste caso, manipulada. Garanto: a cena é muito angustiante e rodou o mundo, sendo noticiada inclusive aqui no Brasil.

Para minha surpresa, dois dias depois destas ocorrências, nas redes sociais, pessoas do mundo todo criticavam a postura dos imigrantes e faziam associações de cunho sexual ao comportamento do rapaz resgatado e da voluntária que o acolheu.

Sobre ele, os impropérios iam de miserável invasor a negro abusador, e, sobre ela, além dos adjetivos de baixo calão que foram proferidos apenas e somente pelo fato de que ela é uma mulher, outros comentários explicitavam um suposto comportamento sexualizado naquele momento de dor e horror. Faço questão de frisar que li comentários de todos os cantos do mundo, inclusive de brasileiros.

A que ponto chegamos?

O que se pretende, de fato, com políticas nas quais o resultado da morte da população parece ser calculado?

A resposta parece ser evidente na atualidade, as políticas internas e externas de muitos países visam desproteger a população, havendo uma métrica que impele sofrimentos nas situações mais básicas do cotidiano.

Poderosos em geral, que não são somente governantes, são responsáveis por um projeto de dor para a humanidade. E a pior das notícias é que parece que historicamente há nisto um ciclo.

Racismo e xenofobia são coisas do passado? Não são, nunca foram. Não evoluímos a ponto de pensar que o termo globalização envolveria irmandade, incluiria pensarmos um planeta possível para a maior parte dos humanos.

Feminismo é pauta desnecessária? Infelizmente não. Mulheres são sempre colocadas no ponto de mira da opressão cultural, o aumento dos números mundiais de feminicídios na pandemia são a prova mais evidente deste fato.

Por essas e por outras concluímos que vamos por mal caminho. Se sobrevivermos, ainda há muito o que mudar.

ANA CLÁUDIA FOSSEN
é psicóloga e psicanalista, graduada em Psicologia pela USP e pós-graduada em Psicologia e Filosofia pela Universidade Complutense de Madri-Espanha

www.jj.com.br/jundiai

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