Mais um estudo de grande relevância sobre a questão migratória na Amazônia acaba de ser defendido como tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos. De autoria de Iana dos Santos Vasconcelos, egressa da Universidade Federal de Roraima, a tese foi orientada pelo professor doutor Igor José de Renó Machado e contou com a arguição do professor doutor João Carlos Jarochinski Silva, referência nos Estudos Migratórios do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras – PPGSOF/UFRR
Fruto de quatro anos pesquisa, a tese indica que a “acentuação da migração venezuelana a partir de 2015 é fruto de um processo histórico consolidado por diferentes pontos de vista, múltiplos interesses, disputas e relações de poder”. Desta forma, as migrações e outras formas de deslocamentos, “não podem ser analisadas desassociadas das formas de dominação, poder e da produção de desigualdades inerentes à estruturação do capitalismo global”, afirma a pesquisadora.
Grande conhecedora do contexto migratório da Amazônia, Iana apontou na sua tese doutoral alguns mecanismos que provocam as migrações, de modo especial entre países transfronteiriços na América do Sul e conclui que se trata “da escassez de alimentos e da instabilidade político-econômica na Venezuela, decorrentes dos antagonismos entre o governo bolivariano e as potências mundiais em torno do controle do petróleo”, dentre outros fatores de expulsão.
Em seu texto denso e potente, a pesquisadora afirma que “o percurso terrestre descortina especificidades do deslocamento humano na Amazônia setentrional. Integradas no seu isolamento, Boa Vista e Manaus revelaram-se como extensão da faixa de fronteira Brasil e Venezuela. Não por acaso, a estrutura implementada pela Operação Acolhida em Pacaraima foi reproduzida, posteriormente, em ambas as cidades. A observação das iniciativas de acolhimento demonstra a existência de um continuum entre as cidades. As diferenças destacadas no decorrer da tese não implicam, necessariamente, em formas divergentes de acolhimento, mas em reconfigurações locais que reproduzem as mesmas contradições globais”.
Para a pesquisadora, “dicotomias como segurança/humanitarismo, problema/oportunidade se interseccionam e produzem paradoxos no acolhimento dos/as recém-chegados/as”. Nas duas extremidades da questão abordada, “os/as manauaras e boa-vistenses enxergam e nomeiam os cidadãos do país vizinho com um olhar bifurcado entre pares de oposição: são vítimas para uns e agressores para outros; vulneráveis para alguns e aproveitadores/as para os contrários”.
Dentre as contradições no contexto migratório, a pesquisadora destaca a condição de “desejáveis e indesejáveis”, categorias amplamente utilizadas para explicar as migrações em nível mundial. “Melhor receber doações como vulnerável do que despertar desconfiança como aproveitador/a. Mais desejável enquanto vítima de um governo ou de uma conspiração internacional do que potencial transgressor de costumes e legislações. Por certo que as condições de desejável ou indesejável são altamente intercambiáveis. Em larga medida, estão associadas a duas modalidades de agência do/a migrante: poner-se arrecho (fazer-se de bravo) ou poner-se pendejo (fazer-se de manso)”, quase que como uma estratégia de sobrevivência, afirma a doutora.
Sob o viés antropológico, a pesquisadora analisa o “acolhimento enquanto ato de hospitalidade que acontece enquanto uma relação assimétrica entre anfitrião e hóspede, entre quem dá e quem recebe. Aquele que recebe dificilmente conseguirá retribuir da mesma maneira. A dádiva ofertada carrega consigo os interesses de quem doa e define uma relação de poder com quem recebe”.
Vasconcelos conclui que “no âmbito do acolhimento institucional, seja ele privado ou governamental, a recusa do/a migrante em receber alimento ou mesmo a recusa de ficar instalado/a no abrigo pode ser encarada pelos/as brasileiros/as de forma depreciativa, contribuindo para manter o/a migrante indesejável. Na economia moral das dádivas, o abrigo é encarado como uma dádiva irrecusável. A dádiva-abrigo, sob a ótica da obrigação, deve ser recebida e retribuída com gratidão e sujeição ao controle social.
Na percepção de quem oferta, nada poderia ser pior que a condição de vida precária no país de origem”. Contudo, “no cotidiano do acolhimento institucional, o que prevalece é o pragmatismo do cumprimento de metas, a despeito da necessidade de quem é atendido/a. No campo da cooperação internacional, a disputa pelos recursos financeiros está diretamente ligada à capacidade de demonstrar resultados em conformidade com os interesses de quem financia”, afirma a pesquisadora.
O tema da captação de recursos internacionais voltados para o acolhimento aos migrantes também é abordado pela autora que conclui tratar-se de uma dinâmica que “obedece a lógicas de uma governança global das vulnerabilidades. Os embargos internacionais contra a economia venezuelana, parcialmente responsáveis pelo surgimento da emergência humanitária, não excluem a oferta de ajuda humanitária. De algozes a clementes, países como os EUA forjam imparcialidade e solidariedade universal que encobre a manutenção de poderes e interesses de pretensões hegemônicas”.
O tema da governança da questão migratória emerge com força na tese e a autora afirma que “essa governança das vulnerabilidades atravessa fronteiras e mobiliza uma rede de serviços especializados em causas humanitárias que disputam campos de atuação num mercado altamente competitivo, regido por padrões internacionais.
Nesse nicho de atividade, foi possível perceber uma disputa pelo protagonismo nas ações de acolhimento interseccionada com o fenômeno religioso. Contrastantes ideologias e práticas cristãs competem pela oferta de uma “mão amiga” ao próximo bem como pela captação de recursos financeiros e almas”. Nesta dinâmica, “instrumentos criados para proteger e assegurar os direitos humanos dos/as venezuelanos/as transformam-se constantemente em mecanismos de repressão contra os próprios migrantes” afirma.
A autora lida também com o tema da interiorizaçãoque implica numa logística de redistribuição dos migrantes enviados para outros estados da federação. Para “a interiorização revela como as práticas de controle da mobilidade humana podem ser embaralhadas por intencionalidades humanitárias.
Apesar de aparecer como um termo novo no vocabulário das iniciativas governamentais brasileiras destinadas à migração, a prática da interiorização é antiga. O deslocamento dos/as indesejáveis para outras cidades, em outras regiões do país, também foi acionado como resposta à migração haitiana, como bem recordam representantes de instituições de acolhimento em Manaus naquele período”.
A pesquisadora classifica como “antipolítica migratória” todo o aparato do Estado Nacional voltado para “políticas temporárias, amparadas na tutela, na restrição de agência do/a migrante, sem maiores preocupações com a permanência em longo prazo dessas pessoas no território nacional”. Desta forma, a permanência das ações emergenciais tem impedido a criação de políticas migratórias permanentes.
Para a pesquisadora “por mais que as entidades religiosas se esforcem para promover integração laboral e sociocultural de migrantes, por mais que os/as venezuelanos/as consigam empreender, estudar e sobreviver por conta própria, falta o comprometimento das autoridades locais, estaduais e federais em propiciar canais permanentes para garantir vida plena à população migrante diante de um país desconhecido com seus próprios dilemas sociais, políticos, econômicos e culturais”, conclui.
O texto na sua íntegra será brevemente publicado no banco de teses da UFSCar (https://www.bco.ufscar.br/fontes-de-informacao/teses-e-dissertacoes) e poderá ser acionado para ampliar os estudos migratórios na Amazônia. Felicitações e gratidão à nova doutora em Antropologia Social por sua excelente contribuição à produção da ciência na Amazônia.
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