De
acordo com a filósofa italiana Donatella Di Cesare, “a hospitalidade mostra sua
perturbadora conexão com a hostilidade” (Cfr. Estrangeiros residentes, uma filosofia da migração, tradução de
Cézar Tridapalli, Ed, Âyiné, Belo Horizonte, Veneza, 2020, pag. 32). Duas faces
da mesma moeda. Quando há expansão socioeconômica e necessidade de mão-de-obra,
os imigrantes costumam ser bem-vindos. A autora mostra como o monumento à
Liberdade, erigido em New York, por exemplo, foi chamado de “Mãe dos exilados”
pela poeta judia Emma Lazarus no soneto, escrito em 1883, gravado no pedestal
da estátua: “Guarda para ti, velho mundo, a tua pompa vã” – grita com lábios
mudos – “Dá-me as tuas massas cansadas, pobres e oprimidas, ansiosas por
respirar livres, dá o miserável refugo de tuas margens abarrotadas. Manda a mim
estes sem-teto, arremessados pela tempestade, e eu levantarei o meu farol junto
à porta dourada” (Idem, pag. 21). Prevalece
então hospitalidade!
Ao
contrário, numa eventual “crise humanitária”, quando as taxas de desemprego e
subemprego se elevam, então os migrantes são em geral rechaçados. Duplamente
rechaçados: na origem, pela privação ou pela violência; no destino, pela
crescente discriminação. Quando muito se lhes abre a porta dos fundos, para os
serviços mais sujos e pesados, perigosos e mal remunerados. Semelhante recusa
em acolher “estrangeiro” tem se agravado com a ascensão da extrema direita ao
poder em várias partes do planeta, revestida sempre de um nacionalismo
populista. Daí as frases bombásticas, tais como “América para os americanos”;
“Europa para os europeus”; ou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. No
caso brasileiro, o nacionalismo dá as mãos à instrumentalização do sagrado. Todo
fanatismo – político, ideológico ou religioso – produz montanhas de cadáveres. A
hospitalidade acolhedora cede o lugar à hostilidade.
Ambos
os termos oscilam nos diferentes modos de considerar mobilidade humana. Quando
o sol brilha, a imagem da liberdade abre o sorriso e os braços. Mas quando o
céu escurece e a tempestade se avizinha, a estátua vira as costas a quem bate à
porta, interessada apenas nos “cidadãos com raízes na terra”. Ainda de acordo
com a autora, o migrante na maioria das vezes entra em rota de colisão com o tipo
de estado-nação ocidental. Este último, de fato, ao mesmo tempo que se
fundamenta nos direitos universais de cada ser humano, incluindo o direito de
ir e vir, limita sua extensão aos nascidos no território. O sangue, o berço, o
solo e a herança social, política e histórica determinam o monopólio absoluto sobre
o espaço geográfico.
A
crítica de Donatella a esse sistema estadocêntrico torna-se contundente: “Desde
quando os Estados-nações repartiram o planeta, foi se produzindo, entre um
limite e outro um “refugo da terra”, que pode ser impunemente pisoteado e que,
apesar disso, não para de vir à tona e crescer. O refugo é o que sobra da terra
dividida, são os sem-pátria, os sem-cidade, os refugiados, presos entre as
fronteiras nacionais, que aparecem coo sujeitos incômodos, corpos estranhos,
seres indesejáveis. Para eles não está previsto nenhum lugar na ordem mundial.
Eis que emerge um novo gênero humano: os ‘supérfluos’” (Idem, pag. 62).
De
forma consciente ou inconsciente, os migrantes se batem contra a Constituição
desses países. Ampla e aberta no que se refere à declaração universal dos
direitos humanos, mas privadamente reservada na concessão da cidadania aos que
chegam de fora e de longe. Em tal perspectiva, “o migrante desmascara o Estado.
Da margem externa, interroga o seu fundamento, aponta o dedo contra a
discriminação, relembra o estado de sua constituição histórica, descrê de sua
pureza mítica. E por isso obriga-o a repensar-se. Nesse sentido, a migração
traz consigo uma carga subversiva” (Idem,
pag. 28). Tende a questionar os limites arbitrariamente desenhados, ao mesmo
tempo que supera o território pátrio desta ou daquela nação. Seu sonho é
ultrapassar as fronteiras – com o objetivo de encontrar alhures o que lhe nega
a terra natal. “Na cidade dos estrangeiros, a cidadania coincide com a
hospitalidade” (Idem, pag. 16).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente
do SPM – São Paulo, 15 de maio de 2021
www.miguelimigrante.blogspot.com
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