terça-feira, 23 de abril de 2019

VENCEDOR DO PULITZER, BRASILEIRO COMENTA COBERTURA DE IMIGRAÇÃO: “FOTOGRAFEI CRIANÇAS IMAGINANDO MINHA FILHA”

Um migrante hondurenho protege seu filho quando seus companheiros migrantes, parte de uma caravana com destino aos Estados Unidos, foi atacada em uma fronteira em Guatemala, no México. Foto: Ueslei Marcelino / Reuters

O principal prêmio do jornalismo agraciou pela segunda vez o trabalho de um brasileiro. O fotógrafo Ueslei Marcelino conquistou o Pulitzer por registrar a epopeia de uma caravana de imigrantes da América Central rumo aos Estados Unidos. Ele e mais 10 fotojornalistas da agência Reuters foram reconhecidos na categoria “Fotografias noticiosas” (Breaking News Photography) pelo projeto “Na Trilha de Migrantes à América”. Marcelino faz questão de ressalvar a vitória em equipe: “Não é um fotografo brasileiro. É um fotojornalista com equipe, com minha família, meus amigos”.


A premiação, concedida pela Universidade de Columbia (EUA), coroou a documentação de uma “narrativa visual vívida e surpreendente da urgência, desespero e tristeza dos migrantes”, como foi definida a cobertura na cerimônia da 103ª edição do Pulitzer. Em 2016, o fotógrafo Maurício Lima foi o primeiro brasileiro a conquistar a maior honraria da profissão por mostrar o drama de refugiados no jornal "The New York Times". Seguindo os passos de quem considera “o Midas da fotografia”, Marcelino falou à ÉPOCA sobre a emoção de ser reconhecido e relatou como foram os dois meses ao lado dos migrantes . “Vi muita coisa triste e situações desumanas e, ao mesmo tempo, vivi sentimentos excepcionais. Enriquecedor ao extremo”.
Qual foi sua reação ao receber a notícia de que havia ganhado o Pulitzer, principal prêmio do jornalismo? Foi a grande emoção da sua carreira?
Estou há 10 dias na Venezuela, ajudando na cobertura do cotidiano, da política e tinha acabado de voltar de uma viagem para o interior do país, onde fui fazer uma matéria. Quando cheguei na capital, vi uma cafeteria aberta e aproveitei para tomar um café. Foi quando recebi a ligação de um editor que faz a seleção de alguns prêmios, entre eles o Pulitzer. Perguntou, em inglês, como eu estava e disse que tinha uma notícia muito agradável para me dar, que nós tínhamos acabado de ganhar o prêmio. Nesse momento, estava passando uma garçonete na minha frente. Eu a abracei, comecei a pular, rodando, comemorando, gritando... E ela começou a falar “Qué pasa? Qué pasa, senõr?”, e eu disse que tinha ganhado um prêmio e que era para ela comemorar. Aí ela começou a pular e vibrar junto comigo. Todo mundo do café achando engraçado, batendo palma. Pedi até desculpas depois. Foi uma surpresa muito grande, sem dúvida uma das emoções mais legais que senti trabalhando.
Você é o segundo brasileiro a ganhar esse prêmio com a fotografia. Já chegou a mensurar essa conquista e, algum dia, imaginou tal reconhecimento?
Até publiquei na rede social que parecia o Galvão Bueno gritando “É tetra, é tetra!”. É Brasil, é Reuters, ganhamos! Pulitzer acho que é o sonho de qualquer profissional que trabalha na imprensa. Vou te confessar que era um sonho muito distante para mim, da minha realidade, do tipo de trabalho que eu faço. Já sonhei acordado ganhando outros prêmios, concorrendo a outras coisas. Mas Pulitzer, até agora, não consigo entender, a ficha não caiu direito. Estou bastante emocionado, feliz, e, como o segundo brasileiro a ganhar, isso é bom para os fotojornalistas do Brasil, para o fotojornalismo, para todo mundo. A proporção da repercussão me surpreendeu demais. Não tinha muita noção de como seria isso. Estou surpreso ainda. Recebi um monte de mensagem, ligação, e-mail...Todo mundo parabenizando, mas é muito doido. Foge um pouco do meu entendimento.
Curiosamente, o outro brasileiro a ganhar essa honraria fotografou refugiados… É um tema que tem esse potencial de impacto por chocar ao expor a realidade dessas pessoas em imagens históricas?
São situações semelhantes e diferentes. O trabalho do Maurício Lima, que o fotógrafo que ganhou, é excepcional. É o Midas da fotografia. Tudo em que o cara bota a mão é incrível. Consegue contar a história de uma forma surpreendente. Acho que são momentos e realidades diferentes, situações políticas distintas. Retratar a vida das pessoas sempre gera conteúdo, porque é curioso e gera um choque cultural. É um grupo de pessoas que, falando como brasileiro, a gente não conhece culturalmente, economicamente, etc.
Como você se preparou para essa cobertura em especial?
Trabalho em Brasília como correspondente da Reuters há 8 anos e cubro política, economia, cultura, esporte. Tenho feito viagens para fora, como Copa América no Chile, visita do Obama em Cuba, Copa do Mundo na Rússia, Olimpíadas. Para esses grandes eventos, todos os anos, a gente faz treinamentos de segurança para ambientes hostis. A gente se prepara, faz um curso com noções de segurança, de risco, falta de água, de luz, furacões, conflitos... A empresa nos prepara. Eu recebi um telefonema da minha editora dizendo que ia cobrir essa caravana que começou no final de setembro, início de outubro, e iria para o México. Preparei meus equipamentos e saí no dia seguinte de Brasília. Sei me virar no espanhol e fui atrás da história, acompanhar toda a caravana. Eles caminhavam com horários próprios. Tinha que encontrá-los na Guatemala. Saíram de Honduras e iam até o México. Encontrei com eles quase na fronteira e comecei a fotografar. É uma pauta completamente diferente de tudo que já vivi. Uma crise humanitária, um êxodo gigantesco, milhares de pessoas. Em alguns pontos ouvi policiais falarem em 9 mil pessoas, em outro, 12 mil e ia somando. A caravana passava e quem tinha vontade de ir para os EUA se agregava. Esse número ia crescendo. Bem diferente do que faço.
Como era o dia a dia e por quanto tempo se envolveu nessa cobertura?
Primeiro, dificuldade física, porque caminhava ao extremo, dormia pouco, comia mal, acompanhava o tempo inteiro carregando equipamento. Segundo, você está acompanhando o sofrimento de um monte de gente. Sem água, sem comida, sem lugar para dormir, criança doente, idosos destruídos fisicamente, pés cheios de bolha. Acompanhar o sofrimento e não poder fazer nada é meio frustrante. Em algum momento você ajuda, tenta amenizar diante do que pode. Foram quase 60 dias sem voltar para casa, sem ver minha esposa e minha filha, sem ter a minha vida. Me tornei um migrante durante dois meses. Dormi na rua, comi o que eles comiam, tomei banho no rio junto com eles, não tinha outra maneira de ficar próximo e retratar de maneira tão fiel a história se não estivesse fazendo as coisas junto com eles. Foi uma experiência completamente diferente de tudo o que já fiz e foi muito gratificante como profissional e como pessoa. Vi muita coisa triste e situações desumanas e, ao mesmo tempo, vivi sentimentos excepcionais. Fotografei crianças imaginando minha filha. Vi cenas de pais e filhos imaginando meus pais, me colocando no lugar deles. Foi um troca. Enriquecedor ao extremo.
A foto que lhe rendeu o prêmio, sobre o migrante hondurenho protegendo seu filho, revela o sofrimento e o desespero daquelas pessoas. O que passa na mente num momento desses e como foi para produzi-la?

É difícil não se colocar no lugar do outro, quase impossível. Qualquer fotógrafo que estivesse ali, repórter ou pessoa de outra profissão, que conseguisse enxergar o que a gente viu, se colocaria no lugar do outro. Impossível não fazer isso. No momento dessa foto, as pessoas dormiram numa praça central na cidade de Tecún Umán, na Guatemala, que faz divisa com Hidalgo, no México. Entre elas tem o rio Shuciate e uma ponte. Acordaram cedo, fizeram reuniões como todos os dias e decidiram que iam entrar no México. Levantaram acampamento, recolheram seus objetos pessoais e começaram a caminhar em sentido à ponte, que é o checkpoint, a alfândega entre os países.
Tinha um cerco policial, e começaram a cantar, falar palavras de ordem e avançaram. A polícia não resistiu e eles passaram até chegar a um portão que era o da ponte. Ficaram mais um tempo conversando, negociando, até resolverem invadir. Pularam, forçaram a passagem, a polícia novamente liberou e eles passaram até o México. No final da ponte, já quase no México tinha um novo cerco policial, aí sim grande, com barricadas e policiais armados. Novamente se reuniram na ponte, que estava lotada, e começaram a pedir para passar. Não conseguiram nada e começou um empurra-empurra. Fizeram uma linha de frente com mulheres e crianças e foram em direção aos policiais. Em certo momento, o comandante teve que reprimir a massa e soltaram gás de pimenta e uma bomba. Virou um caos. Tinha muitas pessoas com criança no colo, como esse senhor. E não tinha como passar para o México. Então as pessoas começaram a voltar. Foi quando percebi que esse senhor e outras famílias que estavam encurraladas esperaram um determinado momento para sair dali. Eu estava bem posicionado na linha de frente, vieram na minha direção e acabamos registrando essa cena. E, nesse momento que ele está tentando proteger o filho, está voando pau, pedra, os imigrantes tentando reprimir a polícia... Começou uma confusão generalizada.
ocê já disse que todo dia se aprende algo novo com a fotografia. O que foi mais marcante em cobrir essa caravana e a tentativa dos imigrantes de mudarem suas vidas?
Acho que foi ver tudo o que essas pessoas passaram e ver que a fotografia de uma certa maneira causou um debate. Foi surpreendente ver tudo o que eles passaram. Muito marcante, como pai, ver um pai abandonar sua vida, sua casa, para tentar dar uma vida melhor para o filho num lugar que ele não conhece, num idioma que ele não sabe e sem certeza do que vai acontecer lá. Você se imagina largando toda a sua vida hoje e botar o pé na estrada com mochila de roupa em busca de uma vida melhor em qualquer país? O que me marcou muito foi esse sentimento. O que essas pessoas estão pensando para fazer tudo isso? O que elas passaram, o que elas estão vivendo para poder se lançar dessa maneira? E o que passaram para chegar até a fronteira não está no gibi.
Nessa linha tênue entre sensibilidade e respeito, como é lidar com o aspecto emocional, ainda mais quando envolve famílias e crianças?
Me perguntava o tempo inteiro: tenho que fotografar? Posso fotografar? Difícil achar essa maneira de trabalhar, respeitando a dor, o momento, a dificuldade e, ao mesmo tempo, tendo a obrigação como jornalista de fazer com que aquilo seja noticiado e visto. Com muita ética e me colocando no lugar das pessoas, me questionei. Se sou o pai dessa criança ou se é meu pai, se sou eu, será que gostaria de sair em uma fotografia nessa situação? Posso te dizer com propriedade que evitei um monte de situação que seria desagradável, mas que seria uma foto que renderia uma polêmica, por respeitar as pessoas e saber o limite entre profissional e não ser sensacionalista, entre passar uma informação correta e não uma pequena versão sobre um ponto específiico de uma cena. Cobri, mês passado, o pós-atentado na escola em Suzano. E era muito difícil levantar a máquina e ter que fotografar uma pessoa chorando na minha frente, porque tinha que respeitar a dor daquela pessoa. Mas ao mesmo tempo tinha que fazer o meu trabalho. De certa forma, achei um espaço onde, para mim, era o limite. Na caravana, muitas vezes fotografei algumas situações em que depois fui conversar com a pessoa, tentar me aproximar, saber um pouco e perceber se estava bem ou não. Nosso papel como fotojornalista vai além de apertar o botão na hora certa, no lugar certo.
Boa parte de suas fotos foca em pessoas e suas expressões. Transmitir o sentimento de cada um é o que mais te atrai? É o seu diferencial?
Não diria que uma maneira diferente. Acho que cada fotógrafo tem uma particularidade, uma maneira de contar uma história. Por tudo o que eu estava vivendo ali, estava em busca disso. Preciso mostrar as sensações, emoções. E muitas delas eu também estava sentindo. Acho que o meu trabalho se pautou pelas sensações e emoções que as pessoas estavam sentindo. E, para mostrar isso, eu tinha que estar próximo, ter intimidade, estar vivendo com elas. Se não tivesse vivido de uma forma tão intensa esses dois meses, caminhando junto com eles, dormindo, comendo, vivendo como eles, não conseguiria as fotografias que conseguimos fazer
Epoca
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