Em maio de 1948, há exatos 70 anos, um navio chamado "Windrush" zarpou de Kingston, na Jamaica, com destino à Inglaterra. A bordo foram quase 500 pessoas que iniciavam uma nova vida em terras britânicas - imigrantes do Caribe tentando a sorte do outro lado do Atlântico.
Foi o início de uma onda de imigração que acabou mudando o perfil da classe operária na Grã-Bretanha, principalmente em Londres e em outras cidades grandes. Mudaram os sons, cheiros e comidas do cotidiano inglês, enriquecendo a ilha.
Esses pioneiros - conhecidos como "a geração Windrush"- e os seus descendentes deram (e ainda dão) enorme contribuição em uma gama extensa de atividades. O aniversário de 70 anos dessa leva migratória deveria ser um momento para reflexão e comemoração.
Em vez disso, virou um momento de grande revolta.
Acaba de vir à tona a notícia de que, nos últimos anos, várias pessoas dessa "geração Windrush" estão sendo tratadas como bandidos - demitidos de seus empregos, despejados de seus lares, excluídos do acesso ao sistema de saúde e até mesmo deportados para a Jamaica.
Vale a pena frisar que eles entraram no país de maneira totalmente legal. Eram súditos do rei britânico e tinham todos os direitos de cidadania. Isso aconteceu porque, depois da Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra sofria de escassez de mão de obra e precisava de gente para trabalhar nos hospitais e nos trens, metrôs e ônibus. Esses setores ativamente faziam campanhas de recrutamento no Caribe para atrair pessoas.
Como pode ser, então, que eles sejam tratados agora com tanta crueldade?
A resposta tem tudo a ver com a histeria contemporânea sobre imigrantes ilegais. É um debate onde sobra gritaria e falta bom senso. Nada está mais claro do que o esgotamento do atual modelo econômico. Mais fácil do que mudar isso, entretanto, é achar um bode expiatório - e aí o imigrante é presa fácil.
Na ausência de ideias construtivas, o caminho mais curto é aquele da demagogia: a ideia de que basta se livrar do "outro", aquele penetra sinistro, que de repente haverá empregos e serviços sociais para todos.
O governo britânico, então, embarcou na política de criar um "ambiente hostil" para o imigrante irregular, de tornar a vida tão difícil que este, se não fosse pego, chegaria à conclusão de que não valeria mais a pena e que o melhor era vazar.
Só que essa malha fina contra os ilegais também vem pegando muitos dos que têm direitos plenos de cidadania - como membros da "geração Windrush" -, mas que não necessariamente têm como prová-lo.
Meu país nunca foi muito chegado a documentos pessoais. Até hoje, no Brasil eu me enrolo todo com esse negócio de CPF e identidade, que para vocês parecem ser tão sagrados. Bastante gente da "geração Windrush" não tem um passaporte britânico nem os documentos pedidos agora pelo Ministério do Interior para comprovar a sua cidadania. Por isso, temos casos de pessoas com décadas de vida no país, anos pagando impostos, contribuindo, que de repente se encontram em maus lençóis. Um escândalo.
E essa história, que começou com um navio, pode até afundar as carreiras dos políticos responsáveis (enquanto escrevo esta coluna, vejo que a ministra do Interior foi obrigada a se demitir por causa do escândalo). Porque os problemas atuais foram previstos. Sabe-se (via Lorde Kerslake, o ex-chefe do funcionalismo público) que alguns dentro do governo estavam preocupados com o tal "ambiente hostil", temendo ecos da Alemanha nazista.
Apesar das negações, ficou evidente que houve dentro do Ministério do Interior uma meta estabelecida de quantidades de deportações considerada desejável por ano, colocando pressão em cima dos funcionários para adotar uma linha dura.
Alguns políticos da oposição advertiram que imigrantes legais cairiam também na malha fina. A linha do governo - de deportar primeiro e julgar apelações depois - parece resultado de uma falta gritante de valores humanos.
Mais especificamente, trata-se de uma falta de empatia - um problema enorme que contamina a política contemporânea e existe como clara consequência do abismo social que cresceu tanto nas últimas décadas. É cada vez mais difícil para a classe governante poder imaginar a vida e as possibilidades da maioria que nasceram sem os seus privilégios e conexões.
Se os problemas sofridos por cidadãos britânicos legítimos representam um auge quase incrível de desumanidade burocrática, o "ambiente hostil" contra ilegais é também deplorável. A grande maioria é de pessoas querendo nada mais do que trabalhar para melhorar a sua vida e a vida de seus filhos. Com uma população local envelhencendo, o país vai precisar dessa presença, até para fechar as contas no futuro.
Mas a campanha contra eles chegou ao ponto de haver vans circulando em vários bairros de Londres com alto-falantes gritando o ameaçador "volte para casa ou será preso".
Depois da crise financeira de 2008, rios de dinheiro público foram utilizados para salvar o sistema bancário - criando um problema para as finanças públicas. Daí, junto com o tal "ambiente hostil", vieram a política de austeridade, os cortes nos gastos e a necessidade de "apertar o cinto".
Mas como diria o brilhante economista escocês Mark Blyth, apertar o cinto só vale a partir do momento em que estamos todos vestindo as mesmas calças. O que está acontecendo com os imigrantes - especialmente aqueles da geração que navegou no "Windrush" - é a prova definitiva de que não estamos todos no mesmo barco.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
www.miguelimigrante.blogspot.com
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