sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Migrações transfronteiriças Brasil – Guiana

 


No primeiro artigo de 2022, retomamos o tema das migrações que segue transpondo o tempo e as fronteiras na Amazônia e no mundo inteiro. Apresentamos um breve recorte da pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto de Pesquisa ‘Migração, Violência e Direitos Humanos em Roraima’ (Edital MCTI/CNPq – Universal, 2018) do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (GEIFRON) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF), da Universidade Federal de Roraima (UFRR), coordenado pela professora doutora Francilene dos Santos Rodrigues.

A pesquisa de campo realizada por uma equipe de 20 pesquisadores(as) docentes e discentes da graduação e da pós-graduação se estendeu até os últimos dias de 2021 e encontra-se em processo de sistematização. Na sua reta final, o projeto retomou o acompanhamento ao movimento migratório transfronteiriço entre o Brasil e a República Cooperativa da Guiana, mais conhecida como Guiana Inglesa, na fronteira leste de Roraima. A pesquisa de campo iniciou-se na cidade transfronteiriça de Bomfim, distante 110 km de Boa Vista.

Pautada em temáticas específicas, a pesquisa observou a questão da educação, a atuação da sociedade civil e o tráfico de pessoas, temas interligados com as migrações transfronteiriças. Na área da educação, foram visitados o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Roraima – Campus Avançado de Bonfim e a Escola Estadual Aldébaro José de Alcântara – Ensino Fundamental e Ensino Médio. Em ambas as instituições de ensino observou-se grande esforço por parte do corpo docente e da gestão acadêmica na relação com os alunos guianenses e outros migrantes. De modo especial a questão da língua (inglês, espanhol, francês, macuxi, wapixana) representa um grande desafio e, ao mesmo tempo, um diferencial importante nas metodologias educativas.

Longe de ser um problema, o desafio diversidade linguística amplia os horizontes e, aos poucos, estabelece o ensino bilíngue de forma transversal e a educação intercultural como elemento de inclusão. Observou-se que a interculturalidade na educação tem sido uma proposta pedagógica, na qual se busca desenvolver atividades relacionadas às diferentes culturas baseadas no respeito mútuo e na trocas de experiências em espaços de novas sociabilidades. As instituições em questão apresentam longo histórico de atividades interculturais e práticas pedagógicas inclusivas que envolvem diretamente os países vizinhos para incluir os alunos guianenses, haitianos e venezuelanos. O resultado é uma verdadeira experiência polissêmica com uma educação voltada para o enfrentamento à xenofobia e a todas as formas de discriminação e intolerância. 

Por mais que não esteja presente nos projetos pedagógico das instituições de ensino, a educação intercultural é uma realidade que se materializa num enfoque global que abrange diferentes âmbitos do conceito de interculturalidade que é um tema central no processo educativo e na construção do pensamento crítico nas instituições observadas na pesquisa de campo. Concluiu-se que a educação intercultural nesse contexto migratório de alunos brasileiros, guianenses, haitianos, venezuelanos juntamente com as etnias transfronteiriças, especialmente macuxi e wapixana, tem se revelado como um processo importante de descolonialidade do pensamento e das práticas pedagógicas. Este é apenas um dos resultados positivos das migrações e das relações transfronteiriças.

A temática da atuação da sociedade civil na relação com as migrações transfronteiriças centrou-se na experiência do Serviço Pastoral dos Migrantes coordenado pela Irmã Lucélia Baldez, da Congregação das Missionárias de Santa Teresinha. Vinculada à Paróquia São Sebastião da Diocese de Roraima, nos últimos quatro anos a pastoral do migrante acompanha o crescimento das migrações no município de Bonfim. De acordo com a Irmã Lucélia, “a partir de agosto de 2018 a dinâmica migratória aumentou bastante e atualmente, cerca de 500 migrantes residem na cidade, número que já foi bem maior”.

A realidade transfronteiriça perpassa o cotidiano de muitos brasileiros que se deslocam todos os dias para trabalhar em Lethen, o município transfronteiriço da Guiana. Ao mesmo tempo, muitos guianenses residem em Bonfim, especialmente para manter os filhos na escola, e todos os dias circulam entre os dois países numa rotina de intensas interações sociais e laborais. A proximidade entre os dois municípios, separados pelo rio Tacutu e unidos pela ponte transnacional, permite a circulação permanente de brasileiros e guianenses, além de outros migrantes que circulam permanentemente na referida transfronteira.

Irmã Lucélia, e sua comunidade religiosa, busca institucionalizar o acolhimento aos migrantes que recorrem à pastoral em busca de orientações para documentação e de ajuda para alimentação, moradia, educação e outras necessidades básicas que representam a negação de acesso aos direitos fundamentais num município que ainda não desenvolveu políticas públicas migratórias suficientes e coerentes, dadas as suas características transfronteiriças.  A instituição da sociedade civil não tem encontrado apoio e parceria nem com o estado nem com o município, o que dificulta o atendimento, acolhimento, integração e inclusão dos migrantes.

Mesmo com poucos recursos, a pastoral dos migrantes mantém uma rotina de atendimento aos migrantes e busca sensibilizar a comunidade paroquial para além do tema religioso, uma vez que o acolhimento aos migrantes não se limita à religião proferida por eles. De acordo com a Irmã Lucélia a fronteira está muito marcada pelo crime organizado que atua no controle do tráfico de drogas, o que representa uma ameaça permanente aos migrantes.

A violência e o tráfico de drogas foram temas recorrentes nas narrativas dos professores das instituições visitadas e da pastoral dos migrantes. Os agentes sociais denunciam o aliciamento de jovens estudantes e de migrantes desempregados por parte do crime organizado nas duas faixas transfronteiriças.

 

A terceira temática tratada na pesquisa de campo foi a questão do tráfico de pessoas que também foi um tema recorrente nas narrativas dos participantes da pesquisa. De acordo com uma agente de saúde da paróquia São Sebastião, que não será identificada neste informe por questões de segurança, “o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres, está estreitamente ligado ao tráfico de drogas e ao garimpo ilegal”. Dentre muitos casos identificados e acompanhados, a agente pastoral, destacou que “há pouco mais de um ano encontrou uma moça de 21 anos em situação de total desespero que pedia ajuda após a travessia da ponte, para seguir sua rota de fuga”.

A jovem informou que era natural do interior do Estado do Pará e que havia recebido uma proposta de trabalho como cozinheira num garimpo no interior da Guiana. Primeiramente a jovem morou alguns meses em Boa Vista até que se unir a outras cinco ou seis jovens que foram levadas para a mesma finalidade. Entretanto, quando chegaram a Georgetown, capital da Guiana, na companhia das colegas e de um guianense que mantém negócios nos garimpos foram informadas de um vultuoso endividamento que envolvia transporte, alimentação e hospedagem. Todos os documentos das jovens ficaram em posse do aliciador que as enviou para atuar na prestação de serviço sexual comercial nos garimpos como forma de pagamento da dívida. Ali viveram dias de horrores e enfrentaram toda forma de violência até o limite do suportável.

De acordo com a agente de pastoral, a jovem estava muito doente apresentando anemia profunda, hepatite e se recuperava de uma tuberculose. “Estava tão franca e abatida que mal conseguia falar”, informa a agente de pastoral que “providenciou medicação, alimentação e hospedagem até a jovem ter condições para seguir viagem de taxi até Boa Vista, onde acredita que teria apoio para retornar para sua família em segurança”.

Por causa das doenças a jovem teria sido levada de um garimpo para tratamento em um hospital de Georgetown, de onde conseguiu fugir com ajuda de uma enfermeira que se inteirou da sua situação. A enfermeira teria contado com a ajuda de um sacerdote jesuíta em Georgetown que pagou uma passagem em uma ‘lotação’ (sistema de vans) até Lethen. Somente dessa forma a jovem havia conseguido viajar porque estava sem nenhum documento. Da mesma forma, a agente de pastoral da saúde a enviou em “taxi lotação” (sistema de viagem muito utilizado em toda a Amazônia entre municípios vizinhos) até Boa Vista.

Estas foram as três temáticas apresentadas de forma muito breve neste informe de pesquisa. São temas que nos desafiam à reflexão e ao aprofundamento em textos e artigos mais detalhados que seguirão no conjunto de resultados do projeto de pesquisa em questão.

*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia. 

amazonasatual

www.miguelimigrante.blogspot.com


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