No primeiro artigo de 2022, retomamos o tema das migrações que segue transpondo o tempo e as fronteiras na Amazônia e no mundo inteiro. Apresentamos um breve recorte da pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto de Pesquisa ‘Migração, Violência e Direitos Humanos em Roraima’ (Edital MCTI/CNPq – Universal, 2018) do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (GEIFRON) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF), da Universidade Federal de Roraima (UFRR), coordenado pela professora doutora Francilene dos Santos Rodrigues.
A pesquisa de campo realizada por uma equipe de 20
pesquisadores(as) docentes e discentes da graduação e da pós-graduação se
estendeu até os últimos dias de 2021 e encontra-se em processo de sistematização.
Na sua reta final, o projeto retomou o acompanhamento ao movimento migratório
transfronteiriço entre o Brasil e a República Cooperativa da Guiana, mais
conhecida como Guiana Inglesa, na fronteira leste de Roraima. A pesquisa de
campo iniciou-se na cidade transfronteiriça de Bomfim, distante 110 km de Boa
Vista.
Pautada em temáticas específicas, a pesquisa observou a
questão da educação, a atuação da sociedade civil e o tráfico de pessoas, temas
interligados com as migrações transfronteiriças. Na área da educação, foram
visitados o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Roraima –
Campus Avançado de Bonfim e a Escola Estadual Aldébaro José de Alcântara –
Ensino Fundamental e Ensino Médio. Em ambas as instituições de ensino
observou-se grande esforço por parte do corpo docente e da gestão acadêmica na
relação com os alunos guianenses e outros migrantes. De modo especial a questão
da língua (inglês, espanhol, francês, macuxi, wapixana) representa um grande
desafio e, ao mesmo tempo, um diferencial importante nas metodologias
educativas.
Longe de ser um problema, o desafio diversidade linguística
amplia os horizontes e, aos poucos, estabelece o ensino bilíngue de forma
transversal e a educação intercultural como elemento de inclusão. Observou-se
que a interculturalidade na educação tem sido uma proposta pedagógica, na qual
se busca desenvolver atividades relacionadas às diferentes culturas baseadas no
respeito mútuo e na trocas de experiências em espaços de novas sociabilidades.
As instituições em questão apresentam longo histórico de atividades
interculturais e práticas pedagógicas inclusivas que envolvem diretamente os
países vizinhos para incluir os alunos guianenses, haitianos e venezuelanos. O
resultado é uma verdadeira experiência polissêmica com uma educação voltada
para o enfrentamento à xenofobia e a todas as formas de discriminação e
intolerância.
Por mais que não esteja presente nos projetos pedagógico das
instituições de ensino, a educação intercultural é uma realidade que se materializa
num enfoque global que abrange diferentes âmbitos do conceito de
interculturalidade que é um tema central no processo educativo e na construção
do pensamento crítico nas instituições observadas na pesquisa de campo.
Concluiu-se que a educação intercultural nesse contexto migratório de alunos
brasileiros, guianenses, haitianos, venezuelanos juntamente com as etnias
transfronteiriças, especialmente macuxi e wapixana, tem se revelado como um
processo importante de descolonialidade do pensamento e das práticas
pedagógicas. Este é apenas um dos resultados positivos das migrações e das
relações transfronteiriças.
A temática da atuação da sociedade civil na relação com as
migrações transfronteiriças centrou-se na experiência do Serviço Pastoral dos
Migrantes coordenado pela Irmã Lucélia Baldez, da Congregação das Missionárias
de Santa Teresinha. Vinculada à Paróquia São Sebastião da Diocese de Roraima,
nos últimos quatro anos a pastoral do migrante acompanha o crescimento das
migrações no município de Bonfim. De acordo com a Irmã Lucélia, “a partir de
agosto de 2018 a dinâmica migratória aumentou bastante e atualmente, cerca de
500 migrantes residem na cidade, número que já foi bem maior”.
A realidade transfronteiriça perpassa o cotidiano de muitos
brasileiros que se deslocam todos os dias para trabalhar em Lethen, o município
transfronteiriço da Guiana. Ao mesmo tempo, muitos guianenses residem em
Bonfim, especialmente para manter os filhos na escola, e todos os dias circulam
entre os dois países numa rotina de intensas interações sociais e laborais. A
proximidade entre os dois municípios, separados pelo rio Tacutu e unidos pela
ponte transnacional, permite a circulação permanente de brasileiros e
guianenses, além de outros migrantes que circulam permanentemente na referida
transfronteira.
Irmã Lucélia, e sua comunidade religiosa, busca
institucionalizar o acolhimento aos migrantes que recorrem à pastoral em busca
de orientações para documentação e de ajuda para alimentação, moradia, educação
e outras necessidades básicas que representam a negação de acesso aos direitos
fundamentais num município que ainda não desenvolveu políticas públicas
migratórias suficientes e coerentes, dadas as suas características
transfronteiriças. A instituição da
sociedade civil não tem encontrado apoio e parceria nem com o estado nem com o
município, o que dificulta o atendimento, acolhimento, integração e inclusão
dos migrantes.
Mesmo com poucos recursos, a pastoral dos migrantes mantém
uma rotina de atendimento aos migrantes e busca sensibilizar a comunidade
paroquial para além do tema religioso, uma vez que o acolhimento aos migrantes
não se limita à religião proferida por eles. De acordo com a Irmã Lucélia a
fronteira está muito marcada pelo crime organizado que atua no controle do
tráfico de drogas, o que representa uma ameaça permanente aos migrantes.
A violência e o tráfico de drogas foram temas recorrentes
nas narrativas dos professores das instituições visitadas e da pastoral dos
migrantes. Os agentes sociais denunciam o aliciamento de jovens estudantes e de
migrantes desempregados por parte do crime organizado nas duas faixas
transfronteiriças.
A terceira temática tratada na pesquisa de campo foi a
questão do tráfico de pessoas que também foi um tema recorrente nas narrativas
dos participantes da pesquisa. De acordo com uma agente de saúde da paróquia
São Sebastião, que não será identificada neste informe por questões de
segurança, “o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres, está estreitamente
ligado ao tráfico de drogas e ao garimpo ilegal”. Dentre muitos casos
identificados e acompanhados, a agente pastoral, destacou que “há pouco mais de
um ano encontrou uma moça de 21 anos em situação de total desespero que pedia
ajuda após a travessia da ponte, para seguir sua rota de fuga”.
A jovem informou que era natural do interior do Estado do
Pará e que havia recebido uma proposta de trabalho como cozinheira num garimpo
no interior da Guiana. Primeiramente a jovem morou alguns meses em Boa Vista
até que se unir a outras cinco ou seis jovens que foram levadas para a mesma
finalidade. Entretanto, quando chegaram a Georgetown, capital da Guiana, na
companhia das colegas e de um guianense que mantém negócios nos garimpos foram
informadas de um vultuoso endividamento que envolvia transporte, alimentação e
hospedagem. Todos os documentos das jovens ficaram em posse do aliciador que as
enviou para atuar na prestação de serviço sexual comercial nos garimpos como
forma de pagamento da dívida. Ali viveram dias de horrores e enfrentaram toda
forma de violência até o limite do suportável.
De acordo com a agente de pastoral, a jovem estava muito
doente apresentando anemia profunda, hepatite e se recuperava de uma
tuberculose. “Estava tão franca e abatida que mal conseguia falar”, informa a
agente de pastoral que “providenciou medicação, alimentação e hospedagem até a
jovem ter condições para seguir viagem de taxi até Boa Vista, onde acredita que
teria apoio para retornar para sua família em segurança”.
Por causa das doenças a jovem teria sido levada de um
garimpo para tratamento em um hospital de Georgetown, de onde conseguiu fugir
com ajuda de uma enfermeira que se inteirou da sua situação. A enfermeira teria
contado com a ajuda de um sacerdote jesuíta em Georgetown que pagou uma passagem
em uma ‘lotação’ (sistema de vans) até Lethen. Somente dessa forma a jovem
havia conseguido viajar porque estava sem nenhum documento. Da mesma forma, a
agente de pastoral da saúde a enviou em “taxi lotação” (sistema de viagem muito
utilizado em toda a Amazônia entre municípios vizinhos) até Boa Vista.
Estas foram as três temáticas apresentadas de forma muito breve neste informe de pesquisa. São temas que nos desafiam à reflexão e ao aprofundamento em textos e artigos mais detalhados que seguirão no conjunto de resultados do projeto de pesquisa em questão.
*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na
Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em
Sociedade e Cultura na Amazônia.
amazonasatual
www.miguelimigrante.blogspot.com
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