quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Livro homenageia 100 mulheres imigrantes que mudaram o mundo


 Da fotógrafa Claudia Andujar à cantora Carmen Miranda, da ornitologista Emilie Snethlage à chef de cozinha Paola Carosella, da arquiteta Lina Bo Bardi à pintora Tomie Ohtake. Em comum, todas trocaram seus países de origem pelo Brasil, e aqui construíram uma nova vida e carreira de sucesso. Além delas, ao longo da história milhares mulheres saíram de suas terras-natal — por vontade própria ou por questão de sobrevivência — em busca de oportunidades. Cem dessas histórias estão novo volume da série de livros Histórias de ninar para garotas rebeldes, de Elena Favilli, lançado em novembro no Brasil pela Planeta.

“Fiquei chocada quando descobri que a maioria dos refugiados no mundo são mulheres, mas é raro ouvirmos a história da imigração contada pela perspectiva de mulheres”, disse a autora em entrevista à GALILEU. Embora não tenha se incluído no livro, a própria Favilli é uma dessas imigrantes: italiana, trocou Milão pela Califórnia no início da carreira como jornalista para criar a empresa de mídia Garotas Rebeldes, com a qual lançou outros títulos de livros com histórias de mulheres que mudaram o mundo, ainda que nem sempre reconhecidas. “Ser uma garota rebelde depende muito do seu contexto, mas acho que o ponto central é ser uma pessoa que não aceita as limitações que o status quo impõe a você”, diz.

A ideia para fazer a primeira edição temática da série surgiu como uma provocação. “Achei que era importante fazer esse comentário ousado sobre esse tema tão contemporâneo, pois a imigração ainda é uma grande questão”, explica. “Mas basta olhar para as conquistas na ciência e para as contribuições que imigrantes dão para sociedades no mundo todo para entender que a troca de ideias sempre esteve no centro de qualquer avanço na sociedade.”


Tereza Lee, pianista brasileira de origem coreana que se mudou para os Estados Unidos na infância (Foto: Reprodução)

Uma das histórias emblemáticas da luta por direitos de imigrantes contada no livro é a da ativista Tereza Lee. Nascida no Brasil de pais coreanos, mudou para os Estados Unidos ainda pequena. Na infância, seu pai lhe contou um segredo: eram imigrantes ilegais. Isso a fez viver sob constante medo de ser deportada, e a garota canalizou a energia para a música. Até que, quando um professor a encorajou a entrar na faculdade, Lee contou a ele o segredo. Os dois entraram em contato com um senador que escreveu um projeto de lei que permitiria que ela frequentasse a faculdade.

Outros estudantes que também eram imigrantes ilegais pediram ajuda. O senador apresentou a lei Dream, que busca garantir cidadania a quem chegou aos Estados Unidos ainda na infância. A votação para a aprovação da lei estava marcada para o dia 12 de setembro de 2001. No dia anterior, ataques terroristas interromperam a votação e o sonho de milhares de estudantes — que desde então seguem lutando para buscar a garantia de permanência no país onde cresceram.

“A imigração sempre foi parte da experiência humana ao longo do tempo. E especialmente agora, em que a economia é globalizada e tudo é tão globalizado, o conceito de cidadania deveria evoluir”, opina Favilli. “Nós não podemos ter essa expectativa de poder abrir uma empresa aqui ou ali, investir em ações na China e no Brasil, mas aí dizer que ‘não, não queremos que ninguém do Brasil ou da China ou de onde quer que seja venha para o meu país’. Acho que alguns políticos se contradizem na maneira como lidam com o assunto.”

Vítimas da violência
Na visão da autora, o tema se torna especialmente relevante para as mulheres quando consideramos que uma das principais situações que motivam mulheres a abandonarem seus países é a violência. “É só pensar no que está acontecendo no Afeganistão neste momento”, observa. Um dos exemplos mais recentes incluídos no livro é o da ativista síria Bana Alabed. Nascida em 2009, a garota ficou conhecida mundialmente por tuitar os horrores do cerco da cidade de Aleppo em 2016. Ela e a família acabaram fugindo da Síria para começar uma nova vida na Turquia. Hoje, a garota quer ser professora e trabalhar por um mundo sem guerras.

Outra refugiada da guerra da Síria é a ativista Muzoon Almellehan, que chegou a morar em um campo de refugiados por alguns anos com a família em uma barraca sem eletricidade. Em 2015, eles enfim se estabeleceram na Inglaterra, mas a garota continuou ajudando outras garotas refugiadas, fazendo campanhas em prol da educação de meninas. Em 2017, ela se tornou a mais jovem Embaixadora da Boa Vontade da Unicef.

No livro, há ainda histórias de mulheres que escaparam de conflitos em países como o Vietnã, Camboja, Somália, Etiópia, Bósnia, Iraque e, é claro, da Segunda Guerra Mundial. Esta trouxe ao Brasil algumas mulheres que se destacaram: a fotógrafa Claudia Andujar, a arquiteta Lina Bo Bardi e a pintora Tomie Ohtake.

Nascida Claudine Haas, a suíça escapou do Holocausto com a mãe e passou anos vagando de país em país, até chegar ao Brasil. No caminho, virou Claudia Andujar. Mesmo sem saber português, passou a viajar sozinha, carregando sempre uma câmera fotográfica. Quando chegou à Amazônia, enfim encontrou um lar em uma tribo de ianomâmis que viviam isolados. A fotógrafa passou a acompanhar a vida deles e a lutar pelos seus direitos. Em 2008, recebeu a Ordem do Mérito Cultural do governo brasileiro e, dez anos depois, a Medalha Goethe, uma condecoração oficial da Alemanha, por seu trabalho com os indígenas.


A fotógrafa suíça Claudia Andujar chegou ao Brasil após fugir da Segunda Guerra Mundial com a família (Foto: Wikimedia Commons)

À frente de seu tempo, a italiana Lina Bo Bardi contrariou as expectativas do pai ao cursar arquitetura em uma época que pouquíssimas mulheres escolhiam tal carreira. Aos 28 anos, abriu um escritório de arquitetura em Milão, mas não recebia muitos projetos por causa da Segunda Guerra Mundial. Até que o estúdio foi destruído por bombas e Bo Bardi decidiu se mudar para o Brasil com o marido.

Em São Paulo, construiu sua própria casa, conhecida como a Casa de Vidro. Mas esse foi só o aquecimento para o projeto seguinte e pelo qual é conhecida até hoje: o Museu de Arte de São Paulo (Masp), em plena Avenida Paulista. “Talvez porque ela fosse uma mulher estrangeira, a habilidade arquitetônica de Lina costumava ser ofuscada por homens brasileiros”, aponta a autora no livro. “Mas, hoje, muitos consideram Lina uma das melhores – e mais subestimadas – arquitetas do século 20.”

Amor pelo Brasil
Assim como Andujar e Bo Bardi, a pintora Tomie Ohtake acabou se mudando para o Brasil por causa da Segunda Guerra Mundial. Mas sua situação estava mais ligada ao acaso do que a uma questão de sobrevivência. Nascida no Japão, Ohtake veio ao Brasil apenas de visita, mas por causa do conflito não conseguiu voltar para o país de origem. Se apaixonou e teve filhos, até que um amigo descobriu que Ohtake tinha talento para a pintura e a incentivou a se dedicar.

Com foco no estilo abstrato, ficou conhecida por jamais retratar pessoas, focando em paisagens, e apostar em muitas cores. Ao contrário de Bo Bardi, obteve grande reconhecimento em vida e após a morte, aos mais de 100 anos, quando foi chamada por muitos jornais de “a grande dama da arte nacional”.


omie Ohtake em visita à Universidade de São Paulo (USP). Atrás da artista plástica é possível observadas uma de suas esculturas (Foto: Wikimedia Commons)

Outras mulheres perfiladas por Favilli que se apaixonaram pelo Brasil e o adotaram como casa são a chef argentina Paola Carosella e a ornitologista alemã Emilie Snethlage. A primeira é bem conhecida: jurada do MasterChef, trocou Buenos Aires por São Paulo, onde abriu restaurantes que se tornaram famosos em todo o país. O segredo, como gosta de contar, é o respeito: pelos ingredientes, pelos colegas, pelo fogo, pelo cliente, pelo agricultor, pelo pescador, pelo gari, pela natureza.

Já Snethlage superou diversos desafios para estudar História Natural em um período quando mulheres não tinham permissão para se matricularem oficialmente em faculdades alemãs. Sentada atrás de um biombo para poder acompanhar as aulas, ela conquistou o doutorado em 1904 e começou a carreira como assistente de zoologia no Museu de História Natural de Berlim. Mas no ano seguinte embarcou em uma aventura ainda maior.

Contratada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, se encantou pelo país e pelos animais da Amazônia, e se tornou conhecida por seu trabalho com as aves. Foi a primeira mulher a dirigir uma instituição científica na América do Sul, publicou um livro com mais de 500 páginas sobre aves amazônicas e ao menos cinco espécies de animais foram batizados em sua homenagem.

E há ainda Carmen Miranda, cantora e atriz portuguesa que se mudou para o Brasil com a família ainda criança. Desde cedo, sonhava com uma carreira no entretenimento, o que de fato aconteceu a partir de 1930. Miranda se tornou uma estrela no Brasil, aparecendo em filmes e musicais, e chamando a atenção com seu estilo irreverente: vestidos coloridos, sandálias de plataforma e adornos elaborados na cabeça. Em 1939, se apresentou na Broadway, e não demorou para que conquistasse também Hollywood, onde gravou mais de uma dúzia de filmes e se tornou uma das atrizes mais bem pagas dos Estados Unidos na época.

A cantora e atriz portuguesa Carmen Miranda no filme Serenata Tropical (Foto: Wikimedia Commons)

Mas, ao contrário de Carosella e Snethlage, o sucesso internacional de Carmen Miranda não a tornaram mais querida em seu lar — alguns brasileiros começaram a considerar que ela estereotipou uma cultura à qual nem realmente pertencia, por não ter nascido por aqui. A reação da cantora foi lançar a canção “Disseram Que Eu Voltei Americanizada”, em que declara seu amor pelo Brasil: “eu lá posso ficar americanizada? Eu que nasci com o samba e vivo no sereno. Eu digo é mesmo eu te amo, e nunca I love you.”

Agentes de mudanças
Embora seja voltado para garotas e adolescentes, com formato de contos e uma linguagem simples, o livro de Favilli traz uma mensagem sobre a coragem para enfrentar mudanças que também é relevante para os adultos — homens e mulheres — que provavelmente cresceram sem ouvir histórias como essas.

“Acho que é muito importante para todo mundo, e especialmente para as garotas, cultivarem essa força e habilidade de mudar. De lutar por mudanças e por liberdade, tanto para si mesmas quanto para a sociedade. Esse é um músculo que você precisa começar a treinar desde cedo, especialmente se você for uma garota”, destaca. “Mas para meninas e mulheres é muito mais difícil ser livre e realmente conseguir seguir suas predileções e paixões. A sociedade coloca uma quantidade enorme de expectativas em nossos ombros desde quando somos muito pequenas.”

Não por acaso, o próximo livro que deve ser lançado pela série no ano que vem, na versão em inglês, trará a história de cem jovens transformadoras. “As mudanças não acontecem se você não fizer nada para que ocorram e a história mostra que as mulheres sempre tiveram que lutar por seus direitos. Você precisa ser uma agente de mudanças se quiser vê-las”, observa Favilli. Nem que isso signifique trocar de escola, de time, de emprego ou, como foi o caso das mulheres perfiladas nesta edição da série, de país.

revistagalileu.

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