Aos seres humanos podem acontecer muitas coisas más ao longo
da vida. Até nascer pode não ser bom se se nascer num lugar ou tempo que seja
mau. Pode-se ter a “má sorte de não ser rico”, um eufemismo para a pobreza, ou
de não ter o que comer, ou de não poder ir à escola. Pode-se viver num lugar
sem condições de habitabilidade, não ter água ou não ter um teto. Pode ter-se a
má sorte de ser uma minoria em tempo ou espaço onde não somos respeitados. Pode
até ter-se cor em terra de gente que se julga incolor. Pode-se ser criança
onde, ou quando, não se pode ser criança. Pode-se ser jovem quando se devia ser
adulto. Pode-se ser mulher onde e quando só os homens podem. Podemos ter de
fugir de um cataclismo, de um terramoto, de um ditador ou de uma guerra.
Pode-se ter que atravessar um deserto ou um mar (ou ambos) com a vida nas mãos
dos outros. Podemos ter que viver entre países, sem casa e sem lar, sem pátria
e sem família. Pode-se acabar num campo de refugiados e passar fome e sede e
frio e calor e medo. Podemos estar sozinhos no meio de uma multidão de gente
como nós. Pode-se ser perseguido apenas por ter ideias (!!) ou opiniões (!!).
Podemos ter desventuras ao longo da vida, todos e cada um pode, um dia, ser
refugiado.
Porém, quando olho para Mória, quando vejo as imagens de
crianças sozinhas e de pais e avós de mãos vazias, quando se fala de tentativas
de suicídio destas crianças após mais um princípio do fim que o fogo iniciou,
fico a pensar se é justo que estes seres humanos tenham que sofrer todas estas
adversidades numa só vida. Quando vejo as imagens de gente como nós, em
sofrimento escusado, penso se ainda somos humanos. Mória é o inferno que Dante
Alighieri adivinhou há quase mil anos.
Há uns meses atrás escrevi aqui um texto sugerindo que a
Europa, pelo menos a União Europeia ou a Europa de Schengen ou quem sabe até só
a Europa do Euro (que, afinal, Europas há muitas), fosse capaz de,
solidariamente, criar uma “Operação Acolhida” – como o Brasil criou para os
refugiados Venezuelanos. Nesta operação, na linha da frente, um consórcio entre
estruturas do Estado Brasileiro e de Organizações das Nações Unidas presta
assistência e acolhimento em vários núcleos criados para o efeito em cidades como
Pacaraima, Boa Vista ou Manaus. Posteriormente a uma referenciação local,
acolhimento inicial e a uma definição do estatuto legal de cada acolhido (i.é.
requerente de asilo, sujeito a proteção humanitária ou candidato a uma migração
legal), estes migrantes e refugiados são distribuídos, de forma voluntária,
pelo território brasileiro. Esta mobilidade intra-Brasil é feita
maioritariamente de forma independente, mas, em muitos casos (circa de 40.000
desde abril de 2018), é usado um mecanismo inovador – que chamaram de
interiorização – que permite deslocar migrantes/refugiados para municípios onde
a sua integração (laboral, habitacional, de saúde ou escolar) possa ser
realizada de forma mais célere e efetiva.
Este mecanismo permite atenuar a pressão migratória junto
das “portas de entrada” e partilhar o ónus de prestação de acolhimento entre os
vários Estados que compõem a República Federativa do Brasil. Destaco, entre
outros mecanismos usados, o recurso ao reagrupamento familiar ou reagrupamento
por familiaridade (ou reagrupamento por apadrinhamento social), o
emparelhamento laboral entre potencial empregador e potencial trabalhador
(feito à distância), o emparelhamento escolar (acolher famílias onde há vagas
para as crianças e jovens nas escolas) ou a oferta voluntária de acolhimento
feita pelos municípios brasileiros. Estes mecanismos permitem acelerar a
mobilidade geográfica e retirar famílias inteiras de campos de refugiados nas
zonas de fronteira. Não é uma operação perfeita, longe disso, mas contém, seguramente,
um manual de boas práticas que podem ser exportadas para outros lugares do
mundo.
O lema da “Operação Acolhida” brasileira, “Acolhimento,
Abrigamento, Interiorização”, contraria o nosso imaginário de um Brasil com
portas fechadas e muros altos no que respeita às migrações e, afinal, a nós
Europeus, deixa-nos algum “amargo de boca” quanto à nossa incapacidade de
“acolher, abrigar, distribuir pelos Estados Europeus” o peso de uma tragédia
como é a dos migrantes/refugiados que tentam fugir da miséria, da guerra e da
fome e entram numa das regiões mais ricas do mundo pelas suas portas
mediterrânicas. Nos últimos anos, esta tragédia tem, aqui na Europa, muitos
momentos marcantes como as pateras que se dirigem a Espanha, os barcos que
chegam a Lampedusa, a Malta, ao Sul de Itália ou às ilhas gregas, as filas de
caminhantes que atravessam várias fronteiras na Europa interior na tentativa de
obter segurança e um refúgio. Temos o ónus de milhares de cadáveres num
mediterrâneo que já uniu, mas, agora, só separa. Temos campos de refugiados
famosos como os da Grécia ou os de Calais. Temos crianças que emergem mortas
nas nossas praias e temos, agora, uma sequência de caos, fogo, caos, que
retiram aos que já nada tinham tudo o que lhes restava.
Apelo aqui diretamente aos dirigentes máximos da União
Europeia para que não deixem morrer a Esperança. Uma parte do futuro da Europa
passa por aqui. É esta vacina social, humanista e progressista que será capaz
de combater o vírus da indiferença e fazer-nos voltar a ser humanos
Num momento pandémico no mundo, o vírus maior continua a ser
o da indiferença. Numa Europa rica o suficiente para desperdiçar alimentos,
consumir o mundo das gerações futuras em embalagens de uso único, usar
tecnologias de ponta para entretenimento e ócio. Numa Europa rica o suficiente
para cuidar dos mercados financeiros e amparar economias que se confinaram por
razões de saúde pública. Numa Europa com intelectuais maiores, quadros
superiores das maiores empresas globais, com forças armadas e forças civis
capacitadas para atuarem planetariamente (e algumas até mais além). Numa Europa
com 500 milhões de Europeus e um vasto território que atravessa vários
paralelos e meridianos.
Nesta Europa, não é possível que não nos consigamos
organizar para “Acolher, Abrigar e Distribuir Internamente” os refugiados que
estão parqueados na fronteira sul. Apelo aqui diretamente aos dirigentes
máximos da União Europeia (no Conselho, na Comissão, no Parlamento) para que
não deixem morrer a Esperança. Saibamos organizar uma “Operação Acolhida” na
Europa. Construamos com o muito que já aprendemos (e que as Instituições
Internacionais, as ONG’s, a Academia podem sintetizar) um modelo europeu de
acolhimento que seja referência para o mundo e para as gerações futuras. Uma parte
do futuro da Europa passa por aqui. É esta vacina social, humanista e
progressista, que será capaz de combater o vírus da indiferença e fazer-nos
voltar a ser humanos.
Pedro Góis
Publico PT.
www.miguelimigrante.blogspot.com
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