terça-feira, 15 de setembro de 2020

Do livro ao filme, 'Favela high-tech' mergulha na tragédia das migrações


 

Viver distante de sua terra, de sua língua e suas referências culturais é desafio para qualquer um. As razões para a partida podem ser inúmeras, voluntárias ou não: guerras, fome, falta de oportunidade, questões políticas, religiosas, sexuais etc. E, no momento em que o mundo assiste a um dos maiores fluxos migratórios da história, discutir a experiência de ser estrangeiro faz de Favela high-tech uma obra atual e necessária.

Favela high-tech é um livro-reportagem escrito pelo jornalista e editor especial do Dom Total Marco Lacerda, quando trabalhava no Japão como correspondente da Editora Abril. “São dois jovens, cada um à sua maneira tentando a sorte em Tóquio, que arriscam a própria vida e acabam esbarrando com a morte”, resume o autor. No entanto, mais do que uma trama de ação repleta de drogas, sexo, negócios escusos em ritmo frenético, a história é uma metáfora sobre ser estrangeiro.

Essa metáfora é o ponto de partida para a transposição de Favela high-tech para o cinema. O filme é projeto da produtora Gullane, gestado há anos e que, agora, vai se materializar com a direção de Karim Ainouz, autor, entre outros, de Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006) e A vida invisível (2019). Com gravações previstas para o primeiro semestre de 2021, a obra é uma coprodução da brasileira Gullane, a alemã The Match Factory e a japonesa Bitters End, com orçamento raro para os padrões nacionais: cerca de US$ 5 milhões (R$ 26,6 milhões), sendo 55% do Brasil, 30% da Alemanha, e 15% pelo Japão.

O produtor Fabiano Gullane conta que a história o encantou desde o primeiro momento e que a escolha de Karim Ainouz foi imediata. “Nunca pensamos em outro nome para fazer o filme, o Karim é um cidadão do mundo, um refugiado contemporâneo, que está sempre em movimento, buscando, encontrando, conhecendo países, culturas e jeitos novos de pensar”, relata, acrescentando que o olhar estrangeiro sempre foi premissa para a construção do roteiro. Assim, o trabalho de adaptação ganhou mais diversidade ao ser realizado pelos brasileiros Sergio Machado e Karim Ainouz, o inglês Toby Finlay, e o venezuelano George Walker.

“Basicamente, é contar uma história sobre o que a gente percebe no mundo, uma certa indisposição com os refugiados, estrangeiros, aqueles que não pertencem àquele lugar, como eles se sentem em um país que não é o deles, como eles são recebidos, que sentimentos permeiam as suas personalidades nesta situação”, explica Fabiano.

O cruzamento de culturas, visto através das lentes de quem não pertence àquele determinado lugar, está representado não apenas no processo de todo o filme, mas também na origem do livro. Favela high-tech foi escrito por um brasileiro vivendo no Japão e narra a história de uma decasségui brasileira que, por sua vez, tinha um relacionamento com um americano.

Nascido de uma proposta de reportagem, o livro foi um sucesso editorial ao qual Lacerda atribui a abordagem inédita sobre a vida dos estrangeiros no Japão do início dos anos 1990. “Além da experiência dos decasséguis, entrei na vida dos estrangeiros a partir da minha experiência pessoal de ser estrangeiro em Tóquio. É uma vida muito difícil, no sentido de que o Japão é um país xenófobo. Para se ter uma ideia, há restaurantes onde está escrito na porta ‘entrada permitida só a japoneses’.”

Mesmo depois de morar em vários países, Lacerda relata que ser de outro país no Japão tem sua especificidade. “Um estrangeiro no Japão não perde nunca a noção de que é um estrangeiro. Tudo deixa claro para você que você é um estrangeiro”, explica, ressaltando que o fato não é necessariamente negativo. “É uma cultura milenar com características maravilhosas, mesmo que não possa fazer parte dela. Existe um sentido comunitário que parece que está impresso no DNA das pessoas. O bem comum é respeitado e cultivado, as pessoas não invadem o trabalho, o espaço do outro. E têm muito respeito por isto.”

Lacerda destaca a falsa impressão de que o Japão se tornou um país ocidental, em boa parte causado pela presença de tantos elementos do capitalismo americano - Dunkin’Donuts, McDonald’s espalhados pela cidade, lojas e neons por todo o centro de Tóquio... “Isso é só na casca porque, no fundo, o Japão continua com os dois pés cravados nas plantações de arroz, culturalmente. Nem duas bombas atômicas tiraram esses pés que continuam cravados nas plantações de arroz de sempre. O arroz está lá claramente, o pilar da cultura japonesa”, conta Lacerda.

Para os realizadores do filme, tocar a intimidade de uma cultura tão forte representa um grande desafio. O produtor Fabiano Gullane aponta a necessidade de “sair da casca do que vemos do Japão, dos primeiros olhares, da superfície, e mergulhar mais profundamente, para poder buscar a essência da história que estamos contando”. “Isso no Japão não é fácil, porque ele te dá muitos estímulos visuais, sonoros, de pessoas, de cultura, de jeitos diferentes da nossa cultura brasileira, ou mesmo ocidental”, diz Gullane.

Dom Total 

www.miguelimigrante.blogspot.com


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