Neste ano, a data é
celebrada no domingo, 27 de setembro. A mensagem do Papa Francisco para o
momento tem como tema: “Forçados, como
Jesus Cristo, a fugir. Acolher, proteger, promover e integrar os deslocados internos”.
Como se vê, o olhar do pontífice está centrado na multidão de migrantes
internos, número hoje estimado pela ONU em mais de 45 milhões de pessoas.
Seguindo o título da obra do filósofo francês da Martinica, Frantz Fanon, e
guardadas as devidas proporções, não seria exagero classificá-los como “os
condenados da terra”, obrigados a um deslocamento contínuo no interior dos
respectivos países (Cfr. FANON, Frantz, Os
condenados da terra, Editora UFJF, 2006).
Nestes parágrafos, embora
conscientes que o problema é universal, destacamos as migrações internas no
Brasil. Representam, de alguma forma, o povo em fuga e em êxodo permanente em
busca de um solo que possa ser chamado de pátria. Exílio e diáspora dentro das
próprias fronteiras. Fogem não tanto em razão da falta de terra ou da falta de vontade
de cultivá-la, e sim em decorrência de uma estrutura fundiária ao mesmo tempo
concentradora e excludente. A perda da terra e o desenraizamento das origens
pode ser temporário ou definitivo, ou ainda dividido em duas etapas que se
complementam: um período de vaivém temporário, que não raro serve de trampolim
para uma migração definitiva normalmente para a zona urbana
Pingos de história
Tomando em consideração
a história do Brasil, ao longo dos séculos, os vários “ciclos econômicos” são
movidos por deslocamentos humanos de massa, como assinala o historiador e padre
José Oscar Beozzo. A extração do pau-brasil e da borracha exigiram grandes
deslocamentos seja de indígenas que residiam em suas aldeias, quanto de
trabalhadores que eram compulsoriamente recrutados. Entre o final do século XIX
e início do século XX, no auge da borracha, cerca de meio milhão de nordestinos
migraram para a selva amazônica. Com o fim do ciclo, muitos se estabeleceriam ali
como populações ribeirinhas (Cfr. BEOZZO, José Oscar, Brasil 500 anos de migrações, Editora Paulinas, São Paulo 1992; ver
também: DE CASTRO,
Ferreira, A Selva, Guimarães &
Cia. Editores, Lisboa, sem data).
Os ciclos da
cana-de-açúcar e do cacau, por sua vez, antes de contar com a mão-de-obra
afrodescendente e escrava, experimentaram o trabalho dos indígenas no eito e no
engenho, trazendo-os à força do interior de suas aldeias. E ainda no decorrer do
século XVII, o ciclo do ouro desencadeou movimentos intensos, tanto de novos
imigrantes portugueses que se instalavam no Brasil, quanto de africanos e/ou
afrodescendentes que eram trazidos como escravos do Nordeste para o sertão de
Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A populações brasileira se interioriza.
Não foi diferente com o
ciclo do café no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e hoje em Minas Gerais.
Antes da imigração em massa de italianos como substituição da mão-de-obra
escrava, eram os negros que trabalhavam no eito e no terreiro. De fato, de acordo
com o sociólogo José de S. Martins, enquanto o trabalhador era escravo, a terra
podia ser livre. Mas quando o trabalhador se tornou livre, a terra teve de ser
escravizada. Foi o que ocorreu com a Lei de Terras de 1850, a partir da qual a
propriedade legítima da terra podia ser adquirida não mais pelo cultivo, e sim
pela compra. O que veio a impedir que os afrodescendentes, após a Lei Aurea,
adquirissem um pedaço de chão para trabalhar por conta própria. Coisa que, de
resto, também estaria reservado aos italianos. Até hoje, no sul de Minas
Gerais, o café continua contando com a mão-de-obra de migrantes vindos do
Ceará, Maranhão, Piauí, e outros estados (Cfr. MARTINS, José de Souza, O cativeiro da terra, Editora Contexto,
São Paulo, 9ª edição, 2010)
Os rostos dessas “aves de
arribação”
Comecemos pelo desfile
de seus rostos mais característicos. Temos inicialmente os migrantes
temporários das safras agrícolas (cana-de-açúcar, laranja, café, tomate,
morango, azeitonas, uvas, entre outras). Oscilam periodicamente entre o polo de
origem e o polo de destino. Podem fazer mais de uma safra por ano, antes de
voltar para casa. Por mais paradoxal que pareça, trata-se de uma migração de
resistência. Os trabalhadores temporários buscam fora os meios para sustentar a
família que ficou ligada à terra. Em outras palavras, migram temporariamente
para não o fazer em definitivo. Até o dia em que não der mais para continuar
essas idas e vindas mais ou menos regulares.
Além das safras agrícolas, os trabalhadores
temporários também se dirigem para as grandes obras da construção civil
(barragens, usinas, estradas, por exemplo). Neste caso, a periodização
mantém-se irregular. Tudo depende da duração da obra. Formam em geral a mão-de-obra
braçal, como pedreiros, serventes, pintores!... Também aqui tentam sustentar a
família com o dinheiro ganho à distância. Por isso, não será exagero falar
igualmente de migração de resistência. Enquanto os pés e as mãos se encontram
no cimento, no ferro e no concreto da obra, o coração, a cabeça e a alma viajam
para o lugar de origem. Manter-se na terra é sua motivação.
Ao lado da migração temporária, não podemos
esquecer a continuidade do forte êxodo rural que marca a história do Brasil, de
modo particular no decorrer do século XX. Vários estudiosos falam de polos de
repulsão e polos de atração. A repulsão estaria ligada às regiões menos
desenvolvidas, como o sertão e agreste nordestinos, por exemplo. A atração é
representada pelo fascínio e a sedução das luzes da cidade. Evidente que a
leitura é bastante simplista. A repulsão e a atração, que à primeira vista podem
parecer mecânicas e automáticas, na verdade contam com outros fatores, tais
como, de um lado, a precariedade dos serviços públicos básicos no campo e, de
outro, a busca de oportunidades no mercado de trabalho cada vez mais
urbanizado.
Depois, a introdução da agroindústria, do garimpo
e da pecuária, além de criar poucos empregos, tende a esvaziar a terra para a
entrada dos rebanhos de gado e da monocultura. Ela se dá simultaneamente à
mecanização do trabalho, seja na extração de minério, seja nas extensas plantações
de grãos. A primeira porta de entrada na cidade costuma ser os serviços gerais,
o trabalho doméstico, a construção civil, o comércio ambulante – numa palavra,
mais do que a exclusão social, poderíamos reproduzir, ainda desta vez, a
expressão de José de Souza Martins de “inclusão perversa”. Trata-se de fato de
uma inclusão invisível no mercado informal, com todas as consequências
negativas que isso traz. Os migrantes internos, na realidade, acabam
desempenhando os serviços mais sujos e perigosos, mais pesados e mal remunerados
O cuidado com a saúde e com a educação dos filhos
são outros fatores decisivos para trocar o campo pela cidade. Primeiro, vem a
tentativa de buscar a cidade média mais próxima, onde em geral as coisas já são
um pouco mais avançadas quanto ao ensino primário e secundário. Depois, porém,
com a chegada dos estudos superiores e com melhores meios de formação
sanitária, a tendência é a migração para a capital do próprio estado. Num
terceiro momento, soará a hora de viajar para o sudeste do Brasil, São Paulo ou
Rio de Janeiro, onde é mais fácil o acesso à saúde e à educação e onde costumam
aparecer distintas e melhores oportunidades de trabalho. Convém ter presente
que a dinâmica desse tipo de migração cresce na proporção direta das visitas
daqueles que já têm alguma experiência da “cidade grande”, bem como com a
revolução dos meios de transporte e da informática. A telefonia celular e o
barateamento das passagens de avião exercem aí não pouca influência.
Nos dias que correm, aumentam progressivamente os
fugitivos das grandes estiagens, das inundações, dos furacões ou de outras
catástrofes climáticas. A ONU já fala em milhões de “refugiados climáticos” em
todo mundo. Muitos deles sequer ultrapassam as fronteiras do país. Apenas
escapam de regiões atingidas e inóspitas para outras localidades menos sujeitas
a tais fenômenos extremados. Neste ponto não há como esquecer atualmente as
teorias sobre a devastação do meio ambiente, sobre a contaminação do ar e das
águas, sobre a desertificação do solo e sobre o aquecimento global. A respeito
dos efeitos nocivos de tais excessos, os movimentos ambientalistas e numerosos
cientistas nos têm alertado com frequência.
Num país como o Brasil (e poderíamos incluir uma
série de outros países da América Latina e Caribe), constatamos a
desterritorialização crescente dos povos indígenas, por exemplo, como nos
estados de MS, MT, PA, PR, RR, RO, AM e, mais perto de nós, no vale do Ribeira,
em SP. Em circunstâncias diferentes e ao mesmo tempo similares, verifica-se o
que o sociólogo argeliano Abdemalek Sayad chama de dupla ausência: ao perder a terra, esses povos perdem igualmente
sua identidade de indígenas, tornando-se “ausentes” em suas próprias aldeias;
por outro lado, nas cidades para onde se deslocam, ao tentar entrar no mercado
de trabalho, são considerados cidadãos de segunda ordem, “ausentes” portanto da
sociedade urbana (SAYAD, Abdemalek, A
imigração e os paradoxos da alteridade, São Paulo, Edusp, 1998).
A isso se junta a indiferença e o descaso das
autoridades não só em relação aos primeiros habitantes do continente, mas
também em relação aos descendentes dos escravos africanos, às comunidades
quilombolas e às populações ribeirinhas da região Norte. O agronegócio e a
pecuária, o fogo e o garimpo descontrolados contribuem de forma decisiva, seja
para a dizimação desses povos vulneráveis, seja para a extinção de numerosas
espécies de fauna e flora. Não custa lembrar que, a cada espécie de planta ou
de animal que desaparece da face da terra, diminui sensivelmente a qualidade
humana de vida em geral, e da vida humana em particular.
O Brasil é também lugar de origem para o tráfico
de crianças, adolescentes e jovens (meninos e meninas), em vista da exploração
trabalhista ou sexual. O crime organizado em termos globais, além de faturar alto
com drogas, armas e outras mercadorias, tem no tráfico de seres humanos e de
órgãos uma das maiores fontes de renda. Antes de saírem do país, as suas
vítimas costumam serem deslocadas de um estado para outro, ou entre as regiões.
Os serviços análogos ao trabalho escravo costumam contar não apenas com pessoas
adultas, mas também com crianças de ambos os sexos (carvoarias, desbravamento, colheitas,
quebradeiras de coco, marisqueiras...).
O conceito de “desplazados” internos está ligado
à atuação da guerrilha, de modo especial em países como Colômbia (tempo das
FRAC) ou no Peru (tempo do Sendeiro Luminoso). Mas não seria exagero falar de
deslocados internos no caso da violência urbana em cidades como Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Vitória, entre outras capitais.
Uma vez mais, os componentes do crime organizado forçam a saída de muitas
famílias de favelas e periferias, para evitar tanto o recrutamento de seus
filhos, quanto a retaliação por não seguirem as ordens do crime. Onde o Estado
se faz ausente, predomina o crime organizado, com sua força violenta e
implacável, a qual não hesita em assustar, matar e pôr em fuga.
Merece um parágrafo particular a situação dos
nômades e/o ciganos. Trabalham em geral como circenses ou parquistas,
transportando suas tendas, seus pertences e seus artistas populares, às vezes
seus animais de acordo com as necessidades do trabalho. Em não poucos casos,
tropeçam com resistência, o preconceito e a discriminação. E essa rejeição não
se deve apenas às autoridades constituídas, mas até mesmo à população em geral,
como também aos mais diversos setores da sociedade civil. Não são todas Igrejas,
dioceses, paróquias e comunidades, por exemplo, que os recebem de braços
abertos.
Temos de
incluir, ainda, a "migração pendular", ou seja, o deslocamento
diário, ida-e-volta, em razão do trabalho, o que ocorre particularmente nas
grandes metrópoles, através de vários meios de transporte. Num país continental
como o Brasil, não podemos esquecer os técnicos e especialistas de grandes
empresas, que vão trabalhar em outro estado, como também os missionários (as),
os militares, os médicos, os aeroviários, os turistas e os trabalhadores
ligados ao mundo do turismo, os motoristas de caminhão e de ônibus, enfim a
migração devida a determinadas profissões.
Conclusão
Com raras exceções, não é difícil retornar ao
título. Os migrantes internos na trajetória brasileira, ao lado de uma multidão
de outros rostos empobrecidos e vulnerabilizados, representam, sim, “os
condenados da terra”. Condenados ao deslocamento compulsório, mas também à
Senzala, à moradia pobre e precária. Enquanto aos habitantes da Casa Grande
estão reservados os privilégios e os benesses intocáveis, aos moradores da
Senzala cabem as migalhas, os favores. E estes últimos são sempre provisórios e
eventuais. No fundo, estão sujeitos ao humor do senhor de plantão. Quando o
humor azeda, os favores se convertem em chicote, em tronco, em polícia ou em
exército.
Historicamente, e até os dias atuais, sempre e
quando os moradores da Senzala tentaram transformar os “favores provisórios” em
“direitos adquiridos”, tiveram de enfrentar as forças da ordem: capatazes,
jagunços, policiais, soldados. George Floyd, o afra-americano barbaramente
assassinado nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020, constitui o ícone mais
recente dessa cadeia de escravidão, seguida de estigmatização e discriminação
racial. Mas o “Floyd” brasileiro, digamos assim, chama-se João Pedro, jovem de
14 anos morto em maio de 2020, numa operação policial, no Rio de Janeiro. Não
faltam outros jovens e adolescentes, tanto lá quanto cá. Os condenados da
terra, em todo mundo, há tempo perderam suas raízes originais, errando hoje
daqui para ali ao sabor dos ventos e das sobras do capital.
Em conclusão, daria para afirmar que em décadas
anteriores, no decorrer do século XX, a migração interna representava, em boa
medida, uma forma de ascensão social. Vinha o pai ou o irmão mais velho que,
pouco a pouco, chamava o restante da família. E esta, a duras provas, conseguia
muitas vezes subir na vida e se reestabelecer. Hoje em dia essa possibilidade
se tornou bem mais difícil e complexa. Diminuíram consideravelmente as
oportunidades num mercado simultaneamente exigente e saturado. Com o tempo,
então, migrar passa a ser uma queda ladeira abaixo, com exceções de sucesso
cada vez mais raras. Para a
Pastoral Migratória e para os próprios migrantes, fica o gigantesco desafio de
transformar toda fuga em uma nova busca. E cada busca representa uma etapa que
nos aproxima da pátria definitiva, ao mesmo tempo pré-anúncio e antecipação do
Reino de Deus.
Pe. Alfredo José Gonçalves, cs,
www.miguelimigrante.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário