quinta-feira, 30 de junho de 2016

Simone Judica :Terra de refugiados

                                       
Simone Judica

            O Brasil encanta e atrai pessoas do mundo inteiro por suas belezas naturais e  pela miscigenação de raças e povos que fazem de sua população uma rica, interessante e inigualável mistura de culturas e ancestralidades.

            Em menor escala, São Roque, situada no interior do Estado de São Paulo,  reflete essa característica, pois a população local provém, principalmente, de africanos, indígenas, italianos e portugueses, com pitadas marcantes das presenças árabe, espanhola, japonesa e judaica e de latino-americanos, como argentinos e chilenos, que ao longo de mais de três séculos vêm transformando a cidade em sua nova pátria.

            Os atuais sucesso – profissional, pessoal e comercial – e integração dos imigrantes e seus descendentes às comunidades, seja em São Roque ou outras partes do país, tornam fácil e cômodo olhar para eles com simpatia, orgulho e afeto, sem se lembrar de que sua maioria chegou ao Brasil na condição de refugiados políticos, climáticos e de guerra, em situação precária e não muito distinta daquela que hoje assola sírios e outros povos do Oriente Médio, haitianos e africanos.

            O contínuo cenário belicoso instalado no Oriente Médio, potencializado pela guerra na Síria, iniciada em 2011, o conflito civil que devastou Angola no final do século XX e a expressiva destruição do Haiti após o terremoto que sacudiu o país em 2010, somados a outros problemas que em menor grau vitimam populações de origem africana, árabe e latino americana, são responsáveis por um dado histórico e sociológico alarmante: o mundo contabiliza cerca de sessenta milhões de pessoas fora de seus locais de origem e, desse total, vinte milhões cruzaram fronteiras internacionais em busca de proteção, de modo que hoje se vive o maior êxodo desde aquele provocado pela Segunda Guerra Mundial.

            Esse fato revela o fracasso das nações e da comunidade internacional na missão de manter o mínimo de paz, justiça social e estabilidade econômica que permita às pessoas nada além de exercer o direito de viver em sua própria terra. Conversei sobre o tema deste artigo, em São Roque, com o jornalista Jaime Spitzcovsky, colunista do jornal Folha de S.Paulo, especialista em política internacional e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP, que considera que "o número recorde de refugiados escancara o insucesso da comunidade internacional em estabelecer mecanismos eficazes para prevenir e evitar guerras, um objetivo difícil, mas não impossível".

            O Brasil é um dos países em condições de contribuir para minimizar esse caos, tanto por sua formação multiétnica quanto por sua tradição de acolhimento a  estrangeiros, a quem vem proporcionando, no curso de sua história, inúmeras oportunidades de integração e desenvolvimento. Para alcançar esse resultado, governos e  população precisam agir em sintonia.

É certo que acolher refugiados e com eles dividir espaço, alimentação, abrigo, vagas nos sistemas públicos de educação e saúde e empregos implica atingir um nível muito elevado de solidariedade e responsabilidade social, em regra ausente onde os recursos econômicos abundam ou as crises econômicas imperam.

É preciso compreender que essa gente não pode ser confundida com terroristas, bandidos e oportunistas que se deslocam a outros países para cometer crimes e subtrair vagas de trabalho e atendimento social e de saúde dos nacionais. São pessoas que levavam uma vida normal, porém em extrema situação de vulnerabilidade e assim merecedoras do mesmo tratamento respeitoso, digno e solidário que deve ser dispensado a qualquer ser humano injustamente privado de abrigo, alimento, segurança, liberdades política e religiosa e paz.

Os refugiados não abandonam sua terra, suas propriedades, famílias e cultura porque assim desejaram e planejaram. Em todos eles há um pesar, um anseio por encontrar acolhimento em uma nova pátria e um sonho de retornar às suas origens.

“Ninguém nasce refugiado ou migrante, mas essa condição é imposta às pessoas, que chegam aos países acolhedores traumatizadas pelo impacto das guerras ou catástrofes naturais e pelo sofrimento das caminhadas e travessias. Eles têm dificuldades de comunicação e adaptação, sentem-se discriminados e têm uma expressão de medo e incerteza no olhar. Não se pode virar as costas para eles e ignorar sua dor”, afirma Miguel Ahumada, chileno residente em São Roque que mantém contato pessoal com refugiados, em razão de seu trabalho como membro da diretoria do Serviço Pastoral do Migrante e do setor de comunicação da Missão Paz, entidades religiosas de ajuda a migrantes e refugiados, ambos na cidade de São Paulo.

Apesar da necessidade de uma atitude positiva na recepção aos refugiados, o governo interino brasileiro, numa postura lamentável, nos últimos dias suspendeu negociações que mantinha com a União Europeia para receber famílias desalojadas pela guerra civil na Síria e recursos estrangeiros para alojar cerca de cem mil pessoas que fugiram desse conflito. Com isso, o Brasil, que desenvolvia uma política humanitária festejada pela ONU e outras organizações voltadas à proteção às vítimas de combates e catástrofes, rompeu uma tradição que nos últimos anos fez do país uma referência internacional no tratamento e no acolhimento a refugiados.

            O Brasil é uma terra de refugiados. O brasileiro – e assim o são-roquense - que carrega na bagagem de sua família um episódio de migração em busca de melhores condições de vida e rejeita os refugiados nega sua própria origem e envergonha-se do passado de seus ancestrais.


Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do jornal O Democrata, de São Roque – SP (simonejudica@gmail.com).

www.miguelimigrante.blogspot.com

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