Simone Judica
O Brasil encanta e atrai pessoas do mundo inteiro por suas belezas
naturais e pela miscigenação de raças e povos que fazem de sua
população uma rica, interessante e inigualável mistura de culturas e
ancestralidades.
Em
menor escala, São Roque, situada no interior do Estado de São Paulo, reflete
essa característica, pois a população local provém, principalmente, de
africanos, indígenas, italianos e portugueses, com pitadas marcantes das
presenças árabe, espanhola, japonesa e judaica e de latino-americanos, como
argentinos e chilenos, que ao longo de mais de três séculos vêm transformando a
cidade em sua nova pátria.
Os
atuais sucesso – profissional, pessoal e comercial – e integração dos
imigrantes e seus descendentes às comunidades, seja em São Roque ou outras
partes do país, tornam fácil e cômodo olhar para eles com simpatia, orgulho e
afeto, sem se lembrar de que sua maioria chegou ao Brasil na condição de
refugiados políticos, climáticos e de guerra, em situação precária e não muito
distinta daquela que hoje assola sírios e outros povos do Oriente Médio,
haitianos e africanos.
O
contínuo cenário belicoso instalado no Oriente Médio, potencializado pela
guerra na Síria, iniciada em 2011, o conflito civil que devastou Angola no
final do século XX e a expressiva destruição do Haiti após o terremoto que
sacudiu o país em 2010, somados a outros problemas que em menor grau vitimam
populações de origem africana, árabe e latino americana, são responsáveis por
um dado histórico e sociológico alarmante: o mundo contabiliza cerca de
sessenta milhões de pessoas fora de seus locais de origem e, desse total, vinte
milhões cruzaram fronteiras internacionais em busca de proteção, de modo que
hoje se vive o maior êxodo desde aquele provocado pela Segunda Guerra Mundial.
Esse
fato revela o fracasso das nações e da comunidade internacional na missão de
manter o mínimo de paz, justiça social e estabilidade econômica que permita às
pessoas nada além de exercer o direito de viver em sua própria terra. Conversei
sobre o tema deste artigo, em São Roque, com o jornalista Jaime Spitzcovsky,
colunista do jornal Folha de S.Paulo, especialista em política internacional e
membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP, que considera
que "o número recorde de refugiados escancara o insucesso da
comunidade internacional em estabelecer mecanismos eficazes para prevenir e
evitar guerras, um objetivo difícil, mas não impossível".
O
Brasil é um dos países em condições de contribuir para minimizar esse caos,
tanto por sua formação multiétnica quanto por sua tradição de acolhimento a estrangeiros,
a quem vem proporcionando, no curso de sua história, inúmeras oportunidades de
integração e desenvolvimento. Para alcançar esse resultado, governos e população
precisam agir em sintonia.
É certo que acolher refugiados e com
eles dividir espaço, alimentação, abrigo, vagas nos sistemas públicos de
educação e saúde e empregos implica atingir um nível muito elevado de
solidariedade e responsabilidade social, em regra ausente onde os recursos
econômicos abundam ou as crises econômicas imperam.
É preciso compreender que essa gente
não pode ser confundida com terroristas, bandidos e oportunistas que se
deslocam a outros países para cometer crimes e subtrair vagas de trabalho e
atendimento social e de saúde dos nacionais. São pessoas que levavam uma vida
normal, porém em extrema situação de vulnerabilidade e assim merecedoras do
mesmo tratamento respeitoso, digno e solidário que deve ser dispensado a
qualquer ser humano injustamente privado de abrigo, alimento, segurança,
liberdades política e religiosa e paz.
Os refugiados não abandonam sua terra,
suas propriedades, famílias e cultura porque assim desejaram e planejaram. Em
todos eles há um pesar, um anseio por encontrar acolhimento em uma nova pátria
e um sonho de retornar às suas origens.
“Ninguém nasce refugiado ou migrante,
mas essa condição é imposta às pessoas, que chegam aos países acolhedores
traumatizadas pelo impacto das guerras ou catástrofes naturais e pelo
sofrimento das caminhadas e travessias. Eles têm dificuldades de comunicação e
adaptação, sentem-se discriminados e têm uma expressão de medo e incerteza no
olhar. Não se pode virar as costas para eles e ignorar sua dor”, afirma Miguel
Ahumada, chileno residente em São Roque que mantém contato pessoal com
refugiados, em razão de seu trabalho como membro da diretoria do Serviço
Pastoral do Migrante e do setor de comunicação da Missão Paz, entidades religiosas
de ajuda a migrantes e refugiados, ambos na cidade de São Paulo.
Apesar da necessidade de uma atitude
positiva na recepção aos refugiados, o governo interino brasileiro, numa
postura lamentável, nos últimos dias suspendeu negociações que mantinha com a
União Europeia para receber famílias desalojadas pela guerra civil na Síria e
recursos estrangeiros para alojar cerca de cem mil pessoas que fugiram desse
conflito. Com isso, o Brasil, que desenvolvia uma política humanitária
festejada pela ONU e outras organizações voltadas à proteção às vítimas de
combates e catástrofes, rompeu uma tradição que nos últimos anos fez do país
uma referência internacional no tratamento e no acolhimento a refugiados.
O
Brasil é uma terra de refugiados. O brasileiro – e assim o são-roquense - que
carrega na bagagem de sua família um episódio de migração em busca de melhores
condições de vida e rejeita os refugiados nega sua própria origem e
envergonha-se do passado de seus ancestrais.
Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do jornal O Democrata,
de São Roque – SP (simonejudica@gmail.com).
www.miguelimigrante.blogspot.com
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