sábado, 11 de setembro de 2021

A indústria humanitária e os migrantes no limbo

 



No último dia de agosto do corrente ano, o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF) formou mais dois mestres com relevantes pesquisas na área das migrações.

A primeira dissertação defendida, de autoria do agora Mestre Marcelo Antônio Lemos, goiano de nascimento, filósofo, agente humanitário no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, orientado pela professora doutora Francilene dos Santos Rodrigues, uma referência nos estudos migratórios e fronteiriços na Amazônia, trouxe como título uma provocação filosófica: ‘abjetivação da hospitalidade: profissionais e experiências de proteção e assistência humanitária em contexto de deslocamento’. 

Após dois longos anos de pesquisa, o estudioso apresenta para o debate o tema da “impulsão do humanitarismo em contextos de deslocamentos e a atuação de profissionais e suas experiências de proteção e assistência humanitária na Amazônia, numa abordagem do fenômeno do abjeto e da abjetivação da hospitalidade”.

O estudo analisa a atuação dos múltiplos atores institucionais, o Estado, a sociedade civil e as agências do Sistema ONU (Agências vinculadas à Organização das Nações Unidas) e questiona criticamente a resposta humanitária realizada, à modelagem desse profissionalismo humanitarista”. Desta forma, o pesquisador conclui que a assistência aos migrantes e refugiados se configura como uma verdadeira indústria do humanitarismo que adota um perfil de agente humanitário caracterizado pela exaustão do trabalho e dominado pelo “horror e sofrimento” compartilhados com os destinatários do seu trabalho.

De modo geral, as agências do Sistema ONU criaram um perfil de agente humanitário distante do contexto migratório em questão, e alerta que “ainda não se conhecem os logros exatos resultantes dessa indústria do humanitário instalada em Roraima. Porém, a pesquisa assinalou a abundância de profissionais e especialidades. Sendo uma delas o especialista em interiorização, em estreita colaboração com os militares brasileiros. É preciso, para concluir a caracterização do ciclo da institucionalização humanitária, citar as condições do espaço laboral e da restituição financeira dos humanitaristas profissionalizados, e oferecer dados sobre a gestão de casos de violência, abusos e assédios” vivenciados por agentes humanitários que lidam diariamente com o “horror e desgraças” compartilhados pelos migrantes e refugiados em condições de vulnerabilidade social e econômica.

Para o pesquisador, “o ponto nevrálgico da pesquisa foi situar o modo de ser do nacional brasileiro com o aparato industrial humanitário e sua hospitalidade e o fenômeno da abjetivação humanitária”. Diante disso, Marcelo conclui que “a atividade humanitária é cansativa, mas, a experiência-sentido a quem servirá? Terá alguma utilidade? Mudará alguma coisa? Poderá servir de referência em algum momento”?

A resposta é “não. Elas podem se cruzar em linhas de vidas de outras vidas, construir prospectos à mesa diante de várias experiências-sentido de eclodir até mesmo em tratados e políticas de integração, acolhida e quem saber daquela cidadania global. Mas ainda assim não serão úteis por muito tempo, porque unívocas elas precisam de novo serem revisitadas, trazidas à tona com um olhar na experiência vivida no presente, e ousar uma prática humanitária da hospitalidade da consideração até o seu mais alto grau humanizante”.

E estudo aborda muitos outros aspectos envolvidos no trabalho humanitarista e suas reconfigurações no Brasil, e de modo especial na Amazônia. Representa uma importante orientação para o trabalho humanitário e ao mesmo tempo, uma importante crítica ao humanitarismo superficial e vazio de sentidos.

A segunda dissertação intitulada ‘Status legal e condicionalidade no acesso a direitos para venezuelanos solicitantes de refúgio e residentes temporários no Brasil’ foi apresentada pela internacionalista Militza Zulimar Pérez Velásquez, estudante venezuelana. Orientada pelo professor doutor João Carlos Jarochinski Silva, outro importante expoente dos estudos migratórios na Amazônia, a dissertação versa sobre a complexa questão da documentação dos migrantes e refugiados num processo de adequação à Nova Lei de Migrações (Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017) e num contexto das emergências humanitárias.

 De acordo com a pesquisadora, “a migração internacional continua como um processo crescente na América Latina. A diversificação do número de países de origem e destino revela as novas dinâmicas de circulação, que respondem entre outros fatores, à proximidade geográfica e à identidade cultural. Tanto a Organização Internacional para as Migrações (OIM) quanto a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), informam que a saída de venezuelanos de seu território assumiu dimensões que define uma das maiores mobilidades humanas nos últimos anos, resultado de uma deterioração política, económica e social grave e generalizada”.

Ao mesmo tempo, a pesquisadora observa como o “Brasil como país de destino enfrenta grandes desafios num processo que envolve uma gestão migratória no marco do respeito aos Direitos Humanos”. Nessa perspectiva, define as migração venezuelana como “mobilidade de sobrevivência podem ser mais bem compreendidas a partir de uma caracterização de origem, que na atualidade não se reflete nas categorias e gestão para a regularização migratória e não responderia a uma situação de vulnerabilidade, produto de um deslocamento forçado que precisa de proteção específica”. Dessa forma, insiste num atendimento humanitário de emergência e, ao mesmo tempo, em políticas púbicas migratórias que deem suporte para a permanência e integração dos migrantes à sociedade de destino.

A pesquisadora se fundamentou em estudo bibliográfico e revisão documental-normativa, com informações geradas pelos órgãos governamentais brasileiros responsáveis pela administração do acolhimento e documentação dos migrantes e solicitantes de refúgio. Também desenvolveu pesquisa de campo com entrevistas que lhe permitiram conhecer as experiencias dos venezuelanos em situação de migração no Brasil.

A mais nova mestra em Sociedade e Fronteiras conclui que os processos de acolhimento e documentação dos migrantes ainda se esbarram em muitos condicionantes pautados na  “antiga noção de soberania da Lei de Segurança Nacional, que ainda permeiam as agendas institucionais oficiais sobre migração, com resposta desenhadas no âmbito da segurança e do controle, contrapondo a imagem de um país que garante direitos, acolhedor e humanitário, como se apresenta no contexto internacional”.

Sobre o tema da “mobilidade de sobrevivência”, a pesquisadora informa que “pode ser melhor compreendida a partir de uma caracterização de origem, com o respectivo marco normativo, que tristemente na atualidade não se reflete nas categorias de solicitante de refúgio e residente temporário, assim como na gestão para a regularização migratória e, adicionalmente, não responderia a uma situação de vulnerabilidade, produto de um deslocamento forçado que precisa de proteção específica”.

Recorda ainda que “novos desafios foram adicionados aos já existentes, impostos pela pandemia da Covid-19, aos imigrantes, o que evidenciou e aprofundou a precarização das condições de sobrevivência. Para os venezuelanos, as formas de status legal para o ingresso e permanência na sociedade brasileira, esbarra em entraves legais que precisam ser superados urgentemente”.

Ambos os pesquisadores recordaram, na apresentação de suas respectivas dissertações, os sofrimentos que os migrantes enfrentam no traslado para o Brasil. A grande maioria viaja com pouco dinheiro e poucos pertences. Se submetem a caminhadas que beiram a 500 quilômetros sob sol e chuva, com frio ou com sol ardente sobre seus corpos nas estradas e “trochas” (caminhos irregulares) por onde passam às escondidas, escoltados por usurpadores que lhes cobram altas taxas para ultrapassar as fronteiras.

Em solo brasileiro, os migrantes continuam a saga pela sobrevivência. Enfrentam diversas dificuldades e condicionantes como ficar dias ou semanas na fila à espera da vez para solicitar documentação na fronteira e seguir viagem. Esbarram com a fome e a miséria em toda esquina, entraves para reconhecimento de documentos e diplomas, o que dificulta o ingresso no mercado de trabalho. Lidam com a limitação da língua e ao mesmo tempo que contam com acolhimento e solidariedade de muitas pessoas, precisam lidar com hostilidade, xenofobia de outras. Em meio a tudo isso, esbarra ainda com um sistema de controle e relações de dominação nos espaços de abrigamento e documentação.

As duas dissertações estarão em breve disponíveis para download gratuitamente na página do PPGSOF (www.ppgsof.br). Aos novos mestres(as) e seus(as) orientadores(as) as felicitações pela relevância de seus estudos que representam importantes contribuições para a formação do conhecimento interdisciplinar na Amazônia transfronteiriça e para ampliar o alcance dos estudos migratórios nessa região.


*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia,

Amazona atual 

www.miguelimigrante.blogspot.com

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