No último dia de agosto do corrente ano, o Programa de Pós-Graduação em
Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF) formou mais
dois mestres com relevantes pesquisas na área das migrações.
A primeira dissertação defendida, de autoria do agora Mestre Marcelo Antônio Lemos, goiano de nascimento, filósofo, agente humanitário no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, orientado pela professora doutora Francilene dos Santos Rodrigues, uma referência nos estudos migratórios e fronteiriços na Amazônia, trouxe como título uma provocação filosófica: ‘abjetivação da hospitalidade: profissionais e experiências de proteção e assistência humanitária em contexto de deslocamento’.
Após dois longos anos de pesquisa, o
estudioso apresenta para o debate o tema da “impulsão do humanitarismo em
contextos de deslocamentos e a atuação de profissionais e suas experiências de
proteção e assistência humanitária na Amazônia, numa abordagem
do fenômeno do abjeto e da abjetivação da hospitalidade”.
O estudo analisa a atuação dos múltiplos atores institucionais, o
Estado, a sociedade civil e as agências do Sistema ONU (Agências vinculadas à
Organização das Nações Unidas) e questiona criticamente a resposta humanitária
realizada, à modelagem desse profissionalismo humanitarista”. Desta forma, o
pesquisador conclui que a assistência aos migrantes e refugiados se configura
como uma verdadeira indústria do humanitarismo que adota um perfil de agente
humanitário caracterizado pela exaustão do trabalho e dominado pelo “horror e
sofrimento” compartilhados com os destinatários do seu trabalho.
De modo geral, as agências do Sistema ONU criaram um perfil de agente
humanitário distante do contexto migratório em questão, e alerta que “ainda não
se conhecem os logros exatos resultantes dessa indústria do humanitário
instalada em Roraima. Porém, a pesquisa assinalou a abundância de profissionais
e especialidades. Sendo uma delas o especialista em interiorização, em estreita
colaboração com os militares brasileiros. É preciso, para concluir a
caracterização do ciclo da institucionalização humanitária, citar as condições
do espaço laboral e da restituição financeira dos humanitaristas profissionalizados,
e oferecer dados sobre a gestão de casos de violência, abusos e assédios”
vivenciados por agentes humanitários que lidam diariamente com o “horror e
desgraças” compartilhados pelos migrantes e refugiados em condições de
vulnerabilidade social e econômica.
Para o pesquisador, “o ponto nevrálgico da pesquisa foi situar o modo de
ser do nacional brasileiro com o aparato industrial humanitário e sua
hospitalidade e o fenômeno da abjetivação humanitária”. Diante disso, Marcelo
conclui que “a atividade humanitária é cansativa, mas, a experiência-sentido a
quem servirá? Terá alguma utilidade? Mudará alguma coisa? Poderá servir de
referência em algum momento”?
A resposta é “não. Elas podem se cruzar em linhas de vidas de outras
vidas, construir prospectos à mesa diante de várias experiências-sentido de
eclodir até mesmo em tratados e políticas de integração, acolhida e quem saber
daquela cidadania global. Mas ainda assim não serão úteis por muito tempo,
porque unívocas elas precisam de novo serem revisitadas, trazidas à tona com um
olhar na experiência vivida no presente, e ousar uma prática humanitária da
hospitalidade da consideração até o seu mais alto grau humanizante”.
E estudo aborda muitos outros aspectos envolvidos no trabalho humanitarista e suas reconfigurações no Brasil, e de modo especial na Amazônia. Representa uma importante orientação para o trabalho humanitário e ao mesmo tempo, uma importante crítica ao humanitarismo superficial e vazio de sentidos.
A segunda dissertação intitulada ‘Status legal e condicionalidade no acesso a direitos para venezuelanos solicitantes de refúgio e residentes temporários no Brasil’ foi apresentada pela internacionalista Militza Zulimar Pérez Velásquez, estudante venezuelana. Orientada pelo professor doutor João Carlos Jarochinski Silva, outro importante expoente dos estudos migratórios na Amazônia, a dissertação versa sobre a complexa questão da documentação dos migrantes e refugiados num processo de adequação à Nova Lei de Migrações (Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017) e num contexto das emergências humanitárias.
De acordo com a pesquisadora, “a migração internacional continua
como um processo crescente na América Latina. A diversificação do número de
países de origem e destino revela as novas dinâmicas de circulação, que
respondem entre outros fatores, à proximidade geográfica e à identidade
cultural. Tanto a Organização Internacional para as Migrações (OIM) quanto a
Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), informam que
a saída de venezuelanos de seu território assumiu dimensões que define uma das
maiores mobilidades humanas nos últimos anos, resultado de uma deterioração
política, económica e social grave e generalizada”.
Ao mesmo tempo, a pesquisadora observa como o “Brasil como país de
destino enfrenta grandes desafios num processo que envolve uma gestão
migratória no marco do respeito aos Direitos Humanos”. Nessa perspectiva,
define as migração venezuelana como “mobilidade de sobrevivência podem ser mais
bem compreendidas a partir de uma caracterização de origem, que na atualidade
não se reflete nas categorias e gestão para a regularização migratória e não
responderia a uma situação de vulnerabilidade, produto de um deslocamento
forçado que precisa de proteção específica”. Dessa forma, insiste num
atendimento humanitário de emergência e, ao mesmo tempo, em políticas púbicas
migratórias que deem suporte para a permanência e integração dos migrantes à
sociedade de destino.
A pesquisadora se fundamentou em estudo bibliográfico e revisão
documental-normativa, com informações geradas pelos órgãos governamentais
brasileiros responsáveis pela administração do acolhimento e documentação dos
migrantes e solicitantes de refúgio. Também desenvolveu pesquisa de campo com
entrevistas que lhe permitiram conhecer as experiencias dos venezuelanos em
situação de migração no Brasil.
A mais nova mestra em Sociedade e Fronteiras conclui que os processos de
acolhimento e documentação dos migrantes ainda se esbarram em muitos
condicionantes pautados na “antiga noção de soberania da Lei de Segurança
Nacional, que ainda permeiam as agendas institucionais oficiais sobre migração,
com resposta desenhadas no âmbito da segurança e do controle, contrapondo a
imagem de um país que garante direitos, acolhedor e humanitário, como se
apresenta no contexto internacional”.
Sobre o tema da “mobilidade de sobrevivência”, a pesquisadora informa
que “pode ser melhor compreendida a partir de uma caracterização de origem, com
o respectivo marco normativo, que tristemente na atualidade não se reflete nas
categorias de solicitante de refúgio e residente temporário, assim como na
gestão para a regularização migratória e, adicionalmente, não responderia a uma
situação de vulnerabilidade, produto de um deslocamento forçado que precisa de
proteção específica”.
Recorda ainda que “novos desafios foram adicionados aos já existentes,
impostos pela pandemia da Covid-19, aos imigrantes, o que evidenciou e
aprofundou a precarização das condições de sobrevivência. Para os venezuelanos,
as formas de status legal para o ingresso e permanência na sociedade
brasileira, esbarra em entraves legais que precisam ser superados urgentemente”.
Ambos os pesquisadores recordaram, na apresentação de suas respectivas
dissertações, os sofrimentos que os migrantes enfrentam no traslado para o
Brasil. A grande maioria viaja com pouco dinheiro e poucos pertences. Se
submetem a caminhadas que beiram a 500 quilômetros sob sol e chuva, com frio ou
com sol ardente sobre seus corpos nas estradas e “trochas” (caminhos
irregulares) por onde passam às escondidas, escoltados por usurpadores que lhes
cobram altas taxas para ultrapassar as fronteiras.
Em solo brasileiro, os migrantes continuam a saga pela sobrevivência.
Enfrentam diversas dificuldades e condicionantes como ficar dias ou semanas na
fila à espera da vez para solicitar documentação na fronteira e seguir viagem.
Esbarram com a fome e a miséria em toda esquina, entraves para reconhecimento
de documentos e diplomas, o que dificulta o ingresso no mercado de trabalho.
Lidam com a limitação da língua e ao mesmo tempo que contam com acolhimento e
solidariedade de muitas pessoas, precisam lidar com hostilidade, xenofobia de
outras. Em meio a tudo isso, esbarra ainda com um sistema de controle e
relações de dominação nos espaços de abrigamento e documentação.
As duas dissertações estarão em breve
disponíveis para download gratuitamente na página do PPGSOF (www.ppgsof.br). Aos novos mestres(as) e seus(as)
orientadores(as) as felicitações pela relevância de seus estudos que
representam importantes contribuições para a formação do conhecimento
interdisciplinar na Amazônia transfronteiriça
e para ampliar o alcance dos estudos migratórios nessa região.
*Marcia Oliveira é doutora em
Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM),
com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e
Cultura na Amazônia,
Amazona atual
www.miguelimigrante.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário