Em nome da razão e de uma
pretensa liberdade sem regras nem freios, “a modernidade empregou uma grande
parte de seu tempo e muita energia a combater a comunidade”, afirma Bauman (Cfr.
Zygmunt Bauman, La vie en miettes-experiénce
postmoderne et moralité, Librairie Arthème Fayard/Pluriel, Paris, 2014, pág.
372). Da mesma forma que outras formas pré-modernas de relações humanas, a
comunidade entrava na lista dos resíduos tradicionais a serem extirpados. Além
de ser vista como lugar de pressão e não raro de escravidão, impedia o
intercâmbio sem fronteiras do liberalismo político e econômico. O mesmo pode-se
afirmar com respeito a determinados formas de relacionamentos familar e de
parentesco. Entretanto, com o advento da chamada pós-modernidade (ou
modernidade tardia), numerosas referências com seus laços sólidos e
orientadores “se desmancham no ar” ou “se liquidificam”, para usar respectivamente
a frase do Manifesto Comunista ou a metáfora do próprio Bauman. O autor
constata:
“Nós provamos com
frequência uma irresistível ‘necessidade de pertença’ – uma necessidade de
identificar-se não somente como seres humanos individuais, mas também como
membros de uma identidade maior. Essa identificação por adesão deve fornecer,
espera-se, o fundamento sólido sobre a qual construir uma identidade menor e
mais frágil. Na medida em que estão em ruínas certas identidades antigas e
sólidas, as quais garantiam e apoiavam as identidades individuais, enquanto
outras perdem rapidamente o seu poder de força, verifica-se uma demanda por
novas identidades, aptas a promover julgamentos firmes e com autoritdade” (idem,
pág. 372).
Isso explica uma atitude
negativa quanto a um certo fanatismo, mas, ao mesmo tempo confirma a valor da
Vida Regiosa Consagrada (VRC) em um tempo desprovido de referências firmemente
ancoradas. O fanatismo já é bem conhecido e notório. Nasce de uma leitura
fatalista e fundamentalista da história para defender-se contra a sensação,
real ou aparente, do caos e do medo, da desordem e do anonimato. Em sua raiz
mais profunda está a busca ansiosa de uma nova ordem estabelecida, o que traz
abrigo, proteção e segurança para quem em meio à tempestade não dispõe de
bússula. Numerosos movimentos políticos, ideológicos ou religiosos emergem com
essa marca registrada. Prova disso é o uso exagerado e doentio de um uniforme
como símbolo de identidade. Como se a modo de vestir-se dividisse a sociedade
em “bons” e “maus”, “nós” e “eles”, “convertidos” e “não convertidos” ou ainda
“salvos” e “condenados”. No fundo, todo o fundamentalismo – novamente de
caráter político, ideológico ou religioso – costuma apresentar-se com os olhos
e a língua inflamados, o que tem varrido a história de violência, tragédia e
morte.
No caso da VRC, a sensação de
caos e de desordem procura defender-se não tanto através de uma segurança
imediata e quase que mágica. Sem dúvida,
é preciso reconhecer que tudo o que debatemos no parágrafo anterior pode surgir
(e efetivamente tem surgido) no interior da Vida Religiosa. Basta ver o retorno
do hábito e de certos hábitos, da rigidez dos ritos, da solenidade afetada e
ostensiva, do formalismo aparente e de outras exterioridades estéreis e
suspeitas. Mas neste caso trata-se de um claro desvio. De fato, a razão de ser
das diversas formas de VRC não está nas aparências, e sim na centralidade e no
seguimento de Jesus Cristo, no cultivo de um carisma específico e na
importância da vida comunitária. Sua identidade mergulha as raízes na Boa Nova
do Evangelho, na herança do/a Fundador/a e na vida em comum.
O reencontro com a comunidade,
enquanto forma de identidade primordial e de pertença familiar, aliado ao
cuidado da mística e da missão, consiste hoje em dia numa referência sólida,
que pode garantir e renovar as energias. Família e comunidade são terrenos
férteis para reacender a chama da fé, da esperança e da utopia. Essa relações
interpessoais formam a base para combater o vírus da apatia, do desinteresse e
do desencanto que dominam as pessoas e a própria ação social e política. Ou
para passar da “globalização da indiferença à cultura da solidariedade”, diria
o Papa Francisco. Não se trata de vestir um uniforme vistoso e com tendência crescente
à sofisticação, mas um uniforme revestido de uma profunda opção interior,
iluminado pelo rosto de Deus e tecido com os mesmos fios que tecem a vida dos
pobres e excluídos.
Pe.
Alfredo J. Gonçalves, cs
www.miguelimigrante.blogspot.com
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