sábado, 16 de junho de 2018

QUAL É SEU UNIFORME?


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Em nome da razão e de uma pretensa liberdade sem regras nem freios, “a modernidade empregou uma grande parte de seu tempo e muita energia a combater a comunidade”, afirma Bauman (Cfr. Zygmunt Bauman, La vie en miettes-experiénce postmoderne et moralité, Librairie Arthème Fayard/Pluriel, Paris, 2014, pág. 372). Da mesma forma que outras formas pré-modernas de relações humanas, a comunidade entrava na lista dos resíduos tradicionais a serem extirpados. Além de ser vista como lugar de pressão e não raro de escravidão, impedia o intercâmbio sem fronteiras do liberalismo político e econômico. O mesmo pode-se afirmar com respeito a determinados formas de relacionamentos familar e de parentesco. Entretanto, com o advento da chamada pós-modernidade (ou modernidade tardia), numerosas referências com seus laços sólidos e orientadores “se desmancham no ar” ou “se liquidificam”, para usar respectivamente a frase do Manifesto Comunista ou a metáfora do próprio Bauman. O autor constata:
“Nós provamos com frequência uma irresistível ‘necessidade de pertença’ – uma necessidade de identificar-se não somente como seres humanos individuais, mas também como membros de uma identidade maior. Essa identificação por adesão deve fornecer, espera-se, o fundamento sólido sobre a qual construir uma identidade menor e mais frágil. Na medida em que estão em ruínas certas identidades antigas e sólidas, as quais garantiam e apoiavam as identidades individuais, enquanto outras perdem rapidamente o seu poder de força, verifica-se uma demanda por novas identidades, aptas a promover julgamentos firmes e com autoritdade” (idem, pág. 372).
Isso explica uma atitude negativa quanto a um certo fanatismo, mas, ao mesmo tempo confirma a valor da Vida Regiosa Consagrada (VRC) em um tempo desprovido de referências firmemente ancoradas. O fanatismo já é bem conhecido e notório. Nasce de uma leitura fatalista e fundamentalista da história para defender-se contra a sensação, real ou aparente, do caos e do medo, da desordem e do anonimato. Em sua raiz mais profunda está a busca ansiosa de uma nova ordem estabelecida, o que traz abrigo, proteção e segurança para quem em meio à tempestade não dispõe de bússula. Numerosos movimentos políticos, ideológicos ou religiosos emergem com essa marca registrada. Prova disso é o uso exagerado e doentio de um uniforme como símbolo de identidade. Como se a modo de vestir-se dividisse a sociedade em “bons” e “maus”, “nós” e “eles”, “convertidos” e “não convertidos” ou ainda “salvos” e “condenados”. No fundo, todo o fundamentalismo – novamente de caráter político, ideológico ou religioso – costuma apresentar-se com os olhos e a língua inflamados, o que tem varrido a história de violência, tragédia e morte.
No caso da VRC, a sensação de caos e de desordem procura defender-se não tanto através de uma segurança imediata  e quase que mágica. Sem dúvida, é preciso reconhecer que tudo o que debatemos no parágrafo anterior pode surgir (e efetivamente tem surgido) no interior da Vida Religiosa. Basta ver o retorno do hábito e de certos hábitos, da rigidez dos ritos, da solenidade afetada e ostensiva, do formalismo aparente e de outras exterioridades estéreis e suspeitas. Mas neste caso trata-se de um claro desvio. De fato, a razão de ser das diversas formas de VRC não está nas aparências, e sim na centralidade e no seguimento de Jesus Cristo, no cultivo de um carisma específico e na importância da vida comunitária. Sua identidade mergulha as raízes na Boa Nova do Evangelho, na herança do/a Fundador/a e na vida em comum.
O reencontro com a comunidade, enquanto forma de identidade primordial e de pertença familiar, aliado ao cuidado da mística e da missão, consiste hoje em dia numa referência sólida, que pode garantir e renovar as energias. Família e comunidade são terrenos férteis para reacender a chama da fé, da esperança e da utopia. Essa relações interpessoais formam a base para combater o vírus da apatia, do desinteresse e do desencanto que dominam as pessoas e a própria ação social e política. Ou para passar da “globalização da indiferença à cultura da solidariedade”, diria o Papa Francisco. Não se trata de vestir um uniforme vistoso e com tendência crescente à sofisticação, mas um uniforme revestido de uma profunda opção interior, iluminado pelo rosto de Deus e tecido com os mesmos fios que tecem a vida dos pobres e excluídos.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs 
www.miguelimigrante.blogspot.com

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