segunda-feira, 10 de abril de 2023

Refugiados recuperam suas narrativas com mídias próprias




Quando um grande incêndio tomou conta do campo de refugiados do povo rohingya em Cox’s Bazar, Bangladesh, no início de março, o Voice of Palong (VoP) não precisou mandar uma equipe de longe. Já instalada no campo de refugiados de Kutupalong, a equipe do VoP fez a cobertura sobre o desastre direto do local e compartilhou suas filmagens com canais de notícias de Bangladesh.    

O programa de rádio comunitário semanal, transmitido de dentro do que é o maior campo de refugiados do mundo com aproximadamente 1 milhão de pessoas, é produzido conjuntamente no idioma rohingya por refugiados rohingya e a comunidade de Bangladesh que os recebe, com apoio da DW Akademie e do parceiro local Young Power in Social Action (YPSA).

Awaz-e-Dosti, programa de rádio transmitido por refugiados afegãos no Paquistão, também é uma iniciativa conjunta feita por refugiados e uma comunidade local de acolhimento. Produzido em persa, pashto e dari, tem audiência no Afeganistão, Paquistão e em outros países, de acordo com Fakhira Najib, diretora técnica da Power99 Foundation, que ajudou a lançar o programa em colaboração com a DW Akademie.

Essas iniciativas de mídia estão causando uma disrupção nas hierarquias tradicionais da mídia e permitindo que comunidades de refugiados controlem suas próprias narrativas.

Contar a própria história

A Power99 Foundation e a DW Akademie lançaram o Awaz-e-Dosti depois de realizarem um estudo interno que identificou a ausência de cobertura sobre refugiados afegãos na mídia paquistanesa.

"Isso se devia às dificuldades de acesso da mídia convencional, já que é preciso permissão para trabalhar nos campos de refugiados", diz Najib. "Identificamos pessoas que tinham interesse em rádio e ajudamos na capacitação delas. Elas são as melhores para identificar fontes e contar suas próprias histórias. Os programas ajudam a levar notícias de dentro dos campos para o mundo exterior." 

Um dos apresentadores do Awaz-e-Dosti, Bilal Danish, 25, concorda. "Quero servir minha comunidade por meio do jornalismo."

Danish é refugiado afegão cuja família se mudou para o Paquistão há duas gerações durante a invasão soviética ao Afeganistão. Uma de suas matérias, sobre um paciente com câncer no campo de refugiados de Haripur, inspirou pessoas a oferecerem ajuda. Danish também já fez coberturas sobre tráfego em meio a refugiados afegãos e migrações climáticas, trabalho que ele espera que seja retomado por veículos afegãos maiores, como TOLOnews e Pajhwok Afghan News

Mizana Begum, 18, repórter comunitária do VoP e refugiada rohingya, fugiu do Myanmar com a família em 2017 depois de uma campanha militar contra os rohingyas. O seu trabalho que mais lhe dá orgulho é a reportagem sobre pequenas empresas lideradas por refugiados, que ela diz ter encorajado seu vizinho a começar um negócio para sustentar a si mesmo. Ela também cobriu o incêndio em Cox's Bazar, dando mais alcance às histórias das pessoas afetadas pelo desastre.  

"Nossa singularidade é que o VoP é para, pela e desde a comunidade", diz Shihab Jishan, gerente de projetos da YPSA para o VoP. "O programa de rádio serve os rohingya e as comunidades de acolhimento em Bangladesh. Este é o foco."

 

Reporting carried out by Voice of Palong.
Crédito da imagem: Voice of Palong

Reportagem construtiva

Tanto o VoP quanto o Awaz-e-Dosti priorizam o jornalismo de soluções e construtivo. "Nossas histórias constroem pontes entre os apresentadores e as comunidades de refugiados. Nosso trabalho tenta reduzir a possibilidade de conflito", diz Jishan. "Fizemos uma matéria sobre o amor em comum pelo futebol durante a Copa do Mundo. Uma matéria que fizemos sobre uma crise hídrica no campo fez com que ONGs se voluntariassem com soluções."

Jahid Hossain, 22, outro repórter comunitário da VoP, fez uma cobertura sobre o Myanmar Curriculum Pilot, programa educativo baseado no currículo nacional do país. Refugiado rohingya, Hossain treinou para ser um hafiz antes de fugir do Myanmar em 2017. Atualmente ele trabalha na rádio do campo de refugiados.

De maneira semelhante, uma reportagem do Awaz-e-Dosti sobre a falta de aulas para estudantes mais velhos na escola local inspirou a comunidade a reformar uma sala antiga e trazer um professor para que crianças afegãs refugiadas – principalmente meninas – pudessem continuar com seus estudos. "Nós focamos em pautas de esperança, resiliência, coesão social e não só em criar sensacionalismo". diz Najib.

 

Bilal Danish of Awaz-e-Dosti
Bilal Danish, do Awaz-e-Dosti. Crédito: Awaz-e-Dosti

Capacitação

O VoP e o Awaz-e-Dosti ajudaram seus repórteres a construírem importantes habilidades profissionais. "Antes de entrar na VoP, eu tinha uma visão negativa sobre a televisão e o rádio, por ter vindo de uma educação conservadora", diz Hossain. "Depois de trabalhar aqui, eu consigo ver como a informação certa pode até salvar vidas, como no caso de reportagens sobre vacinas. Isso salvou minha vida."

Danish diz que está feliz de ter recebido capacitação, incluindo em edição de áudio e vídeo, e acrescenta que já aprendeu como incorporar o jornalismo construtivo em suas reportagens.

Begum também cresceu profissionalmente em seus sete meses no VoP. "Eu era tímida, mas agora aprendi muitas coisas novas – fazer entrevistas, povo fala e outras coisas", diz. "Minhas habilidades de comunicação foram aprimoradas. Também aprendi como lidar com estigmas sociais em torno de mulheres que trabalham fora de casa na comunidade rohingya."

A Power99 Foundation quis criar com o Awaz-e-Dosti um hub de mídia para ajudar repórteres a se tornarem fontes confiáveis de informação tanto para veículos nacionais quanto estrangeiros em busca de cobertura dos campos de refugiados.

Porém, somente treinar refugiados para se tornarem jornalistas não é o bastante – eles precisam de trilhas para serem capazes de sustentarem a si mesmos e seus trabalhos.

No Paquistão, refugiados não podem trabalhar em tempo integral por causa de seu status de refugiado. Eles só podem ser voluntários, explica Najib. Em Bangladesh, refugiados rohingya não têm status legal. Isso impede que eles consigam emprego e restringe sua movimentação e acesso à educação e saúde. 

Os veículos liderados por refugiados vão precisar lutar contra esses desafios daqui para frente.


Crédito da imagem principal: Voice of Palong.

Annie Philip

Annie Philip é jornalista independente e vive em Nova Déli, na Índia. Seu trabalho já apareceu no The Correspondent, The Ken, New Statesman e Harper's Bazaar, dentre outros.

ijnet.org/pt-br

www.miguelimigrante.blogspot.com

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